
Capa do livro Nós, de Ievguêni Zamiatin.
“Agora caminho nos passos dos outros e, contudo, separado deles. Ainda tremo todo por causa da agitação que passei, como uma ponte sobre a qual acaba de passar, retumbando, um antigo trem de ferro. Estava consciente de mim mesmo. Mas, de fato, apenas são conscientes de si e reconhecem a própria individualidade um olho com um cisco, um dedo machucado, um dente doendo: olhos, dedos e dentes saudáveis – eles parecem não existir. Será que não está claro que uma consciência individual é apenas uma doença? (…)
E se o incidente de hoje, em essência de pouca importância, fosse apenas o início, apenas o primeiro meteorito de uma longa série de pedras retumbantes e incandescentes que caem do infinito sobre nosso paraíso de vidro?”
ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. p. 177.
Vamos começar pelo fim. Nós, livro de Ievguêni Zamiátin, publicado no Brasil pela Editora Aleph, vem com textos de apoio em suas últimas páginas que dizem muito sobre o poder desta obra. O último anexo é uma carta escrita por Zamiátin em junho de 1931, endereçada a Yosif Vissarionovich Stalin, mais conhecido como Joseph Stalin.
Na carta, Zamiátin argumenta com muitos exemplos como sua carreira de escritor está ameaçada de extinguir-se na União Soviética, sua terra natal, posto que ele não conseguia publicar e nem suas peças estavam sendo encenadas, mesmo quando aprovadas por quase todas as instâncias necessárias para liberação para serem lançadas ao grande público. Em seguida, pede ao líder soviético que o deporte ou permita que ele se mude para outro país na companhia da esposa. Zamiátin, para reforçar seu argumento, cita outros escritores russos que gozaram de tal benefício
O pedido de Zamiátin foi atendido e ele terminou seus dias em Paris, na França.
O segundo documento anexado é uma resenha de Nós, escrita por George Orwell, publicada em 1946. Nós foi publicado pela primeira vez em 1924, nos Estados Unidos, graças a uma cópia que foi para além das divisas da URSS, pois o livro fora considerado perigoso pelo governo soviético.

Capa de Admirável Mundo novo de Aldous Huxley.
Orwell teve acesso ao livro em uma edição francesa (Nous Autres) e ficou muito impressionado coma inventividade, apesar de considerar que a escrita não era fluida. Na resenha, o futuro autor de 1984 e A Revolução dos Bichos compara Nós a Admirável Mundo Novo, que havia sido lançado em 1932 e fora escrito por Aldous Huxley (mencionamos Admirável mundo novo no texto sobre Fahrenheit 451). Na percepção de Orwell, certamente Huxley teria tido acesso a Nós e as bases de Admirável Mundo Novo estriam naquele livro pioneiro no gênero da distopia, porém bem menos conhecido.

Capa do livro 1984, de George Orwell
Concordo com a parte em que Orwell compara a obra de Zamiátin à de Huxley e acrescento que Nós não lançou sementes apenas para Huxley, mas também para o próprio George Orwell que obviamente se inspirou em Nós para escrever 1984, publicado em 1949. Aliás, há elementos de Nós em várias distopias, mesmo as mais modernas.
Zamiátin criou um universo distópico, contado na forma de um diário escrito por um dos membros de grande responsabilidade no Estado Único. O estilo da escrita é um pouco diferente, mas ao contrário do que avalia Orwell, considero muito interessante a forma com que foram narrados os acontecimentos, sendo um dos pontos fortes do livro.
O estado Único é regido pelo Benfeitor. Tudo, absolutamente tudo, é controlado: horário de passeio, hora de dormir, temperatura, brilho do sol, natalidade, etc. A população é composta por sobreviventes da chamada Guerra dos Duzentos Anos, da qual restaram apenas 0,2% da população mundial. Eles vivem em uma redoma de vidro, cercada pelo lado de fora por um muro verde. Os prédios da cidade são de vidro transparente para permitir a vigília dos Guardiões e dos vizinhos que têm o dever de denunciar subversão. Para momentos de intimidade entre casais, esses devem se inscrever junto ao governo para formar um casal. Os inscritos recebem um talão cor-de-rosa, cujos cartões precisam ser apresentados aos gerentes dos prédios para que os autorizem a fechar as cortinas por cerca de uma hora.
As pessoas não têm nomes. São conhecidos por uma letra e um número de registro, mulheres são vogais e homens são consoantes. Os principais personagens são: D-503, autor do diário e construtor de um veículo capaz de sair da redoma chamado “Integral”; “O” mulher inscrita para ter relações íntimas com D-503; I- 330, mulher por quem D-503 se apaixona.
Os moradores do Estado Único têm a certeza de serem felizes e de que é necessário abrir mão da liberdade individual para alcançar a felicidade. O conceito é: quanto menos escolhas, mais tranquila a vida. Quanto menos individualidade e mais coletivismo melhor, ao ponto que eles não são um ou eu, mas nós. Comportam-se como uma célula, uma engrenagem que deve executar sua função com precisão para não descalibrar a máquina.
D-503 está plenamente convencido disso, não questiona o Benfeitor. Até que um dia conhece I-330 e se envolve com ela. I não é como O. A segunda está incorporada ao sistema e é convencida de que é feliz graças ao Benfeitor e à Tábua de Horários. Em contraponto, I é uma rebelde e seu comportamento livre fascina D-503, que passa a refletir sobre sua própria vida.
I apresenta a ele a casa antiga, uma casa de tijolos, envolta em uma redoma específica, nos limites da grande redoma. A casa é habitada por uma senhora idosa que é uma espécie de guardiã da edificação. Além de não ser de vidro, a casa tem um elemento surpresa, que vai ser o plot twist mais importante da trama.
Orwell, muito provavelmente, se inspirou na guerra de duzentos anos e no Benfeitor para criar a guerra eterna e fictícia que sustenta o estado comandado pelo Grande Irmão (Big Brother) de 1984. A felicidade e organização que não permite pensar sobre a existência, bem como o controle de natalidade foram sementes para Admirável Mundo Novo.
Vamos agora nos concentrar na redoma. Muito provavelmente, Zamiátin conhecia o Mito da Caverna, de Platão. Em rápidas palavras, Platão criou a alegoria de uma comunidade que vive dentro de uma caverna e entende que a realidade são as sombras dos elementos externos à caverna, que se projetam na parede. Essas pessoas que se guiam por aquelas projeções têm uma visão distorcida da realidade. A humanidade para ter consciência da realidade precisa sair da caverna, precisa buscar conhecimento em outras fontes, não só as que lhe estão disponíveis. Uma maneira agradável para entender melhor esse mito pode ser o vídeo do Audino Vilão sobre o Mito da Caverna, cujo canal no Youtube já foi apresentado nesse site no texto sobre o livro Laranja Mecânica.
Os habitantes da redoma de vidro governada pelo Benfeitor em Nós têm uma visão limitada e desfocada da realidade.
Nesse aspecto, Nós lembrou várias outras histórias. Aterei-me a dois filmes geniais: A Vila e Wall-e.
Caso queira, pode comentar sobre outras obras você conhece com essa temática.

Cartaz do filme A Vila
A Villa é um filme de 2004, dirigido e escrito por M. Night Shyamalan e estrelado por atores como Bryce Dallas Howard, Joaquin Phoenix, Adrien Brody, Sigourney Weaver e William Hurt.
Bem no início vemos um pai chorando a morte do filho de sete anos, que falecera de uma doença que poderia ser curada se tivesse à disposição medicamentos encontráveis na cidade. Na lápide da criança, pode-se ler que estão vivendo no final do século XIX. Os moradores da Vila têm um pacto de não atravessar a floresta que circunda sua comunidade. Isso porque a floresta é habitada por criaturas carnívoras, dotadas de inteligência, que são atraídas pela cor vermelha. Existe uma trégua entre os humanos e as criaturas de não invadirem um o espaço do outro, por isso ninguém deve ir à floresta.
O clima é bucólico, tem-se um meio de vida parecido com o das comunidades menonitas e existe uma tensão permanente devido às regras de proteção da vila. Aquela Vila fora fundada pelos habitantes mais velhos, que são os anciãos e tomam todas as decisões. Todos os anciãos têm traumas de casos de violência extrema contra pessoas amadas antes de fundarem a vila. Todo mundo naquela comunidade vive em igualdade de condições, não há dinheiro, as roupas são parecidas, uma única escola, etc.
Os personagens principais têm mais ou menos a mesma idade e são os jovens: Ivy Walker, que ficou cega por alguma doença na infância; Lucius Hunt, apaixonado por Ivy, cumpridor de regras, boa pessoa e corajoso; Noah Percy, também apaixonado por Ivy, tem questões mentais e um bom entendimento do que se passa, não é uma pessoa com a melhor índole.
Em um dado momento Lucius é esfaqueado dentro de sua casa, ficando em estado grave, porém recuperável caso faça uso da medicação e dos cuidados certos. É aqui, que Ivy consegue dos anciãos a permissão para atravessar a floresta e ir à cidade. Essa viagem mudará sua compreensão de mundo. São duas viradas importantes na trama, uma quando o pai de Ivy explica a ela alguns segredos da vila e outro quando ela chega aos limites da floresta.
Passemos a Wall-e, minha animação favorita de todos os tempos até agora. Nessa animação, tem-se dois microcosmos com visão limitada da realidade. O planeta Terra, onde vive Wall-E, que é um robô. E uma nave cruzeiro espacial, onde está toda a população humana enquanto os robôs tentam limpar a sujeira da Terra e a vida vegetal volta a brotar. Wall-E se passa a 700 anos dos dias de hoje, portanto século 26, que curiosamente é o mesmo século em que se desenvolve Nós.

Cartaz da animação Wall-E
Como mencionado, temos não só uma, mas duas “cavernas”. Em uma delas vive o simpático robô Wall-E, que é o último de sua série em funcionamento no planeta Terra. Esse espaço cuja realidade pertence somente ao robô é uma Terra pós-apocalíptica. O planeta havia sido totalmente tomado por lixo, tem frequentes tempestades de areia/poeira e teve como população por séculos os robôs, que como Wall-E foram criados para compactar e empilhar o lixo, enquanto a humanidade teria se mudado para um cruzeiro espacial aguardando o reaparecimento de vida vegetal na Terra. Claro, Wall-E não tem conhecimento de como é existência nesse cruzeiro eterno.
A única companhia do robô é uma barata. Ele passa seus dias cumprindo seu trabalho e colecionando vestígios da civilização que lhe parecem bonitos, alegres. Ele também pega dos robôs que não funcionam mais peças de reposição para si próprio.
Até que aparece EVA, robô enviado do cruzeiro, de tecnologia bem mais avançada que Wall-E. Trata-se de uma “robô fêmea” e eles rapidamente se tornam amigos. Até que EVA encontra o que veio procurar na Terra e é resgatada, levando sem querer Wall-E com ela.
É então que surge a segunda “caverna”: o cruzeiro. Lá vivem pessoas que passam seus dias, há gerações, apenas assistindo programas de TV, conversando virtualmente, passeando em suas cadeiras superconfortáveis e voadoras. Eles não andam, seus músculos e ossos atrofiaram com o passar do tempo. A maioria nem desconfia de que existe um planeta para voltar. Essa população apenas existe.
A chegada de Wall-E e o retorno de EVA vai mudar drasticamente a vida tanto na Terra quanto na nave.
O Mito da Caverna, os habitantes da nave de Wall-E, moradores da Vila e cidadãos do Estado Único de Nós, podem ter seu sentido extrapolado para a saída da bolha social. Muito discutidas contemporaneamente, essas bolhas representam como o ser humano escolhe estar rodeado dos que pensam igual a ele e acaba ignorando os milhares de outros pontos de vista. Essas obras criaram alegorias que reforçam a necessidade do diálogo entre diferentes, da busca por informação diversificada e da escuta seguida de reflexão com disposição para reconsiderações.
Além desses recortes de redomas/cavernas e das influências de Nós sobre outras famosas distopias, esse ótimo livro traz reflexões sobre messianismo (religioso ou político), religiões, revisionismo histórico, importância da vidas de humanos comuns, sistemas eleitorais e muitas outras graves questões. Esse texto já está longo demais, alguns desses temas serão retomados no futuro.
Agradecimentos ao amigo Kad pela indicação e empréstimo do livro.
ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. Tradução: SANTOS, Gabriela. São Paulo: Editora Aleph, 2017.
SHYAMALAN, M. Night. A Vila. Touchstone Pictures: EUA, 2004
STANTON, Andrew. Wall-E. Pixar Animation Studios: EUA, 2008.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006.
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