Ninguém Escreve ao Coronel

“O administrador dirigiu-se diretamente para os dois. O Coronel retrocedeu impelido por uma ansiedade irresistível, procurando decifrar o nome escrito no envelope lacrado. O administrador abriu a sacola e passou ao médico o pacote de jornais. Depois abriu o envelope da correspondência privada, certificou-se da exatidão da remessa e leu nas cartas os nomes dos destinatários. O médico abriu os jornais.

– Ainda o problema de Suez – disse, lendo as manchetes. – O Ocidente perde terreno.

O Coronel não leu os títulos. Fez grande esforço para reagir contra o estômago.

– Desde que foi implantada a censura, os jornais só falam de Europa – disse. – Seria melhor se os europeus viessem para cá e nós fossemos para a Europa. Só assim todo mundo saberia o que acontece em seus respectivos países.

– Para os europeus, a América do Sul é um homem de bigodes com um violão e um revólver. – brincou o médico, rindo sobre o jornal. – Não entendem nossos problemas.

O administrador entregou-lhe a correspondência.Tornou a colocar o resto na sacola, fechando-a. O médico dispôs-se a ler as cartas pessoais. Antes de abrir um envelope, porém, olhou para o Coronel. Depois para o administrador.

– Nada para o Coronel?

Este sentiu o terror. O funcionário atirou a sacola ao ombro, desceu o embarcadouro e respondeu sem voltar a cabeça:

– Ninguém escreve ao Coronel.”

Gabriel García Márquez, Ninguém Escreve ao Coronel.

 

 

O que é essa postagem?

É uma retratação.

Ou talvez seja melhor definido como a divulgação de uma opinião que mudou.

Para que não restem equívocos, declaro que eu, Aline, gosto muito de Ninguém Escreve ao Coronel e que nunca li nada ruim escrito por Gabriel García Márquez, vulgo Gabo.

Cem Anos de Solidão

Memórias de Minhas Putas Tristes

Claro que existe uma hierarquia, um ranque do melhor (Cem Anos de Solidão) livro para o menos bom (Memória de Minhas Putas Tristes). E apesar de ter revisto minhas opiniões sobre Ninguém Escreve ao Coronel, ele ainda fica abaixo de outras obras do mesmo autor das quais gosto mais. Talvez hoje, esse livrinho curtinho seja o meu 4º Gabo favorito.

Vocês podem dizer: “Mas nem é pódio?”. Se considerarmos que o pódio só cabe três, realmente não tem lugar para ele. Entretanto, sendo um pódio de minha propriedade, decreto que nele cabem quatro vencedores. E Ninguém Escreve ao Coronel leva a medalha de estanho.

Por hora, fica nessa ordem: Cem Anos de Solidão, O Amor nos Tempos do Cólera, Crônica de uma Morte Anunciada e Ninguém Escreve ao Coronel.

O personagem principal, denominado somente de Coronel, se encontra em uma situação de penúria econômica. Na casa dele, onde vive com a esposa e um galo de briga, não há o que comer. Ele vai vendendo pouco a pouco seus parcos pertences para custear a sobrevivência. O estado de desespero realmente não ajudou o Coronel a fazer bons negócios naquelas vendas.

O filho do casal, Augustin, que era o dono do galo, havia morrido há pouco tempo. Esse galo, ao que parece, era um galo campeão. Há expectativas tanto de ganhar algum dinheiro com a rinha ou vender o galo lendário para outros competidores. A primeira expectativa era a opção favorita do Coronel e a segunda da esposa dele.

Todos os dias o Coronel saia de sua casa para verificar se havia recebido uma carta do governo colombiano. Uma carta que esperava há anos e que devia anunciar o pagamento de uma aposentadoria ao Coronel pelos seus serviços na Guerra dos Mil Dias. Todos os dias ele ouvia a negativa dos funcionários dos correios e voltava frustrado para casa.

Esse livro tem um quê de Kafka nessa frustração eterna e no fato de que nenhuma atitude era tomada para resolver a miséria da casa do Coronel que se recusava a fazer qualquer esforço que lhe trouxesse rendimentos, por ter certeza do direito que tinha sobre aquela aposentadoria e de que ela viria. Era como uma questão de honra.

O contexto para Gabo escrever esse livro, veio de uma experiência pessoal e uma histórica da Colômbia.

Comecemos com a pessoal. O jornal colombiano com o qual Gabo colaborava na condição de jornalista, El Espectador, estava lhe devendo pagamento. Todo dia Gabo descia do apartamento em que estava morando em Paris esperando pela carta com a notícia da disponibilidade daquele dinheiro e… nada. Até que um dia chegou a notícia de que o El Espectador havia sido fechado, pondo fim à esperança de recebimento.

Guerra dos Mil Dias.

Agora a histórica. A Colômbia é um país que teve muitos conflitos violentos internos. O século XIX e no XX foram marcados por várias guerras civis, tendo o avô de Gabo participado como oficial do exército na Guerra dos Mil Dias. Esse conflito entre conservadores centralistas (situação) e liberais federalistas (oposição) terminou depois de três longos anos (1899-1902), 100 mil mortes, crianças em batalha e a vitória dos conservadores. Marcou profundamente a história colombiana, mais que as guerras anteriores. O Senhor Nicolás Ricardo Márquez Mejía, avô de Gabo, que era um homem de posses, gastou muito dinheiro custeando a guerra, mas não chegou a passar dificuldades financeiras como as do Coronel. Aguardou a prometida aposentadoria dos combatentes pelo resto da vida em vão.

A absoluta falta de dinheiro e a espera do salário em que se encontrava Gabo, aliada à sua memória do avô aguardando a aposentadoria foi o que precisava como inspiração e mote para Ninguém Escreve ao Coronel.

Esse conflito reapareceria na literatura de Gabo em Cem Anos de Solidão, com o Coronel Aureliano Buendía, que teria lutado nas guerrilhas liberais e renunciado à tal da aposentadoria.

Quando li pela primeira vez Ninguém Escreve ao Coronel, fiquei com muita raiva do Coronel. Muita raiva. Fiquei com raiva da passividade e da teimosia que levaram não só ele, mas a esposa à miséria absoluta. Ao que parece a família vinha sendo sustentada pelas rinhas de galo das quais participava o filho do casal e esse era o único recurso disponível até que a tal da aposentadoria saísse.

A última frase… que ódio da última frase. Estava totalmente imbuída de solidariedade feminina e tomada das dores da esposa do coronel.

Não me entendam mal, terminar o livro odiando o personagem não faz dele um livro ruim. Humbert Humbert que o diga. Talvez meu estado de espírito na época tenha influído na opinião final de um modo como não costuma influir.

Continuo achando que o Coronel era arrogante, iludido e preguiçoso, mas agora vejo o livro com outras cores.

Aí recentemente, dei uma revisitada na trajetória de Gabo. Nesse processo comecei a pensar de novo em Ninguém Escreve ao Coronel, na estrutura dos enredos do escritor e que esse não é um livro de realismo mágico, mas tampouco é uma história corriqueira, pelo menos não para a minha realidade.

O que me fez gostar mais ainda dessa releitura foi perceber os elementos latinos, sobretudo os de Aracataca, como o galo, o homem mais poderoso da cidade que humilha os demais, o orgulho do macho da casa que muitas vezes põe a família em situações difíceis, a rinha de galo.

Para além da empatia despertada pela desolação da esposa, percebi que li errado da primeira vez. Não só sobre o Coronel. É Sobre a vida dos habitantes das pequenas cidades da Colômbia caribenha na primeira metade do século XX. Assim, a nova leitura fez outras conexões, outro sentido e o livro cresceu diante dos meus olhos.

Retiro, em parte, o que disse na postagem do balanço das leituras de 2022 e recomendo, com convicção, a leitura de Ninguém Escreve ao Coronel.

E… Gabo, foi mal aí pelo mal entendido!

Temos outro desagravo? Temos um em trânsito, que talvez se consolide como um desagravo no futuro.

Prepara que o anúncio é forte: resolvi ler de novo, pelo menos a segunda metade de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves.

Foi de euforia descendente a primeira leitura e, sim, posso terminar com as mesmas impressões.

Um Defeito de Cor

Voltando ao que já foi dito antes sobre esse livro: é um enorme, estrondoso, serviço à compreensão sociocultural brasileira e merece (bem merecido) o lugar que ocupa na lista da Folha de São Paulo sobre os 200 livros para entender o Brasil (10º lugar).

Esse livro é muito bom até o fim do segundo terço. Depois achei que perdeu ritmo.

Por que dar outra chance então? Porque não se passou uma semana sequer desde que a leitura foi finalizada que eu não tenha pensado nele.

Um livro que agarra a memória da gente assim, não pode ser menos que sensacional. Ou pode?

Um Defeito de Cor, assim como Ninguém Escreve ao Coronel, nunca foram títulos que eu disse categoricamente que não prestavam ou disse para as pessoas não perderem seu tempo com eles. Desde a primeira leitura, reconheci que eles tinham méritos importantes, mas… tinham aquelas ressalvas… aqueles mosquitos zumbindo ao pé do ouvido, dizendo: “você precisa avisar que talvez a pessoa que leia por sua recomendação também não goste 100% dessa obra”. E aí eu avisava. Até porque ler Ninguém Escreve ao Coronel tem 95 apenas páginas, é moleza. Se não agradar, isso não será um problema. Por outro lado, ler Um Defeito de Cor que, na edição que tenho aqui em casa, possui 952 páginas é um investimento de tempo considerável.

Graças a Um Defeito de Cor, consigo compreender melhor as religiões de matriz africana, rituais como a lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim e ter a perspectiva dos escravizados tanto os nascidos aqui quanto os trazidos da África, de uma forma que ainda não tinha tido a oportunidade.

É para isso que existe a literatura. É esse poder de nos vestir em outras peles, o efeito matrix.

O livro ainda conta como era a vida na África para africanos, ex-escravizados, que conseguiam retornar, para quem nunca saiu de lá, a organização política, social, urbana, rural, econômica de alguns países africanos enquanto o Brasil e grande parte das Américas seguia sendo escravista. E ainda dá conta de como aquele continente tinha que lidar com investidas colonialistas e imperialistas vindas de muitas frentes e que incidiam sobre seus países e territórios de maneiras diferenciadas.

O trabalho de pesquisa da Ana Maria Gonçalves foi exaustivo e muito bem realizado. As passagens em que ela relata os rituais e o pano de fundo da história de Kehinde (ou Luísa Mahin) são minuciosas e bem narradas.

Poxa, mas com tantos elogios, por que não deu cinco estrelas para Um Defeito de Cor?

Porque achei que a liga entre a história principal e o contexto histórico-cultural perdeu força no último terço deste calhamaço. E aí a minha experiência foi de devorar dois terços e depois rastejar até o final. Quem lê 700 páginas de 952 não vai largar o livro inacabado, né?

O Apanhador no Campo de Centeio

É incrível o tanto que eu penso nesse livro. O tanto que várias coisas na TV, na rua, no dia a dia, lembram passagens ou conceitos que aprendi lendo Um Defeito de Cor. Falei dele também no texto sobre Quarto de Despejo.

Quem sabe na releitura não volto aqui para um próximo desagravo?

Por enquanto, o único livro que muita gente celebra e eu sigo detestando é O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Se você tem argumentos para convencer a dar outra chance para ele, o momento é agora, nesse lapso de boa vontade literária que me acomete.

 

MÁRQUEZ, Gabriel García. Ninguém Escreve ao Coronel. Tradução: RODRIGUES, Danúbio. Rio de Janeiro: Record, 2014.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução: CALADO, Antônio. Rio de Janeiro: Record, 2007.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Memória de Minhas Putas Tristes. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: Record, 2008.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: Record, 2020.

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro: REcord, 2020.

SALINGER, J. D. O Apanhador no Campo de Centeio. Rio de Janeiro: Todavia, 2019.