Capa de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

“Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

 Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

 Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

— Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos”

ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

 

 

Essa foi uma releitura. Já havia lido Memórias Póstumas de Brás Cubas duas vezes, tendo sido a última para o vestibular lá para os últimos anos da década de 90. Lembro de ter gostado muito, mas não tinha mais em mente os detalhes da história, apesar de uma das frases sempre ter martelado a cabeça desde a primeira leitura: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Não há explicação de porque essa frase e não outra em um livro cheio, repleto, abarrotado de frases geniais, com destaque para a dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Um livro, que antes mesmo de começar a história, abre com essa frase, só pode ser genial. Igualmente genial é a frase de encerramento. Entretanto, contar o final do livro é sacanagem e não a reproduzirei aqui.

Por essa experiência, recordei porque Machado de Assis é considerado por muitos leitores o melhor escritor nacional e a resposta é simples: de fato ele é.

O ranking dos 5 livros mais amados da vida acaba de ser alterado novamente, não por uma arrebatadora experiência inédita, mas por uma releitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Acabaram de entrar na lista das urgências as releituras de Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó

“Ah! Dizer que ama Machado de Assis é um clichê…”, dirão as más línguas. Respondo: Queridos, os clichês têm uma razão de existir. Machado de Assis é o cara.

Sem mais devaneios e puxa-saquismos, passemos à trama de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Digamos que o personagem principal, que se define não como um autor defunto, mas um defunto autor, em vida não tenha padecido nunca de problemas com autoestima. Aliás, nunca padecera e ponto. O dinheiro e as oportunidades lhe vieram de bandeja. Ele nunca se casou, por infortúnios do acaso, o que pode ser também visto como sorte, pois não amava suas pretendentes, pelo menos não enquanto eram suas pretendentes. O pai era um bajulador do filho, a mãe também. Arrogante, irresponsável e ensimesmado, Brás foi um homem de sorte.

Brás Cubas primeiro amou Marcela, uma espanhola que vivia no Brasil e era apaixonada por um militar, mas ficava com Brás porque ele a cobria de joias e outros regalos. Quando a fonte secou, Marcela saiu de cena.

Depois foi noivo de Virgília, casamento que viria acompanhado de um cargo público. O cargo ele queria, o casamento nem tanto. Enquanto ponderava sobre “casar ou comprar uma bicicleta”, Lobo Neves fez seu pedido de casamento prometendo a Virgília ainda mais status social que Brás poderia oferecer, e ela, que assim como todos os personagens do livro era um tanto interesseira, aceitou. Assim que Virgília se tornou esposa de Lobo Neves, o interesse de Brás Cubas por ela floresceu. Ela foi o maior amor correspondido que ele teve.

Houve outras duas pretendentes, Eugênia e Nhá Loló. Uma ele descartou por motivos detestáveis e a outra faleceu pouco antes do casamento.

Ele mesmo diz que ter morrido, de pneumonia, aos 64 anos e solteirão não reúne as características de uma morte trágica.

Essa obra é basicamente a história irônica de um homem que jamais amadureceu e para quem a sorte sorriu desde sempre. Uma crítica hilária da sociedade brasileira, sobretudo a carioca, posto que se passa no Brasil, século XIX, na sede do império que era a cidade do Rio de Janeiro. O livro esmiúça nos personagens Brás Cubas, Lobo Neves, Quincas Borba, Marcela e Virgília, várias facetas da hipocrisia humana.

Juntamente com Quincas Borba, fundador da filosofia nomeada Humanitismo, Brás justifica com ares acadêmicos, todas as pilantragens e desvios de caráter que possui. Sendo essa convivência responsável por algumas das melhores passagens do livro.

Inclusive o humanitismo se parece com algumas das pregações pseudo-filosóficas que embasam muitas justificativas atuais para preconceitos e más tendências de caráter. Visto que Memórias póstumas de Brás Cubas fez em 2021 cento e quarenta anos de sua primeira publicação, isso pode indicar que, em alguns pontos, a humanidade anda de lado e não para frente. Outras correspondências com a atualidade estão nas sequelas e mortes provocadas por epidemias de varíola e febre amarela, uma marcando para sempre a pele da primeira amada e a outra matando a noiva, Nhá Loló.

Ainda no campo da saúde, Brás Cubas teve a ideia do “Emplasto Brás Cubas” que seria um miraculoso remédio para todas as doenças que podem acometer a raça humana: “Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.” Esse emplasto que ele não conseguiu desenvolver, era a aposta de Brás Cubas para escrever seu nome no panteão da ciência. Ele seria um notável. Ainda bem que ninguém na vida real inventa medicamentos, sem lastro científico, apenas para se promover ou enriquecer. Ufa!

A obra inteira é sobre um personagem autocentrado sem dúvida, mas o melhor para o definir seria o adjetivo delirante.

Entre os curtos capítulos, o mais longo é o intitulado “O delírio” quando em um transe que antecede a morte do defunto autor, ele é conduzido em uma vastidão de neve por um hipopótamo que seria um guia espiritual. Esse guia leva Brás Cubas á ninguém menos que Pandora. Nesse delírio, ela seria a responsável por conceder e por tirar a vida dos humanos e sua conversa com Brás Cubas o leva a refletir sobre a inutilidade de sua existência.

Em 2001 foram lançados dois filmes importantes para esse texto, ambos disponíveis no Prime Vídeo. O primeiro é um filme brasileiro baseado nesta maravilhosa obra que aqui analisamos e de mesmo nome: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse filme ganhou cinco Kikitos no festival de cinema de Gramado. Conta com a hilária interpretação do defunto autor por Reginaldo Faria e, a meu ver, teve uma excelente solução de baixo orçamento para a passagem do delírio. É claro que estamos falando de um filme, logo a história é por vezes resumida, o encontro de Brás com o hipopótamo, por exemplo foi representado por um hipopótamo que parece um cavalo de carrossel, com rota definida e sem vida, ao passo que o do livro trava com o protagonista uma cena louquíssima.

Poster do filme Donnie Darko.

O segundo filme é bem mais tenso, confuso e medonho. O outro protagonista que tem delírios com um personagem insólito é Donnie Darko, no filme Donnie Darko. Apesar de não haver spoiler capaz de estragar a experiência de assistir a esse filme, tentaremos não oferecê-los.  Donnie Darko é um jovem do ensino médio, que tem problemas psiquiátricos. Em um dado momento de sua vida ele começa a ter visões de um coelho gigante e monstruoso que o manda fazer coisas e o apresenta habilidades que ele desconhecia ter. A primeira aparição desse coelho salva Donnie da queda de uma turbina de avião em cima do seu quarto. Depois disso, Donnie passa a cometer atos delinquentes sugeridos pelo tal coelho que se chama Frank. Frank anuncia a Donnie exatamente quanto tempo falta para o fim do mundo, no caso seriam 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos. Nesse período coisas estranhíssimas acontecem.

Até a definição do gênero cinematográfico desse filme é difícil, porque ele atende a várias. É terror, por causa do coelho e das coisas sobrenaturais que acontecem, é drama por causa da história de Donnie e de Gretchen, sua namorada, bem como outras histórias paralelas, é ficção científica por aludir a viagens no tempo e universo paralelo.

O hipopótamo de Brás Cubas certamente era uma melhor influência do que Frank fora para Donnie Darko. Os diálogos e contatos entre o rapaz e o coelho são mais frequentes, com outra temática, mas tão loucos quanto o do hipopótamo e o moribundo.

Sobre sonhos ou delírios e animais fantásticos capazes de mudar a vida do contemplado, vale mencionar a história dos Alebrijes. Quem assistiu a animação da Pixar Viva: a vida é uma festa, deve se lembrar dos animais multicoloridos que protegem os humanos no mundo dos mortos numa função parecida com a dos anjos.

Alebrije de Papel Marchê.

Os Alebrijes foram criados em 1936, pelo escultor mexicano Pedro Linares Lopez. A inspiração para criar essas esculturas veio a ele em um sonho durante um delírio febril.

Segundo Lopez, no sonho havia árvores, animais e pedras que se transformaram em animais muito coloridos e misturados, como macacos com asas de borboleta, galo com chifres de touro e leão com cabeça de águia, todos eles gritando a palavra “Alebrijes”.

Ao acordar ele passou a fazer esculturas desses animais fantásticos em papel marchê. O trabalho de Pedro fora chancelado por Frida Kahlo e Diego Rivera e se tornou tradição e produto de diversos artesãos por todo o México, sejam os de papel marchê ou os de madeira, produzidas na região de Oxaca.

Deixo-lhes com as duas músicas mais marcantes do filme Donnie Darko, ambas da banda britânica Tears for FearsHead over Hills e Mad World, cujas letras têm tudo a ver com o tema desse texto.

 

KLOTZEL, André. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Brasil: Brasfilmes, 2001.

KELLY, Richard. Donnie Darko. EUA: Flashstar, 2001.

ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Antofágica, 2019.