Lolita

“Lolita, Luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-Li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta.

Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.

Teve uma precursora? Sim, admito que sim. A bem da verdade, não poderia ter havido Lolita se eu não tivesse amado, num verão, uma certa menina inicial. Num principado à beira-mar. Ah, quando? Mais ou menos o mesmo número de anos antes do nascimento de Lolita que assinalavam minha idade naquele verão. Sempre se pode contar com um homicida para uma prosa de estilo rebuscado.

Senhoras e senhores do júri, a prova número  um é aquilo que os serafins, os próprios serafins desinformados e simplórios com suas asas preciosas, invejaram. Contemplai esse emaranhado de espinhos.”

NABOKOV, Vladmir. Lolita. p.13.

 

1º) É um livro gatilhento. Não recomendo indistintamente a qualquer pessoa.

2º) O que acontece com os escritores russos? Já  declarei que meu objetivo de vida seria escrever como Tolstoi. Agora me parece que Nabokov é ainda melhor. Certamente é porque está mais fresco na minha memória. E ainda tem Dostoievski, Leskov, Zamiatim, Turguêniev… Todos, cada um a sua maneira, donos de estilos linguísticos impecáveis, primorosos, cada um a seu tempo.

Lolita. Como é complicado assumir que gosto desse livro. E gosto muito! Odeio Humbert Humbert e segundo meu entendimento a arte não serve apenas para nos dar tardes ensolaradas. Aliás, há que se saber apreciar a arte que incomoda tanto quanto a que alegra.

A escrita de Vladmir Nabokov é primorosa. O texto é dos mais bem escritos que já tive a oportunidade de ler e justamente por isso é impossível perdoar, simpatizar ou torcer para o protagonista que é um vilão da maior vileza que alguém pode atingir.

Nessa obra, um homem deixa um diário em que registra sua vida amorosa. Não há cenas excessivamente descritas, apenas o suficiente para que o leitor entenda o que está acontecendo entre o dono do diário, Humbert Humbert, e as mulheres com quem ele se relaciona. Com isso quero dizer que não é pornografia.

Pôster de Lolita 1967.

Assim como eu senti necessidade de explicitar minha opinião sobre o  protagonista, Nabokov também sentiu e o fez em dois atos: primeiro no prefácio e depois em um texto ao final da obra.

O prefácio é uma peça de ficção que compõe a obra e é assinado pelo personagem John Ray Jr. PhD, que teria sido um escritor de sucesso, coincidentemente amigo do advogado de defesa de Humbert Humbert. John fala sobre como encontrou os diários do pedófilo e porque decidiu publicá-los. Informa também que todos os personagens principais daquela história morreram antes que esse conteúdo tivesse se tornado público, embora essa informação só fique clara com a releitura (sim, li duas vezes emendando uma na outra). Em seguida, o autor do prefácio faz a ressalva de que seu Humbert Humbert é um criminoso da pior estirpe e que todos os seus atos são execráveis.

O texto do final se chama “Sobre um livro intitulado Lolita” e nele Nabokov, como Nabokov mesmo, explica de onde veio a inspiração para escrever, descreve as angústias do processo criativo, depois como foi para encontrar uma editora disposta a publicar um livro cujo tema central é pedofilia, mas também tem abuso psicológico e cárcere privado.

Lolita tem uma fonte de inspiração que é inclusive mencionada no miolo do livro, que é o caso Sally Horner. Voltaremos a isso mais tarde.

Humbert Humbert é um escritor francês, que vai para os Estados Unidos lecionar e prosseguir escrevendo. Ele aluga um quarto na casa de Charlotte Haze, que tem uma filha de DOZE anos chamada Dolores. Ele que já tinha passagens por sanatórios e inclinações para a perversão enquanto estava na Europa,  tinha também a perfeita compreensão de que não era uma pessoa psicologicamente sã. H. H. não ia alugar o quarto na casa de Charlotte, não tinha gostado da casa, até ver a menina no quintal.

Humbert Humbert oferece uma “justificativa” para suas preferências sexuais. Aliás, o que mais ele faz no livro é alternar justificativas e “mea culpas” para o diário ou para si mesmo, tentando acreditar e fazer o júri acreditar em suas boas intenções apesar de ter plena consciência de que era um criminoso.

Ah! Esses escritos que teriam sido redigidos na cadeia antes do julgamento, pelo menos até perto do fim, pretendiam ser levados ao júri para atenuar a possível pena a ser imputada a Humbert Humbert. Detalhe que o motivo do julgamento não tem nada a ver com meninas menores de idade. O crime pelo qual ele está preso é outro e é uma das surpresas do livro, guardada para as últimas cinquenta páginas. O finalzinho é muito bem escrito. Bem escrito! Bem escrito! Bem escrito!

A narrativa de Nabokov criou um Humbert Humbert tão sem noção, que tem muitos aspectos risíveis, o que acaba deixando a experiência de leitura o mais agradável possível.

É um homem capaz de atos deploráveis que descreve sua trajetória a partir de uma perspectiva debochada, irônica, por vezes patética e por outras asquerosa. Ele apresenta as pessoas com quem interage com linguagem ácida e julga tudo e todos à sua volta com esse viés de superioridade cômica.

Pôster de Lolita 1997

Já ouvi pessoas dizendo que conseguiram sentir compaixão por Humbert Humbert, graças à construção do personagem por Nabokov. Não é o meu caso. Não torci para o vilão e nem me apiedei dele nem uma vezinha sequer.

Como o narrador é em primeira pessoa e é uma pessoa perturbada mentalmente, isso faz dele um contador de história nada confiável. Fica claro pela leitura que ele não se interessa em conhecer verdadeiramente a menina Dolores, não sabe quase nada sobre os gostos e preferências ou tristezas dela. O leitor não tem a perspectiva dela sobre a história, embora as vezes fique perceptível, na prosa floreada de Nabokov, os efeitos nefastos daquele período abusivo sobre ela, principalmente à medida que ela cresce e vai entendendo seu relacionamento com aquele adulto, que é seu padrasto e que se apresenta a estranhos como pai dela.

Outra coisa que me agrada bastante nesse livro são as referências. Ele tem referências salpicadas ao longo do texto e aposto que não peguei nem metade. Cito uma: a menina pela qual Humbert Humbert teria sido apaixonado aos 13 anos de idade e que também teria 13 anos na ocasião. Na época foram frustradas as expectativas do casalzinho de adolescentes. A menina se chamava Annabel Leigh, e logo após a separação causada pelo fim das férias, ela morre de tifo.

Bem, Annabel Lee é o nome de um poema de Edgar Allan Poe, em que um avassalador amor pueril é interrompido pela morte da menina.

“E os anjos, menos felizes no céu, Ainda a nos invejar…

Sim, foi essa a razão (como sabem todos, Neste reino ao pé do mar)

Que o vento saiu da nuvem de noite/Gelando e matando a que eu soube amar.”

(Trecho de Annabel Lee, de Edgar Allan Poe, traduzido por Fernando Pessoa)

 

Os casos de pedofilia em Lolita não foram legalmente punidos. Pode-se dizer que não foram sequer devidamente censurados ou interrompidos.

Pôster de Allen v. Farrow

A série documental da HBO Allen v. Farrow, trata de um caso real e famoso, envolvendo duas super estrelas hollywoodanas: Mia Farrow e Woody Allen. Esse documentário trata da perspectiva dos Farrow sobre a acusação de pedofilia/incesto que pesa sobre Woody Allen, feita por sua filha Dylan Farrow.

Sempre acompanhei a carreira de Woody Allen, desde que comecei a me interessar por cinema e isso tem muito tempo. Por exemplo, assisti Poderosa Afrodite antes da cerimônia do Oscar que o consagrou e esse filme é de 1995, logo eu tinha 14 anos. Nem toda a obra do aclamado diretor é excelente, mas dada a quantidade de filmes dirigidos, estrelados e escritos por ele, muitas dessas obras são sim de qualidade o que justifica a idolatria em torno do nova-iorquino Woody Allen.

Mia Farrow por sua vez é a estrela de filmes como O Bebê de Rosemary (diga-se de passagem, uma belíssima realização de outro homem que cometeu pedofilia: Roman Polanski). Ela também estrelou vários filmes de Woody Allen durante os treze anos em que estiveram em um relacionamento, como A Rosa Púrpura do Cairo.

É notório que causas como a de Dylan Farrow têm sido melhor recepcionadas pelo mundo de uns quatro anos para cá, depois da repercussão campanhas como o #metoo  e do caso Weinstein.

Os argumentos do documentário contra Allen são bastante convincentes. A versão dele predominou quase inconteste desde o abuso cometido nos anos 80 até 2016, quando Dylan voltou a falar sobre isso. Também é fato que Allen se casou e permanece casado com Soon-Yi, filha adotada por Farrow no casamento com Andre Previn. Quando Soon-Yi foi morar com ele na condição de cônjuge ela tinha apenas 18 anos e ele ainda namorava Mia Farrow.

Segundo o filme, o abuso mais grave ocorreu quando Dylan tinha sete anos e foi pouco depois da separação de seus pais. Allen já residia com Soon-Yi.

O documentário é parcial? É. A proposta é essa mesmo. Apresentar a versão da vítima. Como todo material produzido pela HBO, é muito bem executado. São apenas quatro episódios com depoimentos de testemunhas, procurador, psicólogos, assistentes sociais e documentos forenses que fizeram parte do caso judicial que culminou com a proibição para que Allen se encontrasse com a filha Dylan.

A carta aberta que Dylan escreveu a Woody já adulta, na fase mais ativa do #metoo, pode ser lida aqui.

Depois da carta e do documentário Allen v. Farrow, Dylan passou a receber apoio de várias personalidades e Allen sofreu os primeiros reveses dignos de nota.

Agora passemos ao caso real que, embora negado por Nabokov, que afirma ser Lolita uma história cem por cento original, coincide tanto com a trama que é impossível não ligar uma com a outra. Outro indício é que o caso é mencionado no livro.

“Será que eu tinha feito com Dolly o mesmo que aquele tal de Frank La Salle, um mecânico de cinquenta anos, fizera com Sally Horner, de onze anos, em 1948?”

Sally Horner foi uma menina estadunidense sequestrada por Frank La Salle no ano de 1948. Frank viajou com a menina por dois anos por diversas partes dos Estados Unidos, abusando sexualmente dela e dizendo às pessoas com quem interagiam que era seu pai.

Dizem que Sally entrou em uma loja e furtou um caderninho de cinco centavos de dólar. Esse pequeno furto foi testemunhado por Frank La Salle, mecânico que já tinha passagens na polícia por abuso de menores. Frank se apresentou a Sally como agente do FBI e disse que teria que leva-la presa. Diante do pânico da menina e do escândalo que ela fez na porta da loja, Frank disse a ela que a liberaria se ela continuasse o obedecendo e não contasse aquele trato para ninguém.

A mãe de Sally tinha outra filha, que passava por outros problemas na época. Ao que parece as duas não estavam no melhor momento da relação mãe e filha, as Horner também não gozavam de grandes recursos financeiros. Então quando Frank , se apresentou  à senhora Horner como pai de uma amiga da escola, convidando a menina para uma viagem à Atlantic City, que duraria uma semana, a senhora Horner concordou.

Sally só foi encontrada pela polícia dois anos depois.

Lolita foi adaptado para o cinema duas vezes: 1967 e 1997. Nenhum dos dois filmes reflete o livro. Stanley Kubrick que fez a versão de 1967, convidou Nabokov para ajudar no roteiro. Kubrick se queixou de que queria ousar mais e Nabokov não permitiu. E Nabokov reclamava que o filme tirou a essência do livro.

Sobre ousar mais, não sei do que se trata, mas que a essência do livro realmente não está ali, não está.

NABOKOV, Vladmir. Lolita. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011.

DICK, Kirky & ZIERING, Amy. Allen v. Farrow. EUA: HBO, 2018.