O Bebê de Rosemary

“Não sei se vocês sabem ou não”, ele disse, enquanto passava manteiga num pãozinho, “mas o Bramford, no início do século, tinha uma péssima reputação.” Ele ergueu os olhos, constatou que o casal não sabia de nada e então prosseguiu. (ele tinha um rosto amplo e luminoso, faiscantes olhos azuis e alguns fios de cabelo preto penteados transversalmente sobre o couro cabeludo.) “Ao lado de gente como Isadora Duncan e Theodore Dreiser”, ele contou, “o Bramford tem abrigado um número considerável de personagens bem menos interessantes. Foi lá que as irmãs Trench realizaram suas experienciazinhas culinárias e onde Keith Kennedy dava suas festas. Adrian Marcato também morou lá, bem como Pearl Ames.”

“Quem eram as irmãs Trench?”, Guy perguntou, e Rosemary acrescentou: “Quem era Adrian Marcato?”.

“As irmãs Trench eram duas distintas senhoras vitorianas que, de vez em quanto, praticavam canibalismo. Elas cozinharam e comeram várias criancinhas, inclusive uma sobrinha delas.”

“Que adorável”, exclamou Guy.

Hutch, virando-se para Rosemary, prosseguiu: “Adrian Marcato praticava magia das trevas. Ele fez um belo estardalhaço lá pela década de 1890, anunciando que havia conseguido invocar Satã vivo. Como prova, ele exibiu chumaços de pelos e algumas raspas de garras; aparentemente as pessoas acreditaram nele, pelo menos um número suficiente para formar um bando que o atacou e quase matou no saguão do Bramford.”

Ira Levin. O Bebê de Rosemary. p. 21.

Começando com um desabafo. Outubro é um mês tão temático que é difícil acompanhar. Entendam que isso não é encarado de minha parte como uma obrigação. É mais como um desafio.

Ai eu li Ela se chama Rodolfo, da Julia Dantas, que é um livro que deixa a gente feliz, levinho sem ser bobo, mas ia comer uma das datas que eu queria muito que fossem temáticas: Halloween e segundo turno das eleições 2022.

Rodolfo vai ficar para novembro. Sobre o dia das crianças, lá no Instagram teve dica de livro para pessoinhas de até 9 anos e reels da exposição do Ziraldo, Mundo Zira, no CCBB Brasília (@lvroseoutros.site).

No momento, estou lendo um livro de ficção com a temática eleitoral, cuja leitura não é fluida embora o livro seja bem engraçado. Se tudo der certo, falo dele semana que vem. Se não der, adiantemos Rodolfo.

Agora vamos conversar sobre o oposto do coração quentinho: o medo. Sim, meus caros, hoje vou gastar o tema dia das bruxas em alto estilo.

Ira Levin arrasou em O Bebê de Rosemary.

Para quem não viu o filme e não leu o livro, segue um resumo sem spoilers.

Rosemary e Guy Whoodhouse são um jovem casal recém casado. Eles estão tentando conseguir um apartamento com “personalidade” na cidade de Nova York. Guy é um ator tentando se sobressair e ganhar fama. Ele parece esforçado e relativamente competente, mas as portas simplesmente se recusam a se abrir para ele. Rosemary é dona de casa e o dinheiro que ele ganha é suficiente para os dois, apesar de só fazer papeis pequenos. Ela quer ter três filhos e ele só quer começar a aumentar a família quando se sentir estável na carreira.

Ela foi meio que deserdada. Apenas um irmão de sua extensa família continua interagindo com ela. O motivo para a família ter picado a mula foi que uma moça tão católica, não poderia nem mudar de cidade indo viver longe de sua família de origem e muito menos ter se casado só no civil com um homem de outra religião.  Rosemary é uma católica não praticante.

O livro começa quando eles estão prestes a alugar um apartamento dos que consideram sem personalidade quando de repente chega a vez deles na lista de espera para alugar uma unidade em um edifício histórico de Nova York, o Bramford.O BEBÊ DE ROSEMARY (1968) | Cinema & Debate

Então o casalzinho vai desistir do apartamento mais novo e ficar com aquele antigo, espaçoso, glamoroso, que “ainda tem uma lareira que funciona”.

Como Rosemary é de Omaha e não tem família em Nova York ela acabou ficando muito próxima de um escritor que se chama Hutch. É um senhor mais velho, que tem filhas da idade dela e desenvolve uma relação de amizade paternal com ela.

Quando Hutch fica sabendo que sua amiga vai morar no Bramford, a chama para uma conversa e desfia um rosário de acontecimentos macabros e misteriosos que ocorreram naquele prédio, apresentando-o como um lugar de mau agouro e aconselhando a não se mudarem para lá.

Adiantou? Claro que não. Hutch estava certo? Claro que sim.

Daí para frente é só ladeira abaixo. Porém, Ira Levin faz essa ladeira mais parecida com uma longa rampa esburacada do que como uma descida íngreme e sem freios. A gente vai vendo que a coisa está estranha, mas segue descendo, de repente torce o pé num buraco, se levanta e continua descendo, agora mancando, até o próximo buraco e assim vai até se esborrachar no final. É gradual o cozimento. A tensão vai aumentando, aumentando, a personagem principal vai sendo enredada e, quando ela vê, já era.

O bebê de Rosemary surpreendeu por alguns aspectos, sendo o principal deles o fato de que é fácil de ler.

A escrita é muito fluida e as pistas que vão aparecendo em quase todas as páginas mantém o leitor em um nível de interesse que pode facilmente levá-lo a virar a noite para terminar. Não foi meu caso, mas foi quase. Foram dois dias dormindo mais tarde que eu deveria e mais cedo do que gostaria, porque foi daquelas leituras que fazem a gente pensar no livro o tempo todo. Olha que eu já tinha visto o filme e já sabia o final.

O final que o Roman Polanski deu para o filme é bem bom e fiel ao livro. Mia Farrow foi uma excelente Rosemary. É um clássico imperdível. Deve ser assistido. Mas, os detalhes dos sentimentos e pensamentos da personagem no livro são mais sutis, delicados e pormenorizados.

O Bramford, era carinhosamente apelidado de Bram, o que suspeito ter sido uma alusão a Bram Stocker, o autor de Drácula.

Aliás, as duas obras têm coisas em comum. Sendo uma delas o cozimento lento e instigante do protagonista, que deixa pistas sutis à medida que vai colocando os personagens na maior enrascada sobrenatural em que eles poderiam se meter.

Outra é o espaço físico e delimitado onde más coisas acontecem. No caso de O Bebê de Rosemary é o Bramford e no Drácula é o castelo do conde na Trânsilvania, região da Romênia.

Da mesma forma que não faltaram sinais de que era má ideia morar no Bramford, não faltaram dicas de que era melhor não entrar no tal castelo. Tanto Jonathan Harker, quanto Guy e Rosemary foram traídos pela racionalidade, pela falta de fé.

Fé é outra palavra importante nas duas obras, em especial a fé católica. Os símbolos e rituais católicos estão dispostos nos livros dando a impressão de que os protagonistas, se fossem católicos praticantes, estariam a salvo ou pelo menos em melhor condição de embate com as forças do mal.

O fato de Rosemary não ter se casado na Igreja a tornou presa fácil.

Em Drácula, os romenos rezavam e portavam crucifixos. Depois o caçador de vampiros Van Helsing também usou crucifixos, água benta, orações, leu trechos da Bíblia e tudo mais o que dispunha.

Em Drácula ainda tempos as balas de prata, estacas, alho e outros artefatos que ajudam a combater o mal ali representado pelo vampiro.

O Bebê de Rosemary também apresenta elementos ritualísticos do outro time: um fungo fedorento incluso em uma espécie de camafeu, beberagens, alimentos, velas pretas e etc.

Assim como Hutch, todo o povoado aos pés do local onde se situava o castelo do conde das trevas, sabia que era má ideia entrar lá. Muitos dos que entraram nunca voltaram. Eles alertaram ao advogado Jonathan Harker e esse precisou ver para crer. O bicho quase sucumbiu naquela visita que era para ser de dias e que se estenderam por semanas.

No Bram, havia relatos desde invocação do tinhoso, passando por doenças súbitas, inquilinos apavorantes do tipo serial killers e tals. Barra pesada! E não era, diferentemente do que rola em Drácula, uma suspeita ou um rumor, estava tudo documentado em jornais, boletins de ocorrência e tals.

Tem um hotel em Los Angeles, em operação atualmente, que é desse naipe. Quando você for dar uma banda na cidade dos anjos para aquele rolê na Sunset Boulevard, ver uma casinha de famoso em Beverly Hills, pisar na calçada da fama, recomendo que não se hospede no Stay On Main Hotel.

Com esse nome talvez tenha sido apenas um caso de desgraça misteriosa (embora não seja qualquer caso), mas a dica está em procurar por informações sobre esse edifício antes do “rebranding”. Por décadas, essa superbem localizada hosperaria se chamou Cecil Hotel. Atualmente, o Stay On Main voltou se chamar Cecil, parece que esse retorno ao nome original foi em 2017.

A googlada com o termo “Cecil Hotel” vai te chocar muito mais. A partir daqui saimos da ficção para a realidade e a realidade é bem feia. Sensíveis podem preferir parar de ler.

Vamos de trás para frente. Em 2013, a estudante e blogueira de moda Elisa Lam saiu de sua casa no Canadá para um passeio em Los Angeles e se hospedou em um hotel bem reformadinho, no centro de LA e com um preço acessível chamado Stay on Main Hotel.

Cecil Hotel. Los Angeles/EUA.

Dias depois do check in Elisa desapareceu. Foi encontrada 20 dias mais tarde afogada na caixa d’água do hotel.

Como se já não bastasse, as câmeras de segurança do hotel captaram imagens de Elisa na última noite em que apareceu viva. São imagens estranhíssimas, ela entra e sai do elevador e se comporta como se estivesse fugindo de alguém, se escondendo. A porta do elevador não se fecha enquanto a garota está lá dentro, mas se fecha imediatamente quando ela sai. Elisa estava com a expressão bastante assustada.

Esse vídeo viralizou e o caso deu início a uma avalanche de hipóteses das mais simples às mais conspiratórias. Passando pela condição de transtorno de bipolaridade da vítima até a um assassino que se inspirou em um filme de terror chamado Dark Water (não vi. Esse filme é dirigido pelo brasileiro Walter Salles). De qualquer forma, o caso Elisa Lam é sinistro e triste.

Aí você vai puxando o fio do tal hotel  e se depara com vários casos bizarros. O Cecil Hotel foi inaugurado em 1924 e hoje é considerado patrimônio cultural de Los Angeles.

Agora a lista das desgraceiras : registrados 12 suicídios de causas variadas; vários casos de violência; Elizabeth Short, conhecida como Dália Negra, já foi vista bebendo no bar do hotel (1947); uma hóspede, que era uma operadora de telemarketing aposentada, foi encontrada sem vida esfaqueada, violentada e teve o quarto saqueado (1964).

Dois assassinos em série já foram hospedes do Cecil Hotel: Richard Ramirez (Night Stalker) e Jack Unterweger, que por sua vez era fã de Richard Ramirez. Um foi morador do hotel na década de 1980 e o segundo no ano de 1991.

Mas não é só desgraceira, o hotel é um ícone pop dos Estados Unidos. Acredito que os novos donos tenham retornado ao nome original, porque

Castelo do Príncipe Vlad Tepes. Transsilvânia/ Romênia.

existem turistas que querem se hospedar no Cecil pelo que ele representa, é tipo uma adrenalina por desafiar o perigo.

 

O U2 já fez um show em na lage de um prédio do lado do Cecil Hotel e o letreiro do Cecil compôs o cenário do vídeo clipe da música Where The Strees Have no Name. O Cecil também aparece no fundo do vídeo clipe da música The Rock Show, da banda Blink-182.

Em 2021, a Netflix lançou o documentário em série chamado Cena do Crime: O Desaparecimento no Cecil Hotel, que se propôs a ser uma versão mais respeitosa do caso da Elisa Lam, depois de toda a especulação que o caso suscitou.

E aí? Ficou interessado em alugar um apê no Bramford? E conhecer o castelo de Drácula, aquele lá na Transsilvânia mesmo que inspirou o livro? Você se hospedaria no Cecil Hotel?

O castelo do Príncipe Vlad, confesso que queria visitar.

Pelo sim pelo não, é bom pensar bem sobre edificações de reputação sombria antes de se mudar para uma delas. Amytiville feelings!

Feliz dia das bruxas a todos!

LEVIN, Ira. O Bebê de Rosemary. Tradução: COLLIN, Lucy. Rio de Janeiro: Darkside, 2022.

STOKER, Bram. Drácula. Tradução: HELOISA, Márcia. São Paulo: Darkside, 2018.

POLANSKI, Roman. O Bebê de Rosemary. EUA: Paramaount, 1968.

SALLES, Walter. Dark Water. EUA: Touchstone Pictures, 2005.