
Mrs. Dalloway
“Depois lembrava que tinha ficado ao lado da cadeira da velha Miss Parry na sala de visitas. Clarissa apareceu, com suas maneiras perfeitas, como uma verdadeira dama dando uma recepção, e quis apresentá-lo a alguém – falava como se nunca tivessem se visto antes, o que o enfureceu. No entanto, mesmo então ele a admirou por isso. Admirou sua coragem; seu instinto social; admirou seu poder de dar andamento às coisas. “A perfeita dama de sociedade”, disse-lhe, ao que ela se retraiu de vez. Mas ele fez de propósito. Faria qualquer coisa para feri-la, depois de vê-la com Dalloway. Assim ela o deixou. E ele teve a sensação de que estavam todos unidos numa conspiração contra ele – rindo e falando – por trás de suas costas. Lá ficou ele ao lado da cadeira de Miss Parry como se fosse entalhado em madeira, falando de flores silvestres. Nunca, nunca tinha sofrido de forma tão infernal! Decerto esqueceu-se até mesmo de fingir que estava ouvindo; por fim despertou; viu Miss Parry um tanto desconcertada, um tanto indignada, com os olhos salientes encarando-o fixamente. Ele quase gritou que não conseguia prestar atenção pois se sentia no inferno! As pessoas começavam a sair da sala. Ouviu falarem em mandar trazer as capas; que estava frio no lago, e assim por diante. Estavam indo passear de barco ao luar – uma das maluquices de Sally. Ele a ouvia descrevendo a lua. E todos saíram. Deixaram-no totalmente só. – Você não quer ir com eles? – disse tia Helena – pobre senhora! – tinha adivinhado. E ele se virou e ali estava Clarissa outra vez. Ela tinha voltado para pegá-lo. Ele se sentiu conquistado por sua generosidade – sua bondade. – Venha – disse ela. – Estão esperando. Ele nunca se sentira tão feliz em toda a vida! Sem uma palavra se reconciliaram. Desceram ao lago. Ele teve vinte minutos de plena felicidade. A voz dela, o riso, o vestido (algo flutuante, branco, carmesim), a vivacidade, o espírito de aventura; ela fez todos desembarcarem e explorarem a ilha; assustou uma galinha; riu; cantou. E o tempo todo, ele sabia muitíssimo bem, Dalloway estava se apaixonando por ela; ela estava se apaixonando por Dalloway; mas parecia não ter importância. Nada tinha importância. Estavam sentados no chão e conversavam – ele e Clarissa. Entendiam-se, um lia os pensamentos do outro sem qualquer esforço. E então num segundo acabou-se. Disse consigo mesmo quando entravam no barco, “Ela vai se casar com aquele homem”, num tom apagado, sem nenhum ressentimento; mas era uma coisa óbvia. Dalloway ia se casar com Clarissa.”
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway.
Eu amo Virginia Woolf! Sei que ela não é uma unanimidade, que muitas pessoas consideram seus livros herméticos ou muito lentos. Não li tudo dela, mas o que li achei maravilhoso. É o tipo de autora que sempre estará em minha estante.
Daqui a uns dias, conforme prometido no texto sobre A Filha Perdida, de Elena Ferrante, faço um dedicado à Um Teto Todo Seu.

Virginia Woolf
Mas, dia 25 de janeiro de 2022, ela comemoraria o aniversário de 140 anos. Então, em tributo, falemos de seu livro mais conhecido: Mrs. Dalloway.
É um preferido da vida. Está ali lado a lado com Lolita ou O Som e a Fúria (aliás preciso atualizar ou fazer mesmo uma nova lista de preferidos, ampliando a anterior. Lá para o meio do ano, porque minha lista desse semestre tem vários com potencial para adentrar essa lista. Aguardem!).
É uma estrutura diferente. A própria Virginia ficou admirada com o sucesso do livro na época de lançamento porque não esperava agradar a tantos leitores.
Mrs. Dalloway acompanha um dia de junho em Londres. Um dia que começa com a senhora Clarissa Dalloway indo buscar as flores que adornarão a festa que ela dará naquela noite e termina com a festa propriamente dita.
Então é um livro sobre Clarissa Dalloway? Sim e não. Ela certamente é uma personagem muito importante, mas não dá para dizer que outros personagens não sejam tão centrais quanto ela. Peter Walsh, Septimus Warren Smith e Lucrezia Warren Smith são tão importantes quanto ela.
Além desses principais outros personagens são muito importantes: a filha de Clarissa, Elizabeth Dalloway; o esposo, Richard Dalloway; Hugh Withbread; o médico psiquiatra; a esposa do médico; a senhora que escreve cartas para os jornais.
Como pode um livro de menos de duzentas páginas, que se passa em um único dia, ter tantos personagens fundamentais? Isso tem a ver com o enredo.
Exceto por uma única passagem, não há sobressaltos. Há apenas um plot twist e ele não é o coração do livro nem de longe. É como se uma pulga pulasse de pessoa em pessoa nos ombros dos que passam pela rua e pudesse ler a mente do hospedeiro.
Como já foi dito, tudo começa com Clarissa Dalloway indo á floricultura. Nesse ponto, ficamos sabendo que ela faz festas disputadíssimas para a alta sociedade londrina e que ela tem muitos afazeres naquele dia para que a festa seja perfeita. Enquanto ela está na floricultura há um acidente de carro, mas não qualquer carro, os passantes ficam intrigados porque dentro daquele veículo pode estar ou o primeiro ministro ou o príncipe de Gales ou a própria rainha. E é mais ou menos aí que Woolf sai da mente de Clarissa e pousa na mente de Lucrezia, uma italiana casada com um ex-combatente da primeira guerra chamado Septimus. Então vamos saber as expectativas que Lucrezia (Rezia) tinha ao se casar com ele e como essas foram atendidas ou frustradas e também saberemos que ele tem problemas psicológicos em decorrência da sua experiência na guerra.
E é isso. Muitos fluxos de pensamento. Um atrás do outro. Cada personagem com sua perspectiva sobre a vida, sobre Londres, medos, desejos, frustrações, autopercepção.
É a coisa mais linda. Eu gosto de marcar meus livros com post its. Não escrevo neles, a menos que sejam livros de estudo. Marco as passagens que mais gosto e faço observações. Mrs. Dalloway deu vontade de marcar inteiro.
É muito intimista. Sem que grandes acontecimentos mudem rumos, ele produz ora leveza ora agonia. É uma lição e tanto de como não sabemos o que se passa com o próximo, apenas por vê-lo passar. O que sabemos dos que nos cercam é apenas o que nos deixam entrever. Ninguém faz ideia das lutas internas que os outros travam.
Isso numa perspectiva humana dos personagens. Outra perspectiva e aí mais histórica está na observação dos costumes da sociedade inglesa na década de 20 e também em como os personagens lidavam com o pós-guerra. Por exemplo Clarissa tentava tocar a vida deixando qualquer tristeza para trás. Dando festas, se preocupando com o vestido, com as obrigações sociais. O marido dela demonstra preocupação com necessidades coletivas dos ingleses e com sua sobrevivência no meio político. Peter Walsh, amigo de Clarissa, está pensando em sua situação conjugal e refletindo sobre as diferenças entre Londres e a Índia.
Vi em alguns textos de apoio que Septimus Warren Smith é apontado como o contrário comportamental da Senhora Dalloway. Ele faz todas as tentativas protocolares para tentar retomar a vida, mas simplesmente não consegue superar os horrores da guerra. Septimus não vê sentido em voltar à vida social e continuar vivendo segundo regras que se tornaram sem sentido.
Clarissa, em seus devaneios, dá a entender que tinha uma questão a resolver sobre sua sexualidade, pois chegou a se interessar pela amiga Sally na juventude. Ainda sobre a vida amorosa de Clarissa, Peter Walsh era um dos pretendentes a se casar com ela. E ela parecia gostar mais dele do que de Richard Dalloway. Entretanto, por uma questão social, ela renuncia tanto a Sally quanto a Peter.
Isso é visto de outra perspectiva, ao acompanhar a mente de Peter enquanto ele caminha por Londres. Peter, em um dado momento, vai lembrar de como tinha a expectativa de se casar com ela, o quanto a amava (e ainda ama) e o dia em que conheceu Richard. Naquele fatídico dia, o coração de Peter foi despedaçado e ele teve a certeza de que mesmo gostando mais dele, Clarissa se casaria com Richard Dalloway.
É uma cena de tristeza cortante. Quem nunca tomou um toco que atire a primeira pedra.
Outro personagem que teve uma decepção gigantesca nesse mesmo modelo de expectativa versus realidade, foi Tom Hansen, personagem principal de (500) Dias com Ela, título original: (500) Days of Summer. Há mais de uma interpretação sobre se o personagem Tom, vivido por Joseph Gordon-Levitt, era um homem apaixonado, leal e ideal desperdiçado por Summer (personagem de Zooey Deschanel) ou se ele era boy lixo.
Eu acho que ele era gente boa, mas virou um boy lixo, visto que ela foi sempre muito clara com ele sobre o fato de que não queria um relacionamento sério. As expectativas, ele criou sozinho e exagerou na insistência. Perdeu a linha.
O personagem Tom cresceu ouvindo The Smiths, Pixies e outras bandas que tem músicas com letras românticas, sobre o amor sufocante (a trilha sonora é muito muito boa). Ele internalizou as letras e se tornou uma pessoa que espera o amor ideal, a alma gêmea. Então, um dia, aparece no escritório em que ele trabalha uma mulher chamada Summer.
Ela é a praticidade em pessoa. Não idealiza nada e não quer se comprometer com ninguém. Acontece que Summer é fã das mesmas bandas que Tom e compartilha vários interesses com ele. É aí que começa o crush por parte dele.
Repetindo para não deixar dúvida: Summer não engambelou o donzelo. Ela é muito honesta quanto a suas necessidades emotivas e seu interesse por Tom.
Mesmo assim, eles têm um relacionamento que, desde o crush até que Tom consiga virar a página, vai durar 500 dias.
No meio dessa confusão, quando eles já não estão mais juntos, mas Tom ainda está apaixonado, Summer o convida para uma festa em seu apartamento. E lá, em tela dividida, acompanhamos Tom em expectativa e realidade, sendo que na expectativa eles reatam e na realidade ela está noiva de outro.
Corações se partem em mil pedaços. Tanto acompanhando a decepção de Peter Walsh quanto a de Tom Hansen.
Falando em expectativas… Agora preciso dizer que um presente extra, um bônus, que esse livro me deu foi a cidade de Londres. Não sou uma grande conhecedora do mundo, mas uma das viagens internacionais que fiz e que mais superou as minhas expectativas (que já eram altas) foi a capital da Inglaterra.

Temple, distrito jurídico em Londres/ UK.
Todos os personagens transitam por Londres e vão mencionando ruas, prédios, regiões, museus e monumentos. Entretanto, Peter Walsh e Elizabeth Dalloway o fazem de uma maneira específica. É como uma ode a Londres. Um pelas ruas que o remetem a civilização e às suas diferenças em relação à Índia e a outra porque quer justamente sair das quatro paredes de sua vida burguesa, como diria Walter Benjamin ao tratar da figura do Flâneur.
Para Walter Benjamin o escritor que seria a própria definição do que é um flâneur foi Charles Baudelaire e sua relação com a cidade de Paris no final do século XIX. Uma pessoa que se sente a vontade andando pelas ruas e observando a cidade. Embora para alguns o flâneur esteja apenas caminhando e realizando o que ele chama de “botânica no asfalto”, o flanador está na verdade fazendo uma “pesquisa” encarando o espaço urbano e as multidões como matéria prima de seus estudos, que no caso de Baudelaire se transformavam em poesia.
É certo que a boemia também é uma faceta do flâneur e isso apenas se aplica ao personagem Peter Walsh, mesmo assim em certa medida.
Mas pegando o conceito aplicado às diversas obras e autores aos quais recorre Walter Benjamin ao falar do flâneur, Elizabeth também era uma pessoa que caminhava em Londres absorvendo a atmosfera da cidade e conjecturando sobre suas vontades à despeito de sua classe social ou das expectativas que os pais tinham para ela. Ela se despede da preceptora, pega um ônibus e desce em um ponto de ônibus que não era o seu para explorar a cidade, mais especificamente a City of London, que era e ainda é a região de negócios, frenética. Lá ela pensa que gostaria de ter uma carreira, de trabalhar nos escritórios, visita a região conhecida como Temple, um distrito jurídico, e ali vai até a igreja em que estão supostamente enterrados os templários, vai até a Catedral de São Paulo, observa os transeuntes, se indaga sobre como deve ser a vida deles.
Já Peter tem uma outra abordagem, a caminhada dele também é longa e também tem o objetivo de observar a cidade. Enquanto anda ele questiona o que estava fazendo de sua vida na Índia e de como estava suficientemente enrolado para simplesmente retornar a residir na Inglaterra. Não darei detalhes sobre o que prendia Peter à Índia. Apenas vamos acompanha-lo na condição de flâneur. Ele se admira com a beleza e a organização da cidade. Em meio às reflexões e comparações vemos que ele não tem queixas de suas condições de vida na Índia, apenas constada que são realidades diferentes. Até porque ele morava na colônia na condição de aristocrata inglês, o que lhe conferia muitas mordomias.

Oxford Street, Londres/UK.
A cada local descrito por Peter ou por Elizabeth a cidade volta vívida na minha memória. Delicioso!
Quem sabe um dia a libra esterlina volta a ter uma cotação aceitável… Façamos figas!
Feliz aniversário, Mrs. Woolf!
WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Tradução: BOTTMANN, Denise. Porto Alegre: LP&M, 2013.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico do Capitalismo. Tradução: BARBOSA, José Carlos M. & BAPTISTA, Hemerson Alves. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
WEBB, Marc. (500) Dias com Ela. Estados Unidos: Fox, 2009.
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