Capa de Lady Macbeth do distrito de Mtzensk

“Catierina Lvovna anda sem parar pelos cômodos vazios, começa a bocejar de tédio e sobe pela escada ao seu leito conjugal, situado num mezanino pequeno e alto, onde também fica sentada, olhando perdida como penduram o cânhamo ou ensacam a farinha nos celeiros – torna a bocejar, porém até se contenta: vai tirar uma horinha de soneca; mas quando acordar, reencontrará o mesmo tédio russo, o tédio das casas de comerciante, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar.

De leitura Catierina Lvovna não era adepta, e além disso não havia livros em casa, a não ser O paterik de Kiev.

Era maçante a vida que Catierina Lvovna ia vivendo na casa rica do sogro durante os cinco anos redondos ao lado de um marido seco; mas, como é de praxe, ninguém dava a mínima atenção ao seu tédio”.

LESKOV, Nikolai. Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk. p.13.

 

Esse será o segundo livro comentado nesse site que faz alusão à peça Macbeth, de William Shakespeare.

O primeiro foi O Som e a Fúria, de William Faulkner, cujo título remete à expressão cunhada por Shakespeare para definir o que seria a existência. O segundo será esse Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de Nokolai Leskov.

Não se trata de um spin off. A Lady Macbeth de Leskov, não é a mesma de Shakespeare. Lady Macbeth nessa obra é o codinome jocoso que Catierina Lvovna recebeu dos moradores do distrito de Mtzensk, onde morava na Rússia.

Capa de Macbeth

Em comum com a personagem shakespeariana, ela cometeu assassinatos, sem remorso, para conquistar seu objetivo. Diferentemente, da Lady Macbeth original, era tudo exclusivamente por amor a Serguiêi, um funcionário da fazenda onde ela morava, por quem se apaixonou.

A esposa do Macbeth original era uma espécie de coach dos infernos, que em seu programa de incentivo à prosperidade induziu o marido a despertar seu o lado mais sombrio e cometer assassinatos cada vez mais friamente. Já Catierina matou a primeira pessoa não por sede de poder, mas para manter seu relacionamento extraconjugal.

Lady Macbeth no Distrito de Mtzensk, publicado pela primeira vez em 1864, é definido na sinopse atrás do livro como um híbrido entre as obras de Dostoievski e Tolstoi. Se for para ficar só nos russos é uma comparação justa.

Entretanto, se fosse para cruzar duas histórias, independente do tempo em que foram produzidas, e dizer que Catierina Lvovna é o híbrido de outras personagens femininas, diria que ela é parte Madame Bovary, parte Aileen Wuornus.

Esse livro é ótimo e tem apenas noventa páginas. É enxuto, entregando uma história interessante e irônica com admirável objetividade. Adoraria que Leskov tivesse escrito mais páginas, só para passar mais tempo na cabeça de Catierina Lvovna. É como quando acaba uma série muito viciante e a gente se sente meio órfão, até achar outra coisa igualmente instigante.

Ainda não foi possível assistir ao filme Lady Macbeth, inspirado nessa obra, lançado em 2017, porque não está disponível em lugar nenhum. De qualquer forma, fica o trailer caso alguém se interesse.

Poster do filme Lady Macbeth

Catierina era uma moça jovem, normal do interior da Rússia, que se casou com um comerciante, viúvo, rico e mais velho, Zinóvi Boríssitch. Ela vai morar na fazenda junto ao marido e o sogro e logo descobre que a vida conjugal não lhe reservava grandes emoções, muito pelo contrário, depois de se casar sua vida se transformara em um incurável marasmo. Durante cinco anos de casamento Catierina e o esposo tentaram ter um filho, mas o esposo que já não havia deixado descendentes do casamento anterior, não poderia engravidá-la. O maior objetivo dela com essa sonhada gravidez era ter uma criança que a ocupasse salvando-a do tédio sem fim.

Eis que, durante uma viagem do marido e do sogro, Catierina cai nas graças de Serguiêi, um funcionário galanteador da fazenda, famoso por ser mulherengo. Então, como mágica, o vazio dos dias da senhora Lvovna acabou.

O modo como ela e Serguiêi começam a matar, os motivos e os métodos usados por Catierina valem a leitura desse livro. O final inesperado é o ápice de uma virada na história do amor entre ela e seu Serioja.

Capa de Madame Bovary

Catierina Lvovna lembra muito Emma Bovary, a célebre personagem de Gustave Flaubert em Madame Bovary.  A ambição de Emma era maior que a de Catierina, entretanto em comum entre as protagonistas temos um dos motores, talvez o principal, o que levou Emma ao gasto excessivo e à infidelidade e Catierina ao assassinato em série foi o tédio.

As expectativas de Emma eram altas em relação a seu casamento com Charles Bovary. E foram prontamente frustradas pela realidade com grande colaboração da personalidade insossa do marido. Ela se desespera frente à vida medíocre a que estava condenada a viver. Considerando o parafuso solto que ambas as personagens demonstraram ter, as coisas só poderiam mesmo sair do prumo em grande estilo.

Madame Bovary, tem várias adaptações para teatro e cinema, sendo um dos últimos o estrelado por Mia Wasikowska, dirigido por Sophie Barthes. Assim como o Morro dos Ventos Uivantes dirigido por Peter Kominsky, o básico da história está bem feito, mas o filme perde na construção das personalidades, que são mais complexas no livro.

Poster do filme Madame Bovary

Quando se trata da saída de prumo de Catierina, então, não há precedentes. É aí que entra a comparação não só com Lady Macbeth e Emma Bovary, mas com Aileen Wuornus.

Aileen não se tornou assassina pelos mesmos motivos de Catierina, mas continuou a matar por razões parecidas. Ela teve um horroroso e extenso histórico de abusos ao longo da vida, o que não justifica, porém ajuda a compreender como se tornou uma serial killer.

Poster do filme Monster

Esse é um caso da vida real. A história foi contada no filme Monster – Desejo Assassino e Chalize Theron o protagonizou. Por esse papel, Charlize ganhou vários prêmios de melhor atriz, incluindo o Globo de Ouro e o Oscar.

Os relatos sobre a vida de Aileen antes de cometer assassinatos já eram uma tragédia monstruosa. Filha de um psicopata, que nem chegou a conhecer, pois fora preso e depois se matara na prisão, posteriormente Aileen e seu irmão foram abandonados pela mãe, indo viver com os avós. O avô era alcoólatra, violento e começou a abusar sexualmente dela quando ela entrou na adolescência. Aileen também declarou que teve um caso com o irmão desde pequena. Expulsa de casa pelo avô quando engravidou em um possível estupro, passou ao excesso de álcool e drogas e a se prostituir e cometer pequenos furtos para o próprio sustento. Até  que um dia conheceu Selby Wall*.

Aileen foi casada por alguns meses com um homem e teve outros namorados antes de conhecer Selby, contudo talvez esse tenha sido o único relacionamento no qual ela se sentiu amada.

Uma noite, quando já namorava Selby Wall, Aileen, que trabalhava como prostituta, saiu para fazer um programa. O homem tentou estuprá-la e foi assassinado por ela em um caso de legítima defesa.

A partir daí ela matou mais seis homens, roubando seus pertences após o homicídio.

Em sua defesa, Aileen alegou que todos os crimes foram para se defender, o júri apenas aceitou o primeiro caso como enquadrável nesse argumento. Ela foi condenada à morte e executada em  2002.

Aileen Wournos

Por que Aileen e não outro serial killer pode ser comparado a Lady Macbeth? Porque ambas fizeram o que fizeram para dar conforto e felicidade a si próprias e, principalmente, a seus cônjuges. Pelo menos é o que se pode inferir do filme Monster. Na época dos assassinatos, os rendimentos de Aileen eram superiores ao que normalmente obtinha. Selby passou muito tempo desfrutando dos benefícios sem questionar a origem do dinheiro da namorada. Catierina, por seu turno, talvez não tivesse se tornado uma assassina se não se envolvesse com Serguiêi, que inclusive ajudou em alguns dos assassinatos, crendo que seria o senhor da fortuna do marido da amante. Enquanto tudo foi bem, ele também não demonstrou reprovar o método de Catierina. E ela, mesmo depois de julgada e condenada, continuou demonstrando ser capaz de tudo por seu amado. Aliás essa parte pós-condenação é imperdível.

 

*Selby Wall é o nome da personagem fictícia interpretada por Cristina Ricci no filme Monster. A então namorada de Aileen, na época em que foi presa se chamava Tyria Moore.

 

LESKOV, Nikolai. Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.Tradução: BEZERRA, Paulo. São Paulo: Editora 34, 2017.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução: VIÉGAS-FARIA, Beatriz. São Paulo: LP&M, 2020.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução: HEINENBERG, Ilana. São Paulo: LP&M, 2003.

BARTHES, Sophie. Madame Bovary. EUA, Bélgica e Alemanha: 20th Century Fox, 2014.

JENKINS, Patty. Monster: Desejo Assassino. EUA e Alemanha: Newmarket Films, 2003.