Kim Jiyoung, Nascida em 1982

“Oh Misook ficou grávida pela terceira vez menos de um ano depois de Jiyoung nascer. Certa noite, ela sonhou que um tigre do tamanho de uma casa havia derrubado a porta da frente e pulado em seu colo. Estava certa de que era um menino. Mas a velha obstetra que trouxe Eunyoung e Jiyoung ao mundo examinou seu abdome várias vezes com um olhar sombrio e comentou, com cautela:

—A bebê é tão, tão… linda. Como as irmãs…

De volta a casa, Oh Misook chorou e chorou e vomitou tudo o que tinha comido naquele dia. Koh Boonsoon ouviu a nora no banheiro e deu os parabéns pela porta.

—Seus enjoos matinais estão terríveis desta vez! Você não ficou enjoada nem uma vez quando estava grávida de Eunyoung e Jiyoung. Este bebê deve ser diferente.

(…) Naquela noite, depois que as garotas tinham ido dormir, Oh Misook perguntou ao marido, que se revirava na cama:

—E se… e se for mais uma menina? O que você faria, papai? Ela esperava ouvir “Como assim, o que eu faria? Menino ou menina, vamos criar com amor.” Mas não houve resposta.

—Hein?—insistiu.—O que você faria, papai?

Ele se virou para a parede e disse:

—Fique quieta e durma. Não dê ideias ao diabo. (…)

Nessa época, o governo já tinha implementado uma política de controle de natalidade chamada “planejamento familiar” para manter o crescimento populacional sob controle. Por isso, o aborto em razão de problemas médicos era legal havia dez anos. Verificar o sexo e abortar as meninas era prática comum, como se elas fossem um problema médico. Isso continuou ao longo da década de 1980 e no início da de 1990, o ápice do desequilíbrio entre homens e mulheres, quando a proporção para o terceiro filho ou mais passou a ser de mais de dois para uma.

Oh Misook foi até a clínica sozinha e “apagou” a irmã mais nova de Jiyoung. Nada daquilo foi sua culpa, mas a responsabilidade recaiu sobre ela, e ninguém da família ficou por perto para consolá-la durante a dor física e emocional angustiante. A médica segurou a mão de Oh Misook enquanto ela uivava como um animal que tinha perdido seu filhote para uma fera.

—Sinto muito por sua perda.—disse ela.

Graças às palavras da velha médica, Oh Misook conseguiu manter a cabeça no lugar.”

CHO, Nam-Joo. Kim Jiyoung, Nascida em 1982. p. 18

 

Que raiva! Esse é o sentimento que domina quando terminamos o livro. Raiva de o livro ser ruim? Absolutamente, não. É muito bom. Tão bom que, sendo mulher, é impossível não morrer de raiva se vendo em praticamente todas as situações que a personagem Kim Jiyoung passa ao longo de toda vida. As situações pelas quais eu não passei, certamente conheço mulheres que  passaram.

A autora sul coreana Cho Nam-Joo publicou em 2016 esse livro de apenas 134 páginas, causou rebuliço em seu país e foi sucesso nos outros para os quais foi traduzido. São, por hora, 18 línguas além do coreano, foram vendidas mais de um milhão de cópias em todo o mundo e tem uma adaptação para o cinema.

Uma mulher chamada Kim Jiyoung, vive em Seul com o marido. Em um feriado eles vão para a casa dos pais dele e enquanto o pai e os filhos conversam alegremente, ela, a sogra e a cunhada fazem todo o trabalho de preparação da comida e tudo mais para o fim de semana. De repente, Kim Jiyoung começa a falar como se fosse outra pessoa, como por exemplo sua própria mãe, reclamando para os sogros que eles estão com a própria filha em casa e que, portanto, poderiam ter aberto mão da presença da nora para que ela passasse o feriado com sua família de origem, que também sente saudade.

Nesse surto, ela começa a dizer verdades, sempre como se estivesse incorporando outra pessoa, que evidenciam o quão contrariada ela estava por trabalhar no feriado enquanto queria estar descansando, o quão injusto é ter que seguir sempre a vontade do marido e dos homens em geral só porque é mulher, e vira um climão tão azedo que o marido põe a filha e ela no carro e volta pra Seul. Ele está genuinamente preocupado com o estado mental da esposa.

A partir desse ponto, o leitor acompanha em narração em terceira pessoa tudo o que ela viveu, desde o seu nascimento até aquele peculiar colapso nervoso.

Um ponto maravilhoso sobre esse romance é que ele é amplamente amparado por fontes confiáveis nada ficcionais como pesquisas de opinião, artigos científicos, recortes de jornal e revistas. A cada situação em que a cultura patriarcal coreana engole os sonhos ou puxa o tapete de Kim Jiyoung, a autora põe nas notas de rodapé os dados da realidade de seu país. Se Kim Jiyoung tem que sair da faculdade para cuidar dos filhos, Cho Nam-Joo trará as estatísticas mostrando quantas mulheres deixam seus empregos e carreiras ao se tornar mães. Se a personagem perde uma promoção no trabalho em que ela é excelente quando a chefia opta por promover apenas homens, a autora apresenta dados factuais sobre a diferença salarial entre homens e mulheres que realizam o mesmo trabalho e disparidade na proporção de pessoas em cargos de chefia pelo recorte de gênero, se alguém fica frustrada por estar grávida de uma menina, aparece a estatística de abortos induzidos por motivo de insatisfação com o gênero da criança e por aí vai.

O objetivo da autora é mostrar que a cultura patriarcal coreana é tão entranhada e estrutural que, no fim do dia, não importa muito se as mulheres têm feito faculdade, se especializado e se dedicado às suas carreiras, ou mesmo se não estão preparadas para serem mães e esposas.

Inclusive a autora é uma mulher que passou a ser dona de casa quando nasceu o filho, tendo deixado seu emprego de roteirista para o qual tinha as qualificações acadêmicas necessárias. Cho Nam-Joo se declara uma feminista e expressa seu posicionamento com muita energia ao longo das páginas de Kim Jiyoung, Nascida em 1982.

Uma pausa para explicar que ser feminista não é sinônimo de trabalhar fora de casa, embora para um grupo expressivo de mulheres essa tenha sido a principal conquista. Ser feminista é lutar por direitos, direitos de escolha, de ir e vir, de paridade salarial com o sexo masculino, de estabelecer limites e regras para o próprio corpo. É também uma luta por reconhecer que o trabalho doméstico é árduo, que criar filhos é uma imensa responsabilidade e que deveria ser remunerado.

Uma das estatísticas apresentadas no livro que mais me surpreendeu foi a de que as mulheres donas de casa que tinham seus filhos em creches de meio período tinham livres para si cerca de 4 horas e 45 minutos por dia, ao passo que as mulheres que tinham seus filhos em casa permanentemente tinham para si……. 4 horas e 30 minutos livres. Ou seja, a diferença é ridícula. O que torna um trabalho diferente do outro é ter que carregar a criança nas ancas enquanto passa pano no chão ou põe as roupas para lavar. Os benefícios em termos de tempo são praticamente nulos.

Agora vamos às semelhanças com a cultura ocidental, mais especificamente a brasileira, que é a minha, e elas são massivas. Reconheci minha própria realidade em várias situações, e as que felizmente não compartilho com a personagem conheço pessoas que compartilham e não é esporádico: tem julgamento de conduta com base na vestimenta, tem ameaça de violência sexual por estranhos na rua, tem irmãos tratados como eternos adolescentes enquanto a responsabilidade cai sobre os ombros das filhas mulheres, tem dificuldade em tirar licença maternidade ou paternidade… e o rosário é longo. A autora faz isso de uma forma leve. A escrita é fluida, instigante e enxuta na medida para inserir a discussão e provocar incômodo tanto nas vítimas do machismo quanto nos homens que, por ventura, tenham colhões para encarar umas verdades.

Impossível não contrastar Kim Jiyoung, Nascida em 1982 com outra obra lida recentemente e que também foi best seller de autora oriental: Querida Konbini.

Querida Konbini, de Sayaka Murata, é um livro que se passa no Japão, mas tem muitas semelhanças com a realidade coreana retratada por Cho Nam-Joo.

Quando a personagem Kim Jiyoung está voltando para casa após deixar a filha na creche ela se depara com um anúncio de vaga de emprego em uma loja de conveniência, que no japão seria chaada de konbini. A vaga era ocupada por uma mulher que também é dona de casa e que trabalha ali meio período, mas terá que deixar o emprego. Essa funcionária faz inclusive fez força para guardar a vaga para Kim Jiyoung porque viu nela o perfil desejado e a oportunidade de ajudar uma pessoa em situação semelhante à dela própria quando conseguiu aquele emprego.

Como comentado no texto sobre Querida Konbini, aquele tipo de loja oferece um emprego precarizado e mal remunerado, mas que também não exige qualificação ou dedicação além das horas para as quais se é pago. Vale o quanto pesa. E parece ser tendência para mulheres casadas nos países orientais.

Embora a vida da personagem Keiko Furukura seja muito diferente da de Kim Jiyoung, as expectativas sufocantes sobre os jovens parecem ser uma marca cultural comum.

Ah então, quem mulheres de países ocidentais não precisam se preocupar, certo? Errado.

Partindo do pressuposto de que a arte imita a vida, citamos agora duas produções bem distintas que se passam nos Estados Unidos e que retratam homens em comportamentos inadequados. Comportamentos esses que também são parte da trama de Kim Jiyoung, Nascida em 1982: o namorado que se opõe ao emprego em O Diabo Veste Prada e o assédio sexual em ambiente de trabalho na série da Apple TV, The Morning Show.

O Diabo Veste Prada é uma incensada comédia que fala de uma mulher batalhando seu lugar ao sol em uma badalada revista de moda chamada Runway (passarela em inglês).  Ela, inicialmente, não é ligada a moda, mas confia em seus conhecimentos e formação e encara o desafio de ser assistente da temida editora Miranda Priestly (Meryl Streep), para aprender sobre o funcionamento de uma grande revista e fazer seu nome no meio jornalístico.

O Diabo Veste Prada

Acontece que Miranda é realmente dura com seus subordinados e Andrea Sachs (Andy, vivida por Anne Hathaway) por não ser entendida de moda terá algumas dificuldades extras para se firmar. Andrea é contratada para substituir Emily Charlton (Emily Blunt) que acaba se ser promovida entre as assistentes pessoais de Miranda, que por sua vez, não faz questão nem mesmo de aprender o nome da nova contratada a quem chama de “a nova Emily”.

O nível de exigência do emprego e a dedicação da moça incomoda ao namorado, que, incapaz de entender o que aquela oportunidade representa para ela, vai fazer drama e inserir o componente culpa na já atribulada vida de Andy. Chantagista emocional, egoísta e insensível ele a encurrala como se ela tivesse que escolher entre passar tempo com ele ou trabalhar para a Runway. Andy prossegue na revista e… advinha?.. o namoro acaba.

Isso aparece bem claramente no livro de Cho Nam-Joo quando a personagem principal entende que a chegada da filha exige que ela e o marido tomem providencias para deixar a criança em segurança e quase automaticamente a decisão de que ela deve abdicar da carreira é tomada. Tomada pelos dois? Mais ou menos. A questão cultural, estrutural, é tão arraigada que nem passa pela discussão a possibilidade de ele ficar em casa. Em um trecho, ela o confronta sobre o que ele estaria perdendo nesse arranjo que eles fizeram e a resposta é patética.

Vamos agora a uma de minhas séries favoritas do ano de 2019: The Morning Show. Produzida e exibida pela Apple TV, e tendo entre as produtoras tanto Jennifer Aniston quanto Reese Witherspoon, The Morning Show é extremamente bem feita e tem em seu elenco: as duas citadas produtoras, Steve Carell e Hannah Shoenfeld.

Qual é a linha principal: um escândalo de abuso sexual de várias mulheres pelo apresentador do principal programa de uma rede de TV, o The Morning Show. Além disso, outras questões de mulheres em ambiente de trabalho serão tratadas paralelamente, bem como a tomada de consciência do abusador sobre a natureza maléfica de seus atos.

Aqui vamos considerar apenas a primeira temporada, até porque ainda não assisti à segunda.

O programa de TV The Morning Show é apresentado pela dupla Alex Levy (J. Aniston) e Mitch Kessler (S. Carell). Eles tem uma incrível química na tela e são grandes amigos na vida real. É um programa de enorme audiência, carro chefe do seguimento e principal atração do canal.

De repente, o apresentador é afastado por um escândalo de assédio sexual e em um plot muito divertido será substituído pela autêntica e inteligente Bradley Jackson (R. Witherspoon).

A tentativa desesperada de a emissora proteger o predador sexual para não perder sua estrela e ainda sair de liso do escândalo é enervante.

Em uma passagem do livro Kim Jiyoung, Nascida em 1982, um funcionário da empresa de marketing em que Kim Jiyoung trabalhara antes de ser mãe, tinha instalado uma câmera no banheiro feminino e estava espalhando fotos das partes íntimas daquelas mulheres em grupos de programas de mensagens. Quando o chefe dele, que participava de um desses grupos, viu as fotos, reconheceu o espaço e algumas mulheres, ao invés de demiti-lo e tomar as providências cabíveis, ele simplesmente repassou as fotos para outros colegas de trabalho e outros grupos. Como consequências muitas das fotografadas pediram demissão, entraram em depressão, viraram piada. Ou seja, somente elas foram prejudicadas por homens tarados, pervertidos e inconsequentes.

Aqui no Brasil o filme, Kim Jiyoung, Nascida em 1982 é do catálogo da plataforma Mubi, que é excelente, mas não disponibiliza todos os seus filmes simultaneamente. Os filmes da Mubi são expostos aos assinantes em um sistema de curadoria, que pode ser aleatório ou temático. Hoje, esse filme não está disponível.

Assisti ao filme e tenho considerações a fazer. O roteiro ficou bom e tem algumas diferenças em relação ao livro. Por exemplo o final revoltante foi substituído por um final feliz.

Além disso, o filme exagera um pouco na expectativa da sogra de Kim Jiyoung e pega leve com o sogro. Achei isso meio ruim. As outras alterações são ok e, apesar do final, o filme até que respeita a essência do livro.

Importante dizer que essa adaptação foi alvo de intensa polêmica na Coreia do Sul. Muitos artistas importantes, mulheres e homens, se manifestaram a favor exaltando a importância do tema e a qualidade da produção. Inclusive ele recebeu alguns prêmios. Mas uma onda conservadora entrou nos sites de classificação de qualidade de filmes e deu nota baixa para a produção tentando desmerecê-lo. Vários homens declararam ter terminado ou terem ameaçado terminar relacionamentos amorosos caso suas parceiras assistissem ao filme. Vai vendo…

 

CHO, Nam-Joo. Kim Jiyoung, Nascida em 1982. Tradução: ESTECHE, Alessandra. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

KIM, Do-Young. Kim Jiyoung, Nascida em 1982. Coreia do Sul: Lotte Cultureworks, 2019.

EHRIN, Kerry. The Morning Show. Estados Unidos: Apple TV, 2019-atual.

MURATA, Sayaka. Querida Konbini. Tradução: KOHL, Rita. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

FRANKEL, David. O Diabo Veste Prada. Estados Unidos: 20th Century Fox, 2006.