“Anos depois, meus livros sofreriam contestação pelo fato de, supostamente, as referências neles contidas não estarem em sintonia com a minha idade. ‘Como pode alguém nascido em 1994, nos últimos suspiros da geração milenial, escrever romances nos quais os personagens todos com idades próximas à da autora, só escutam – e veneram – artistas como New Order, Depeche Mode, Pixies Iggy Pop entre ouros do mesmo calibre? E essa artificialidade disfarçada de cool que alguns querem vender como ‘a voz de uma geração?’ – escreveu um crítico na revista Istoé.
Aliás, uma contextualização: sou a escritora com as piores resenhas da minha geração. Ninguém foi mais espinafrado, desacreditado e ridicularizado pela mídia especializada do que eu. Sou uma espécie de equivalente literário da Courtney Love. É lógico que também recebi inúmeras críticas positivas; minhas obras sempre foram daquele tipo que torna impossível ao leitor ficar em cima do muro. Mas os espécimes da sub-raça chamada ‘crítico literário’ que decidiram se posicionar contra mim nunca usaram de argumentos tão vis e tão baixos contra nenhum outro autor na história da literatura brasileira contemporânea. Nada que me tirasse o sono; eu apenas me agarrava ao velho chavão ‘não existe publicidade ruim’. As vezes era até divertido, como quando uma crítica me apelidou de ‘Supla da literatura’ por causa do meu costume de misturar frases em inglês e português. A verdade é que, surpreendendo um total de zero pessoas, quanto mais porradas eu levava, mais meus livros vendiam. ‘Late mais alto que daqui eu não te escuto’ – eis aqui uma belíssima referência cultural da minha geração para vocês, críticos, enfiarem no cu.”
Zeka Sixx. Não se começa um incêndio sem uma faísca
Beleza, mais um livro para maiores de dezoito anos.
Pensa na vida de um rockstar nos anos 70, início dos 80. O cara é novo, ganha rios de dinheiro, usa todas as drogas que lhe passam pela frente, dorme cada dia com uma pessoa diferente ou mais de uma*. Esse trator de si mesmo faz shows inesquecíveis, pois ele é realmente bom no que faz, ele também ama os holofotes e a fama de desregrado que inclusive luta para manter. Sabe como? É daquelas pessoas cujo aniversário mais comemorado é o dos 28 anos (entendedores, entenderão).
Agora pega essa vida louca e põe um rostinho de mulher. Não é uma rockstar, é uma escritora de livros eróticos, com uma vida muito sem limites, ligada no modo “Eu quero é ver o oco”. Essa é Bianca Rossi, uma das personagens principais de Não se começa um incêndio sem uma faísca.
Só por essa premissa, já vale a leitura.
Bianca mesmo está prestes a comemorar seus 28 anos. E essa é apenas uma ligação com o mundo louco da vida de celebridade autodestrutiva ou à cultura pop presentes nesse livro coalhado de referências. Eu amo isso com todas as forças: referências a outras coisas, sejam pessoas, livros, filmes, séries, fatos, músicas. Fico me sentindo a rainha do quiz quando reconheço as referências sem precisar do Google.
Isso foi uma maravilhosa surpresa. E como é literatura contemporânea, euzinha já estava nesse mundo quando grande parte das coisas mencionadas ocorreu.
Outro ponto para o livro é a disputa sobre que década era melhor culturalmente falando: os anos 80 ou os 90?
E aí, meus amigos, a briga é feia. Ainda mais que essa pessoa, que agora lhes denuncia a própria idade, foi adolescente nos anos 90. Boa parte de minha bagagem cultural formou-se naquela década quando comecei a desenvolver meus próprios gostos. Nos anos 80 eu era criança, mas tenho a memória de muito do que aconteceu naqueles dez anos, inclusive porque continuam a ser sucesso.
O título do livro é baseado na frase “You can’t start a fire without a spark” da música Dancing in the Dark de Bruce Springsteen, lançada em 1984. É tanta referência musical que ao final do livro Zeka Sixx incluiu uma lista delas e um link para spotfy com a playlist pronta. Tem coisa melhor que ouvir as músicas enquanto lê sobre elas e seus efeitos nas vidas dos personagens?
Nesse ponto é que a vida de Bianca “Sem Freios” Rossi cruza com a de Vicente José “Ladeira Abaixo” Santos Correia, popularmente conhecido como Vic.
Ele é uma pessoa na casa dos 40 anos de idade, desfazendo o casamento quase perfeito para sentir nas veias a juventude esvaída. Isso tem nome: crise de meia idade.
Ela uma pessoa extremamente inteligente, traumatizada com a morte precoce do irmão e outras cousitas, manipuladora, independente, decidida.
Frisemos que nenhum dos dois é uma boa pessoa. Egoístas no osso.
Os dois, Vic e Bianca alternam a narração em primeira pessoa. O final é ótimo. Curti bastante o desfecho da obra.
Os personagens secundários são realmente secundários, alguns com mais camadas, como a ex-esposa e o melhor amigo de Vic, e outros mais planos embora interessantes, como a dupla de melhores amigas de Bianca.
Esclareço, caso tenha ficado alguma dúvida, que se trata de um livro hot. É um livro com cenas eróticas, acontecendo num contexto interessante. Além da cena cultural, ele vai tratar de crise de meia idade, tretas políticas do Brasil das eleições presidenciais de 2022, drogas para uso recreativo e dependência química, redes sociais… É um livro sobre a vida contemporânea e insana que a humanidade leva.
Concordei com tudo? Não. Algumas frases me causaram um certo incômodo, como já disse não temos pessoas bacanas e sensatas no livro (exceto talvez a ex esposa de Vic). Pelo menos o casalzinho principal compartilha minha escolha na última eleição presidencial (rsrs).
Há que se considerar que algumas opiniões sobre a estética das pessoas, estão embebidas num conteúdo clássico do mainstream erótico. Logo, rola aquele elogio ao corpo sexy de padrões inatingíveis para a maioria dos mortais. Para ser justa, os personagens vão descobrir essa inatingibilidade e que a juventude eterna não existe. Essa reflexão é legal.
Pode ser que alguns leitores se incomodem com a quantidade de termos em inglês. O que para mim significa zero problema, até porque eu uso vários termos estrangeiros no meu dia a dia. Aliás achei a cara dos personagens, para eles fez todo sentido. Além dos trechos de música que são praticamente todos em inglês e que, como já comentei, são referências que tornam a leitura irresistível.
Esse ano é o ano de Porto Alegre nesse site: Ela se chama Rodolfo, da Julia Dantas, abriu o espaço dos gaúchos, depois foi a vez de O avesso da pele, do Jeferson Tenório, e agora Não se começa um incêndio sem uma faísca, do Zeka Sixx. A cidade é bem importante nos três. Deu vontade de fazer um roteiro de viagem para conhecer melhor Porto Alegre segundo o ponto de vista desses três escritores: a primeira vai fazer você conhecer até o mais escondido cantinho da capital do Rio Grande do Sul; o segundo vai te mandar para um circuito mais acadêmico/cultural cult e para algumas periferias; e o último vai mostrar a boemia, a diversão noturna. Três roteiros distintos para públicos distintos ou para quem curte de tudo um pouco.
Hank Moody (Dave Duchovny), personagem principal da série de TV Americana Californication, é Bianca Rossi batida no liquidificador com Vic. Ele é um usuário de drogas lícitas e ilícitas em grande escala, escritor, pega todas as mulheres da série sem se envolver emocionalmente com nenhuma. Sua porção Vic, mostra um homem que se recusa a envelhecer, assumir responsabilidades da vida adulta ou mesmo os próprios BOs. Apenas assisti à primeira temporada de Californication, que é bem interessante. Quem sabe um dia não retomo?
Outra personagem que me lembrou a Bianca Rossi foi Catherine Tramell (Sharon Stone) em Instinto Selvagem, um clássico do cinema para maiores de dezoito anos, thriller erótico, dirigido por Paul Verhoeven (outro filme desse diretor é citado algumas vezes no livro: Show Girls).
Instinto Selvagem já começa com um assassinato. Um astro de rock recebe várias estocadas no corpo enquanto fazia sexo com alguém, cujo rosto não vemos, e essa mulher misteriosa usa como arma do crime um picador de gelo. O crime é cometido exatamente como acontece no best seller da escritora Catherine Tramell.
Catherine é uma escritora de romances com uma pegada erótica/suspense. Pela óbvia inspiração da assassina ter vindo de páginas escritas por Tramell, a autora se vê como principal suspeita.
Semelhanças entre Cahterine e Bianca: as duas são mulheres lindas e sexy, inteligentíssimas, manipuladoras, donas de si, usam as pessoas e suas histórias como laboratório para escrever seus livros.
As semelhanças entre Instinto Selvagem e Não se Começa um Incêndio sem uma Faísca, começam e terminam nas personagens femininas principais e no erotismo. Um deles é um thriller e o outro um drama.
SIXX, Zeka. Não se Começa um Incêndio sem uma Faísca. Guaratinguetá: Penalux, 2023.
KAPINOS, Tom. Californication. EUA: Showtime, 2007-2014.
VERHOEVEN.Paul. Instinto Selvagem. EUA; França & UK: Tristar Pictures, 1992.
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