
SPIEGELMAN, Art. Maus.

Maus
Art Spiegelman é um cartunista norte americano, judeu e filho de um casal sobrevivente do holocausto. Maus: A história de um sobrevivente é a história Vladek o pai de Art.
Maus, que é uma grafic novel foi a única obra em quadrinhos a vencer o prêmio Pulitzer até agora. Isso aconteceu em 1992 e foi criada para essa obra uma categoria especial, pois não se encaixava nem em ficção nem em biografia.
Essa HQ foi publicada em duas partes, sendo a primeira em 1986 e a segunda em 1991. Aqui vamos comentar a edição que traz a história completa e sai pela Quadrinhos na Cia.
Art entrevista seu pai para compor uma HQ com a história dele durante a Segunda Guerra Mundial. A família é judia, de origem polonesa. A mãe de Art já é falecida e Vladek se casou novamente com outra judia, polonesa, também sobrevivente do holocausto.
Pense numa pessoa difícil? Esse é Vladek. Um dos personagens mais geniais que já tive o prazer de ler. Art vai contando as tristezas da vida do pai sem aliviar nada nos seus defeitos. Ele é ranzinza, implicante, pão duro, racista e por aí vai. Vladek não tem mais condições de saúde para morar sozinho. Quem cuida dele é Mala, a segunda esposa, com quem ele implica o dia todo, todos os dias. Mala está no limite da paciência.
Paralelo ao cotidiano de Vladek, Art vai narrando o tempo em que os pais sobreviveram aos horrores do nazismo sobre a população judia na Europa. As humilhações, o racionamento de alimentos, os esconderijos, a morte de parentes amados, os campos de concentração (sim, “campos” no plural, eles passaram por mais de um), a criatividade para driblar dureza da vida. Vladek aprendeu a se safar, a usar a inteligência para não morrer e ainda tentar ajudar amigos, parentes e, sobretudo, Anja.
Foi gradual a mudança de status de judeus abastados para perseguidos. Essa condição de riqueza pré-guerra fez diferença na sobrevivência, fica patente que os judeus menos favorecidos antes de 1939 tiveram maior dificuldade para seguirem vivos depois.

Gueto Judeu/ Cracóvia, Polônia
Até aqui já sabemos que para se diferenciar das histórias de holocausto Art Spiegelman falou do pai no presente deixando claro que não era um santo que a humanidade quase perdeu para o mal. Ele tinha defeitos e muitos. Também se trata de uma HQ e não de um filme ou romance em prosa.
Além do personagem Vladek em si, outro enorme trunfo de Maus é a simbologia. É uma fábula. Os personagens são representados como animais irracionais: judeus são ratos, alemães são gatos, poloneses não judeus são porcos, estadunidenses são cães e franceses são sapos.
Veja bem: gatos comem ratos, porcos não comem nenhum dos dois, mas também não tem apreço por eles, não se sacrificariam para salvá-los. Cães comem gatos e acabam assim ajudando aos ratos. Apesar de serem representados como ratos, gatos e cães, na narrativa o autor se refere aos personagens como homens. Diferentes por fora, iguais na essência. Sobre esse assunto da representação em Maus e da desumanização de etnias para facilitar a dominação de um povo sobre o outro, recomendo o vídeo do canal Quadro em Branco sobre Maus, no Youtube.
Também é importante para a trama e a diferencia de outras sobre o mesmo tema o drama vivido por Art enquanto escreve a história, principalmente na segunda parte, depois do sucesso estrondoso da primeira que foi lançada cinco anos antes.
Achei tudo perfeito. Não tem um trecho dispensável. Não tem personagem sobrando. Mereceu o Pulitzer que ganhou e virou uma das melhores obras lidas por mim. É um livro triste, como qualquer coisa que trate do holocausto não escaparia de ser. É também engraçado, quando fala de Vladek no presente, e frenético, porque condensa anos de vida intensa em apenas trezentas páginas.
A maior parte da vida de Vladek durante a Segunda Guerra se passa na Polônia, seja indo de cidade em cidade, seja em campos de concentração. A cidade de onde eles são e a mais citada é Sosnoweic, que é perto de Cracóvia, uma das viagens mais interessantes que eu fiz na vida. Foi apenas um fim de semana, que valeu por um mês.

Auschwitz. Campo de Concentração. Polônia.
Comentei essa viagem no texto sobre No Caminho de Swann, primeiro livro da obra Em Busca do Tempo Perdido de Proust.
Proust fala de lugares que representam a “conquista da verdade” e entre os exemplos da minha experiencia pessoal, falei brevemente sobre a visita ao local onde era o campo de concentração/extermínio Aushwitz-Birkenau, que fica nos arredores de Cracóvia.
Não estive nas cidades citadas por Art no livro Maus, mas gostaria de falar um pouco mais da viagem à Cracóvia porque ela representa a “conquista da verdade” não só por aquele complexo de prédios que são a representação do mal entijolado, mas porque a cidade em si é uma aula de história, é quase um curso de história europeia.
Anja era uma judia rica e Vladek não era mau de condição financeira quando eles se apaixonaram e se casaram. Com o tempo eles vão sendo espremidos pelo regime nazista e vão ocupando outros cenários nas imediações, como os guetos judeus, esconderijos, campos de concentração. Vão trabalhando em outras funções que não as suas escolhas profissionais apesar de suas qualificações. E o pior de tudo, vão morrendo aos montes. Assistem suas famílias serem dizimadas.
Cracóvia é assim: você desce na estação de trem no centro da cidade e a poucos passos vai topar com o centro medieval. Ali o queixo da gente desaba. Que maravilha. É tudo lindo, grande, diferente do medieval inglês, francês, espanhol por exemplo. É bem mais próximo de Cinderela que de O Nome da Rosa. A praça principal se chama Stare Miasto. E é um deleite para os olhos, assim como o palácio, que tem seus muros e se chama Wawel.

Wawel
História medieval: check.
Nesse circuito da Cracóvia antiga, cuja catedral data de 1026, o personagem mais reverenciado é Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II. A Polônia é um país bastante católico. Tem até máquina do tipo vending machine para comprar suvenir com o rosto do papa estampado. Ele não era um cracoviano, mas é um dos poloneses mais ilustres, e aquela é a cidade mais turística do país.
Aí você pega um bonde e desce até uma parte mais moderna da cidade. Ali vai encontrar casas do final do século XIX até meados do XX. E é nessa parte da cidade que fica o Gueto. Local para onde foram mandados os judeus poloneses depois de confiscadas suas casas. São prédios bem simples, geminados, ruas estreitas. Bem na entrada do gueto, na praça dos Heróis do Gueto, há uma instalação permanente, em que foram dispostas cadeiras vazias simbolizando os 65 mil judeus mortos da Cracóvia na Segunda Guerra. O clima nessa região não lembra Cinderela no baile, talvez a gata borralheira enquanto é explorada pela madrasta carrasca. Não tem nada da beleza da cidade velha.

Stare Miasto
Então vamos nos aproximando, a pé mesmo, dos bairros construídos durante a guerra e depois quando a Polônia foi parte da União Soviética e esteve sob o comando de Moscou.
Os prédios são retos, lisos e funcionais. Não é bonito. Nessa região encontramos por exemplo a Fabrika Oskara Schindlera (Fábrica de Oskar Schindler). É possível visitar a fábrica de panelas que hoje é um museu.
Recomendo o filme A Lista de Schindler (1993), dirigido por Steven Spielberg, que conta, romanceadamente, a história de, Oskar Schindler, homem que salvou cerca de 1200 judeus da morte. Esse filme foi indicado para 12 categorias do Oscar, vencendo 7, incluindo melhor roteiro adaptado, melhor direção e melhor filme. Venceu também sete Baftas e três Globos de Ouro.

Fabrika Oskara Schindlera
Era possível a membros do partido nazista usar mão de obra judia em seus negócios. Esses homens e mulheres ficavam a salvo dos campos de concentração e dos assassinatos em massa enquanto trabalhassem para o lucro de um membro do partido. Dessa forma, inicialmente para explorar mão de obra barata e depois para salvar o máximo de pessoas possível, Oskar Schindler salvou centenas de pessoas. Quem fizesse parte da lista de funcionários das fábricas Schindler estaria a salvo. Muitas dessas pessoas chegaram a ser levadas para campos de extermínio e foram liberadas por seus nomes constarem na tal lista.
Schindler hoje está enterrado em Jerusalém, em Israel, em seu túmulo estão duas inscrições. Uma em hebraico que diz: “Justos entre as nações”, em referência à condecoração do Estado de Israel para pessoas não judias que ajudaram a salvar judeus na segunda guerra. Outra em alemão: “Salvador inesquecível de 1200 judeus perseguidos”.
Sobre a influência da URSS na arquitetura urbana de Cracóvia, tem construções bem mais imponentes nas principais vias modernas da cidade. Com aquela carinha austera característica da arquitetura soviética.
Sobre Aushwitz/Birkenau, já comentei no outro texto.
Essa viagem foi em 2012. Ficamos hospedados em uma parte contemporânea da cidade, com shopping, Starbucks e tals.
O acervo relacionado aos horrores da Segunda Guerra é tão ou mais impressionante que o medieval. Recaptulando: Cracóvia oferece atrações medievais, modernas e contemporâneas. Tem acervo importantíssimo da Segunda Guerra Mundial, do regime soviético, religioso católico e judeu.
Ah! A comida é deliciosa. Pierogi =)
Esses espaços aparecem muito bem caracterizados em Maus. As casas bonitas dos bairros de classe alta das cidades polonesas, depois o gueto, os esconderijos, os lugares em que Vladek trabalhou tentando sofrer um pouco menos, escapar da morte e ajudar seus conhecidos, os campos de concentração/extermínio. Inclusive Aushwitz/ Birkenau por onde passaram tanto ele quanto Anja.
Maus me lembra muita coisa. Muitas e muitas referências.
Falarei de mais duas: o cachorro Pluto da Disney e o programa Muquiranas, transmitido no Brasil pelo Travel and Living Chanel.

Pluto e Pateta
Comecemos pelo Pluto. Pluto é um cão dócil e bobo que é o animal de estimação de Mickey Mouse, Pateta e Donald e companhia.
É ok ter um cãozinho de estimação, certo? A questão é que os tutores do Pluto são também animais. Mickey é um rato, Donald é um pato e Pateta… é um cachorro.
Pateta é um animal da mesma espécie de Pluto e ainda assim é o dono dele. Como isso é possível?
Estamos falando da ironia de Pateta ter um cão de estimação, por causa de uma passagem específica da história criada por Art Spiegelman, que se passa em um esconderijo em que ficaram Anja e Vladek para escapar dos nazistas. Era o porão de uma casa. A dona da casa é representada como uma porca e o casal que ela esconde como ratos.
Nesse porão, onde eles ficam por cerca de dez dias, até que o esposo da mulher que os esconde vá embora, uma das dificuldades é conviver com ratos. Ora, se são ratos não deveriam temer ratos. Acontece que assim como Pluto e Pateta, embora os desenhos sejam de animas da mesma espécie, os ratos do porão não são antropomorfizados. São criaturas que vivem de lixo e transmitem doenças, dos quais nós humanos não apreciamos a companhia.
Preciso voltar a Vladek Spiegelman. Não quero terminar esse texto sem reafirmar minha admiração por esse personagem magnífico. Queria ser amiga dele? Não. De jeito nenhum. Devia ser uma pessoa dificílima de lidar. Metódico, narcisista, racista e acima de tudo pão duro. No próprio Maus, Art chega à conclusão de que seu pai é o próprio estereótipo do judeu sovina.
Nem tudo, mas alguns aspectos da personalidade de Vladek podem ser explicados pelo sofrimento imposto pelos anos de guerra. Ele teve que se virar para aprender vários ofícios e tinha que se esmerar, pois só sendo o melhor sapateiro, funileiro, cozinheiro e qualquer outra coisa teria benefícios nas situações de extremo risco de vida em que se encontrava. Sobre benefícios, esses vão desde ter um pedaço a mais de pão velho até simplesmente não ser assassinado. Tudo o que ele conseguia economizar, e aí estamos falando do tal pão velho, cigarros, roupa extra e coisas realmente simples, poderiam se tornar peças de troca com pessoas que os deram abrigo, outros prisioneiros, guardas, até parentes em situação ligeiramente melhor que a dele em um dado momento.
O rapaz se tornou meio acumulador e pão duro.

Muquiranas
Mala e Art conversam sobre o fato de que outros amigos que passaram pelo mesmo trauma não se tornaram tão muquiranas quanto Vladek. O fato que esse foi o jeito como ele processou suas vivências e foi o que se tornou no pós guerra.
Um programa, que no Brasil é apresentado pelo Travel And Living Chanel e também está disponível no Discovery Plus, ilustra bem o estilo de vida de Vladek nos Estados Unidos: Muquiranas (Extreme Chepskates, no original).
Esse Reality Show acompanha a cada episódio a vida de uma pessoa que faz de tudo para economizar, mesmo tendo condições para comprar as coisas. Claro que algumas medidas às vezes podem ser interessantes, o problema é o conjunto da obra, cada um dos muquiranas acompanhados faz um esforço hercúleo para economizar, sendo até nojentos às vezes.
Há casos de pessoas que pegam o saquinho de pipoca e copos usados nas lixeiras dos cinemas e vão ao balcão com esse material pedir para encher o refil; gente que pode comprar suprimentos e ainda assim usa fio de cabelo como fio dental. Vladek não chega a tanto.
Recomendação de última hora, sobre os perigos de repetirmos, ainda que apenas em parte, esse tenebroso passado: episódio de 28 de julho de 2022, do podcast Café da Manhã.
SPIEGELMAN, Art. Maus. Tradução: SOARES, Antonio de Macedo. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2009.
SPIELBERG, Steven. A Lista de Schindler. EUA: Universal Studios, 1993.
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