Capa de It: A Coisa

“Ele se virou e recuou sobre as pernas bambas, enquanto tirava a bombinha do bolso e usava. Isso não tinha realmente acontecido, tinha? Ele estava pensando no mendigo e sua mente tinha… bem, tinha apenas…

(dado um show)

Mostrado um filme, um filme de terror, como um dos filmes de matiné de sábado com Frankenstein e Lobisomem que eram exibidos às vezes no Bijou ou no Gem ou no Aladdin. Claro era só isso. Ele tinha se assustado. Que babaca!

Ele teve até tempo de dar uma risada trêmula pela vividez inesperada de sua imaginação antes de as mãos podres surgirem de debaixo da varanda, tateando pela roseira com ferocidade descuidada, puxando-a, rasgando-a, deixando as flores com gotas de sangue.

Eddie gritou.

O leproso estava saindo. Ele reparou que o sujeito usava roupa de palhaço, uma roupa de palhaço com grandes botões de cor laranja na frente. Ele viu Eddie e sorriu.”

KING, Stephen. It: A Coisa. p.308.

 

It: a Coisa foi o primeiro livro de ficção do Stephen King que li e o único por enquanto. Comecei logo com esse calhamaço de 1102 páginas, que apesar do tamanho é tão tranquilo de ler que a gente nem percebe as páginas passarem.

Muito bom! Recomendo, apesar dos sonhos estranhos que tive durante a leitura. O hábito de ler à noite favorece a mistura da ficção com o inconsciente e tals.

Preciso, antes de apresentar as opiniões favoráveis, dizer que da página 1049 até a 1059 acontecem coisas que, fosse eu a editora essas páginas seriam simplesmente suprimidas. Desnecessário. Mas, o que são dez páginas entre 1102? São como um parágrafo nada a ver em um livro te tamanho usual. O resto é muito divertido. Entretenimento de primeira.

Vamos ao enredo sem spoilers.

Uma cidade, Derry, convive com uma espécie de criatura maléfica que acorda aproximadamente a cada 27 anos e provoca vários desaparecimentos e assassinatos até voltar ao estado de latência.

Curiosamente, um grupo de sete crianças com idade entre 11 e 12 anos, conseguiu driblar essa força maligna interrompendo precocemente um desses ciclos sangrentos. Essas mesmas crianças retornam à cidade de Derry, na fase adulta, para tentar novamente derrotar a Coisa.

Como a coisa se apresenta? Como o maior medo ou algum medo que esteja na cabeça da vítima naquele momento. Por exemplo, apareceu como um tubarão para um menino na época em que o filme Tubarão estava nos cinemas.

Na primeira aparição registrada no livro, ela aparece como o palhaço que é o símbolo maior do livro e do filme. O nome do palhaço medonho é Pennywise.

A coisa sempre deixa alguns sinais, como uma assinatura na cena das aparições.

O grupo de crianças é liderado por um menino gago, chamado Bill. Tem o menino gordo, que é o Ben. A menina pobre, Beverly. O menino preto, Mike. O menino de saúde frágil, Eddie. O menino judeu, Stan. O menino que fala mais que a boca e usa óculos, Richie. Esse esquadrão de crianças, que sofrem humilhações e agressões dos outros colegas de escola diariamente, se juntou para destruir Pennywise. Eles podem ser enquadrados como o que os filmes adolescentes estadunidenses chamam de losers. Na tradução, essa turma se autodenominava “Os Otários”.

Também temos os valentões, que nesse caso são crianças com tendências psicopatas. Não dá para simplesmente contrapor losers e winners, porque eles estão longe de representar a clássica popularidadeEnquanto a turma de Bill Denbrough era formada de crianças transparentes, dessas que a maioria nem nota que está ali, a turma dos valentões, liderada por Henry Bowers, seria a galera que ninguém quer ter por perto, porque todos têm medo deles.

Além do conflito entre as turmas de pré-adolescentes outros personagens da cidade de Derry e depois das cidades em que cada um deles foi morar na vida adulta vão construindo uma intricada teia de abusos, tristezas, péssimas relações familiares. Não há inocentes em Derry.

A trama, no livro, é composta por acontecimentos “em tempo real” no ano de 1985 e flashbacks de diversos períodos em que a Coisa acordou, especialmente o ano de 1957.

Voltemos aos personagens principais. Eles são muito parecidos com os protagonistas de uma série que virou febre e está indo para sua 4ª temporada: Stranger Things, da Netflix.

Pôster de Stranger Things

Stranger Things também se passa nos anos 1980, os heróis são um bando de crianças excluídas socialmente, há uma ameaça sobrenatural que habita a cidade fictícia de Hawkins e essa ameaça provoca assassinatos e desaparecimentos.

Mais coincidências: o ator Finn Wolfhard faz o personagem Richie Tozier, nos filmes It: a Coisa (2017 e 2019) e também faz Mike, o líder do bando de losers de Stranger Things. A única menina em It é ruiva, linda e sofre com um pai abusivo. Todos os otários amam Beverly. A partir da segunda temporada de Stranger Things uma nova protagonista é inserida no bando: Max. E advinhem… Ela é ruiva, linda, tem um irmão abusivo e dois dos meninos da turma são apaixonados por ela.

Talvez os roteiristas de Stranger Things gostem muito de It a Coisa. Não são exatamente iguais. Aliás, os dois são ótimos e uma experiência não substitui a outra. Porém, é impossível não notar quantos pontos em comum essas duas obras têm.

Ainda na linha das diferenças que separam os incluídos dos excluídos, It tem outros personagens. Vamos dar atenção a dois deles, esses do elenco do mal: o mendigo leproso e Patrick Hockstetter.

Capa do álbum Aqualung da banda Jethro Tull

Comecemos com o mendigo leproso, que suscitou a memória de uma música muito famosa, talvez a mais famosa da banda inglesa Jethro Tull: Aqualung.

Nessa comparação, acredito que uma obra não seja influência para a outra. É uma coincidência fortuita.

Aqualung é um morador de rua, que a gente fica sabendo que vaga pelas ruas de Londres em outra música do Jethro Tull chamada Crossed-Eyed Mary, onde ele também aparece como coadjuvante. Esse homem se vê e é tratado como um bicho. Cheio de lembranças de sofrimento que se repetem de tempos em tempos como o frio do inverno, a falta de comida, o incomodo pelas roupas rotas e sujas, Aqualung é um homem sem identidade. O disco Aqualung fez 50 anos em 2021, e a banda produziu um videoclipe comemorativo, que pode ser visto no canal do Jethro Tull no Youtube.

“Do you still remember/December’s foggy freeze?/ When the ice that/ Clings on to your beard/ Was Screaming agony/ And you snatch your rattling last breaths/ With deep-sea-diver sounds/And the flowers bloom like Madness in the spring” (Aqualung. Jethro Tull).

Em It, o morador de rua ainda tem uma doença que espalha feridas por seu corpo. Na verdade ele não é humano, é mais uma manifestação da Coisa. Depois de perseguir Eddie Kaspbrack, que é o menino de saúde frágil e incurável hipocondria, essa mesma forma perseguirá também Bill e Richie. Em ambas as ocasiões, depois do ataque os meninos perceberam no “mendigo” elementos da indumentária de Pennywise (os botões alaranjados, balões, a roupa branca brilhante).

Por fim, Patrick Hokstetter. Ele é um dos garotos maus. Mas ele não é um malvado qualquer, é o mais psicologicamente perturbado deles, mais que Henry Bowers. Patrick se diverte torturando e matando animais que ele leva para uma geladeira velha no lixão de Derry. E ele faz uma coisa que outro personagem icônico de Drácula (Bram Stocker) faz: coletar moscas mortas. Aqui, eu acho que foi meio que uma homenagem que Stephen King prestou a Bram Stocker. It: a Coisa é cheio de referências a outras obras musicais ou literárias.

Drácula é um dos maiores clássicos do gênero terror de todos os tempos (inclusive já teve texto aqui).

Foto do livro Drácula

Somente as menções liberadas pelos detentores dos direitos autorais das obras que permeiam o livro It a Coisa, contam trinta e três. Isso sem falar nas obras que são de domínio público.

Hokstetter guarda as moscas para satisfazer o próprio sadismo. Enquanto o icônico Renfield, guardava para se alimentar. Renfield era um interno de um sanatório, porque além de comer moscas e outros pequenos animais ele justificava esse comportamento como sendo o que era esperado por seu mestre. Logo, a psiquiatria deduziu que aquele comportamento não era normal, além de não existir nenhum mestre. Erraram. Ele realmente era meio doido, mas havia um mestre: o conde Drácula.

Tanto o fiel Renfield quanto o maldoso Hokstetter tiveram um cruel e merecido final.

Muito divertido. It: a Coisa deixou a vontade de ler mais Stephen Kings. O Iluminado já está na fila.

O filme desse livro é muito bem feito. Aliás, a obra de Stephen King tem dado boas produções audiovisuais (O Iluminado e A Espera de um Milagre, por exemplo) . A primeira parte de It: A Coisa (2017) está disponível no Globoplay e a segunda (2019) no Telecine. O livro é melhor.

 

KING, Stephen. It: A Coisa. Tradução: WINARSKI, Regiane. Rio de Janeiro: Suma, 2021 (27ª reimpressão).

The Duffer Brtohers. Stranger Things. EUA: Netflix, 2016 – atual.

MUSCHIETTI, Andy. It – A Coisa: Capítulo 1. EUA: Warner Bros, 2017.

MUSCHIETTI, Andy. It – A Coisa: Capítulo 2. EUA: Warner Bros, 2019.

STOKER, Bram. Drácula. Tradução: HELOISA, Márcia. São Paulo: Darkside, 2018.