
O Cheiro do Ralo
“O cheiro da merda pode lesar o cérebro.
Preciso mandar quebrar todo o banheirinho. Preciso arrumar o sifão. Nunca confie nos seus pensamentos depois das três da manha. Meu pai costumava dizer. E isso. Eu sei. É porra do cheiro, Isso que está me deixando cansado. Doente, talvez. É isso. Só pode ser.
Bosch pintava um monte de coisas entrando ou saindo do cu. Eu lembro. Eu vi nos quadros do Bosch.
Eu sei.
Porque na Idade Média o cu representava o inferno. É isso. Eu sei que é. E o ralo é o cu do mundo.
O cheiro que aspiro vem do inferno.
O vulto é o cheiro também.
Porra, eu estou assustado.
Noto minhas mãos tremer.
Que merda que é isso agora? Pego o uísque. Tomo no gargalo.
E preciso acalmar. Vão se foder. Eu sou mais eu. Eu lembro do que Strindberg falou no Inferno. Eu sei o que Freud falou sobre o medo. Sei o que falou dos fantasmas. Os fantasmas são a culpa. Mas eu desconheço esse sentimento. Eu não gosto de ninguém, nunca gostei.
Isso não é a porra do “conto de Natal”.
Ninguém vai me atormentar.
É tudo culpa do cheiro do ralo. Amanhã mesmo vou mandar cimentar”
Lourenço Mutarelli. O Cheiro do Ralo.
Comecei no final do mês de fevereiro a fazer um curso de escrita criativa com o Lourenço Mutarelli. Sim, é o autor de O Cheiro do Ralo. É um curso online, interativo. Nada de aulas gravadas. Embora as aulas gravadas também tenham seu valor, é outra conversa quando você pode dialogar com um autor sobre sua obra.
Não me lembro bem se na segunda ou terceira aula, conversamos sobre O Cheiro do Ralo, que foi o primeiro romance escrito por Mutarelli. Essa conversa me encheu os olhos e os ouvidos, posto que estava lendo esse mesmo livro para entrar no clima das aulas.
Sempre é outra experiência quando a gente tem a oportunidade de saber como foi o processo criativo, em que circunstâncias o livro foi escrito, alguns detalhes da vida do autor. Foi assim com O Cheiro do Ralo.
Esse autor, que tem formação acadêmica em Belas Artes e iniciou a carreira literária nos quadrinhos, também é ator (Que horas ela volta?, O Cheiro do Ralo) e ilustrador, por exemplo ele fez as animações para o filme Nina, que é um dos meus filmes nacionais favoritos. Nina foi inspirado na obra Crime e Castigo de Dostoievski e o roteiro é de Marçal Aquino (já falamos de Marçal Aquino aqui em Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios).
O Cheiro do Ralo é a história narrada em primeira pessoa, por um personagem não nomeado que é dono de uma loja que compra e revende objetos usados, antigos ou colecionáveis. Enfim, a loja negocia coisas de segunda mão.
Esse homem, vamos chamá-lo de Narrador, acaba de terminar, do nada, um noivado a apenas um mês da cerimônia de casamento.
Trata-se de um ser repugnante, de sentimentos vis, que ganha muito dinheiro com a tristeza dos outros e se compraz em humilhar pessoas que o procuram em momentos difíceis da vida. Esse rapaz é daquelas pessoas que acreditam que tudo no mundo têm um preço.
Eis que um cheiro de esgoto invade o escritório da loja, vem do ralo do banheirinho e se instala de vez. Se, inicialmente, o cheiro o incomoda, com o passar do tempo o Narrador passa a atribuir ao mau odor faculdades mágicas, como se fosse uma criatura, e a relação entre ele e o cheiro do ralo vai mudando.
Aí tem os clientes da loja, a ex-noiva, a bunda (é uma moça na verdade, mas é assim que nosso anti-herói se refere a ela), os funcionários da loja e a faxineira. Todos esses personagens secundários são importantíssimos para compreender a personalidade, o estilo de vida e o destino do Narrador.
É um livro para rir, sem dúvida, mas também desperta asco, raiva e desprezo.
Alguns dos objetos adquiridos e também alguns dos clientes acabam assumindo papeis de maior importância. A escrita é bem gráfica. A gente fica como se fosse uma câmera de segurança da sala do Narrador vendo tudo.
Foi impossível não lembrar dos programas sobre lojas de penhores e antiquários gringos que passam exaustivamente na TV paga. O dia a dia dessas lojas e os objetos de seus acervos são a cara da loja paulistana de O Cheiro do Ralo. Ouso chutar que, fosse o Narrador o dono, ele viveria de negociar a mercadoria loja Gold & Silver Pawns e guardaria para si tudo o que existe na Obscura Antiques & Oddities.
Vamos começar com o mais leve. O programa Pawn Stars, no Brasil conhecido como Trato Feito, é exibido pelo History Channel e pode ser encontrado no Stars+. São 21 temporadas. Repetindo: VINTE E UMA TEMPORADAS.
A loja Gold & Silver Pawns fica em Las Vegas e pertence à família Harrison. O pai Richard (The Old Man) faleceu em 2018 e o comando dos negócios está com filho Rick, que deve ter seus cinquenta e tantos anos, também tem o neto Corey. Além dos Harrison, um personagem fundamental para o sucesso da série é Chumlee, que na certidão de nascimento se chama Austin Lee Russel, e é um funcionário folgado com costas quentes.
O que tem de legal em acompanhar o dia a dia de uma loja de penhores? Tudo. O espectador vê as negociações, os objetos que chegam, a avaliação da autenticidade das peças mais exclusivas por especialistas e ainda tem as coisas da família que são totalmente secundárias, mas rendem umas risadinhas.
Eu, particularmente, adoro quando tem que chamar o especialista de qualquer área que seja. Dá a sensação de se estar aprendendo a como reconhecer um autógrafo falso de um famoso ou se aquela é ou não uma edição rara de um livro. Nessa loja passam as coisas mais variadas, desde joias, vinis autografados, peças históricas, carros e até barcos (lembrando que é Las Vegas… ali no meio do deserto).
Na variedade de objetos, a Gold & Silver se parece mais com a loja de O Cheiro do Ralo. Aí, quando a gente chega na parte do livro que o Narrador compra um olho de vidro e depois uma perna mecânica, não para venda, mas para si próprio, e vê o que ele faz com esses objetos, penso que talvez o consumidor que habita nele ia se divertir muito em outra loja: a Obscura Antiques & Oddities.
Essa é uma loja que está na minha lista de visitas se um dia voltar a Nova York. Talvez não compre nada, ainda mais com o dólar pela hora da morte como está, mas deve ser muito interessante olhar as vitrines e conversar com o casal que administra a Obscura, Mike Zohn e Evan Michelson, e seu consultor, Ryan Cohn.
É um antiquário bastante específico. Ele tem uma inspiração gótica, macabra, com uma coleção intrigante de objetos médicos antigos. Por exemplo, você pode achar na Obscura uma camisa de força usada, seringas e frascos de remédios antigos, próteses variadas, bonecas antigas medonhas, roupas e animais empalhados.
O programa que mostra o cotidiano da Obscura Antiques & Oddities se chama Oddities, em inglês, e Bizarrices, aqui no Brasil. É uma produção do Discovery Channel.
E você? Qual dessas lojas é mais a sua cara?
O Cheiro do Ralo foi adaptado para o cinema em 2007. No filme o narrador se chama Lourenço e é interpretado por Selton Melo, Lourenço Mutarelli fez o segurança da loja e a direção é de Heitor Dhalia. Ganhou vários prêmios em festivais de cinema nacionais e fez parte da seleção do Festival de Sundance. Esse eu vi no cinema, assim que foi lançado.
MUTARELLI, Lourenço. O Cheiro do Ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
DHALIA, Heitor. O Cheiro do Ralo. Brasil: Branca Filmes, 2007.
BIGGS, Shannon. Pawn Stars. EUA: History Channel, 2009-atual.
Oddities. EUA: Discovery Channel, 2010-2015.
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