“Então, quando você me perguntou quem era Deus, pensei em dizer: não sei. Acontece que você detestava que eu dissesse não sei, você dizia: filho, nunca podemos saber de tudo, mas, olhe, não responda não sei. Diga então que precisa pensar, que precisa de tempo. No entanto, naquele dia, eu não queria pensar. Estava quente e eu só tinha nove anos. Mas eu lembrei do meu livro sobre lendas de terror e respondi que achava que Deus era um fantasma que morava no céu. E, quando eu disse isso, você me olhou com certo espanto, e vi seu rosto se iluminar com alegria. Como se eu tivesse dito a coisa mais importante do mundo. Talvez. hoje eu compreenda por que você ficou comovido com aquela resposta. Conforme fui crescendo, suas perguntas foram ficando mais complexas. E confesso que às vezes eu não queria ser profundo. Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais. No entanto, agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos. Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim. Eu era pequeno e talvez não tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu importante.”

Jeferson Tenório.O Avesso da Pele.

Alguém anotou a placa do caminhão que me atropelou?

A escrita é linda. A história, aliás as três histórias são lindas e tristérrimas, de chorar cântaros. O grito fica preso na garganta e as imagens e frases vão povoar a cabeça do leitor por muito tempo.

Jeferson Tenório venceu com essa obra o prêmio Jabuti de 2021.

Dá série comprei e demorei a encarar, esse livro estava na prateleira olhando p mim há alguns meses (aliás, é uma meta para o ano tentar zerar a fila). Apesar de ser fininho, a arte capa adianta ao leitor que vai doer. Então, fui protelando. Até que a vontade foi maior que o receio e uma vez iniciado acabou em duas noites. Pelo volume de páginas poderia ter sido uma sentada, pelo tema e a emoções suscitadas teve que ter uma pausa.

Coisas que ganhei lendo O Avesso da Pele: mais perspectivas sobre o racismo à brasileira; oportunidade de pensar sobre os meus pais e a vida deles; o desespero para incluir Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, na lista de leituras para ontem. Esse livro tem várias referências a outras obras literárias e filmes.

Jeferson Tenório

Quem narra o livro é Pedro, filho de Henrique e Martha. Primeiro ele narra na segunda pessoa (olha que sensacional!) contando a vida do pai como se estivesse conversando com ele, trata-o por você. Depois em terceira pessoa, para falar da vida da mãe, como se contasse ao pai a vida de Martha. E essas narrativas se entremeiam com a primeira pessoa, que é quando Pedro fala de si mesmo. Veja bem: é um único narrador contando a um interlocutor e, portanto, alternando a forma de narrar.

Os três personagens principais são negros, um professor de literatura, uma tradutora e um arquiteto em formação. Vivem em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Os progenitores de Pedro já residiram no Rio de Janeiro e em Florianópolis, capital de Santa Catarina.

Aí a gente vai ter a perspectiva de como os pais sentiram diferenças e similitudes nas situações de discriminação racial sofridas nessas três capitais. Também será possível refletir sobre as diferenças do racismo sob o corte do gênero: a violência racial incide de formas diferentes sobre Henrique e sobre Martha. Ele vai tomar baculejo da polícia, aprender que se vestir assim ou assado leva a vivências diferentes, aprender a não correr na rua nunca. Foda isso! E ela, vai ter seu corpo hipersexualizado pelo olhar e atitudes de homens, vai ser escravizada pela sogra branca, sofrer violência doméstica, se tornar uma mulher um amarga e insegura.

O título O Avesso da Pele remete ao que temos internamente, sentimentos, afetos, que é preciso sobrepujar a cor da pele, porque é o que vale a pena guardar, mesmo que a cor da pele atravesse incessantemente a vida dos personagens.

O pai de Pedro, Henrique, quando chega a um ponto da vida em que parece… ai ai a língua coça para contar o final. Não farei isso. Só queria registrar que a capacidade de envolvimento da literatura se mostrou bastante promissora nas últimas aulas ministradas por Henrique no livro. O capítulo De volta a São Petersburgo é muito triste, atual e é um desfecho inquietante para o livro. Obrigada, Tenório. E obrigada também a Dostoiévski porque sem a obra de um não seria a mesma coisa a obra do outro.

A técnica usada pelo professor para prender a atenção dos alunos completamente desinteressados e dispersos no curso noturno da escola pública em que Henrique trabalhava é muito interessante. Quando eu era professora de história, lá nos primórdios da vida adulta, por vezes fiz intervenções com aquele viés de puxar para um assunto de interesse dos alunos o gancho para começar a matéria do dia. Esse exemplo de O Avesso da Pele foi muito lindo.

Outra coisa que achei excelente sobre esse livro é que ele introduz conceitos das ciências humanas em estudos raciais de uma maneira bem incorporada, nada de palestrinha ou paradas bruscas para um parágrafo verbete forçado no meio da conversa. Aliás, que escrita! Já falei que amei a escrita lá em cima e falo de novo outras trinta vezes. O leitor, sem perceber, vai entrar em contato com conceitos como o de racismo estrutural, eugenia/darwinismo social e pautas do movimento negro demonstradas nos discursos de personagens como o professor Oliveira ou Saharienne e ainda exemplificados pelos outros personagens.

Jeferson Tenório responde para cada um dos personagens pretos a pergunta que Mano Brown faz a todos os seus convidados negros que vão ao Mano a Mano: Quando você descobriu que era preto?

Se Mano Brown fizesse essa pergunta a Pedro ele seria capaz de dizer quando a ficha caiu para si e para os pais. No livro esses momentos ficam muito claros, assim como os reforços cotidianos que não os deixam esquecer.

Já falei do podcast Mano a Mano aqui quando tratamos do livro Sidarta, de Hermann Hesse, e a jornalista Glória Maria foi a entrevistada da vez. Naquele episódio, a ligação com a obra literária da vez se deu mais pela perspectiva dos preceitos budistas que as de cunho racial, embora esse tema tenha sido muito abordado ao longo da conversa deles.

Hoje, recorro a Mano a Mano para comentar dois episódios da nova temporada: as entrevistas de Igor 3K e Flávia Oliveira.

Igor 3K é o apresentador/entrevistador do Flow Podcast. E naquela oportunidade foi feita a ele a clássica pergunta do Mano a Mano. A resposta foi a de que ele não consegue se definir racialmente. Ele sabe que em alguns lugares é recebido como não branco, ao passo de que em outros é recebido como não preto. Então Igor diz que quando morava no subúrbio do Rio de Janeiro, local onde foi criado e viveu até pouco tempo atrás, não tinha entre os convivas do bairro essa separação por cor da pele. E que, sendo assim, por muito tempo em sua jovem vida, ele não pensou sobre isso porque não era uma questão. Então Mano pontuou que ao entrevistar Zeca Pagodinho, sambista também carioca, obteve dele a mesma resposta.

O personagem Henrique narra o tempo da infância em que morou no Rio de Janeiro, sua relação com o pai e com a cidade. Ele sofreu violência policial na cidade maravilhosa, provavelmente sua cor teve influência no ocorrido. Mas naquele ambiente, ainda não tinha sido para ele uma questão. Só mais tarde, diante do modelo de exclusão racial da cidade de Porto Alegre, que tinha o traço racista mais ostensivo foi que se deu conta que sua cor de pele o impunha comportamentos específicos e aumentava as possibilidades de perigo para si próprio e para os seus iguais.

Foi uma entrevista interessantíssima entre dois podcasters (é assim que chama?) dos mais relevantes do Brasil sobre produção de conteúdo, fama, aplicação dos recursos no auxílio de outros produtores de conteúdo e tals.  Recomendo toda a conversa apesar de ter destacado o que convém ao tema do dia.

Por último, mas não menos importante, comentemos a entrevista dada a Mano Brown pela jornalista da Globo News e também podcaster do Angu de Grilo Flávia Oliveira.

Sou fã dela. Já era antes de ouvir essa conversa e agora sou mais ainda. Como jornalistas dão boas entrevistas quando os papeis se invertem e eles são o alvo das perguntas, né? Para mim, até hoje, as melhores entrevistas de Mano a Mano são a de Glória Maria e a de Flávia Oliveira.

A entrevista, que era para girar em torno do tema economia, porque essa é a especialidade jornalística dela, descambou para a questão racial. O que foi ótimo, embora no finalzinho, quando a economia apareceu, tenha sido também brilhante.

Assim como Pedro de O Avesso da Pele, Flávia pôs-se a discorrer sobre a questão racial em sua família comentando a constituição e alguns entendimentos que sua avó teve, passou para a mãe e as tias dela, chegou nela e agora a versão dela está sendo moldada pela filha.

Muito lindo ouvir das lutas da família, do exame de DNA para identificar as origens genéticas e o efeito que isso produziu nela, de como ela se descobriu negra, de como foi assimilando e ressignificando a cor da própria pele e o conceito de negritude ao longo dos anos, a religião de matriz africana. Tudo lindo! E tudo a ver com O Avesso da Pele.

 

TENÓRIO, Jeferson. O Avesso da Pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.