
História da Menina Perdida, capa
“Todos os Airota haviam perdido. E mais um perdedor foi Nino, que no fundo me considerara parte de seu elenco de mulheres, sem me distinguir das outras. Por fim – Algo ainda mais significativo para mim – quem também perdeu foi Lila. Ela não havia gostado do meu livro, tinha sido muito dura, cedera a um dos raros choros de sua vida quando teve que me ferir com seu julgamento negativo. Mas não lhe queria mal por isso, ao contrário, estava contente que tivesse errado. Desde a infância eu lhe atribuída peso excessivo, e agora me sentia quase aliviada. Finalmente estava claro que aquilo que eu era não era ela, e vice-versa. Sua autoridade não me era mais necessária, eu tinha a minha. Me senti forte, não mais vítima das minhas origens, mas capaz de dominá-las, de lhes dar uma forma, de resgatá-las para mim, agora era a matéria que me levaria mais para o alto. Numa manhã de julho de 1982, telefonei para ela e disse:
‘Tudo bem, vou ficar com o apartamento em cima do seu, estou voltando ao bairro’”
FERRANTE, Elena. História da menina perdida. P 255.
Já tratamos dos livros da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante algumas vezes nesse site. Deixarei ao final os links do texto sobre A Amiga Genial e dos demais onde são estabelecidas comparações com partes dessa obra.
Essa postagem será um fechamento dessa conversa. Falará mais especificamente do último livro da saga e, a partir dele, tratará do tema do amadurecimento das personalidades humanas em outras obras.
Bem, o livro chama História da Menina Perdida, então não é spoiler dizer que a filha de alguém será perdida no enredo.
Mas isso não é o principal. Ao longo dos quatro livros Elena Ferrante vai construindo o relacionamento entre Lenu e Lila, digo relacionamento porque não há como classifica-las como amigas continuamente. Como foi dito no texto sobre A Amiga Genial, competição entre mulheres não é um problema em si. Seres humanos competem, e tudo bem. Acontece que para as duas protagonistas isso atinge níveis quase patológicos.
Elas alternam altivez, subserviência e dependência uma em relação a outra durante toda sua história de vida, pois os quatro volumes compõem um romance de formação, que se inicia na infância com A Amiga Genial, passa pela adolescência e juventude com Historia do Novo Sobrenome, pela vida adulta em que estão construindo carreiras ou trabalhando para sobreviver em História de Quem Foge e de Quem Fica, e culmina com a vida adulta a partir dos 40 anos de idade até a velhice em História da Menina Perdida.

Capas dos livros que compõem a Tetralogia Napolitana.
Os livros seguem uma onda crescente de tensão e complexidade, sendo o último livro o ápice da falta de ar, o momento em que a onda quebra, colapsa. A vida delas e de todos os moradores do bairro de Nápoles em que vivem, dos núcleos de Florença, Gênova e Roma é bastante agitada, cheia de altos e baixos. Os personagens representam vários seguimentos da sociedade italiana do pós guerra até os anos dois mil.
Em História da Menina Perdida vemos a vida de Lenu e Lila atingir suas melhores fases e, então, um fato inesperado e desesperador acontece, separando-as finalmente. O fim de uma era ocorre nesse último livro da série.
É somente na última parte da vida, que Lenu finalmente realiza que não precisa de Lila, e consequentemente que não pode culpá-la por seus erros e acertos. Enfim, amadurece, toma as rédeas da própria existência.
Ah! Então depois dessa epifania ela se torna uma mulher feliz e realizada, certo? Errado. Ela apenas passa a assumir responsabilidades por suas escolhas, ao invés de se escorar na amiga para dividir responsabilidades. E muita coisa inesperada acontece de bom e de ruim a partir daí.
O que não quer dizer que Lila era uma boa pessoa. Nessa obra não há boas pessoas e ponto, todos os personagens são complexos. Lila também se escorava na amiga. Mas com outra abordagem, um tanto mais disfarçada e sorrateira. Como se para se sentir bem Lila tivesse que sabotar Lenu.
A vontade é de estapear e algumas páginas depois de abraçar e acolher as duas. Particularmente eu gosto mais da personagem Lila.
História da Menina Perdida não trata apenas do relacionamento entre duas amigas, embora seja esse o fio condutor. Entremeados na história principal estão temas como: identidade de gênero, uso de drogas ilícitas, máfia italiana, violência doméstica, valor do estudo, relações de família, autoestima, síndrome da impostora, machismo, sindicalismo, relações de trabalho e militância política.
Lenu e Lila precisaram ir do luxo ao lixo várias vezes e viver por muitos anos para terem coragem de ser quem eram e amadurecer. É simplesmente fantástico!
Então na esteira do amadurecimento das heroínas de Elena Ferrante, outros personagens precisaram passar por coisas complexas para obter crescimento pessoal.
Vamos falar de duas mulheres da ficção e suas trajetórias.

Pôster de Mad Men
Iniciando por Betty Draper, a primeira esposa de Don Draper em Mad Men, interpretada por January Jones. Estamos falando dos Estados Unidos na década de 1950, uma época em que mulheres como Betty se casavam cedo para ter filhos e viver a família ideal americana. Betty encarnava bem esse papel. Vivia para cuidar do lar e dos filhos, era extremamente bela, do tipo nem um fio de cabelo fora do lugar, imatura. Betty, oriunda de uma família rica de Nova Jersey, conheceu Don Draper enquanto trabalhava como modelo em uma das campanhas publicitárias criadas por ele.
Ela se torna a típica dona de casa do subúrbio de Nova York, à medida que vai descobrindo que seu marido perfeito não era assim tão boa pessoa, a saúde mental dela vai se deteriorando, até que depois de várias decepções eles se separam.
Betty rapidamente se casa novamente, a série trata a personagem como uma mulher amarga depois da primeira decepção amorosa, entretanto, pode-se interpretar o comportamento de Betty enquanto casada com seu segundo esposo, como o de uma pessoa que cria uma couraça para evitar novas decepções.
A personagem dá uma sumida da série e ressurge chiquérrima, decidida, imune ao charme de Don Draper e assim permanece até o final.
A outra é Sansa Stark. Não a dos livros, a da série. Sei que há diferenças entre as trajetórias da Sansa interpretada por Sophie Turner na série Game of Thrones da HBO e a Sansa do livro que originou a série e foi escrito por George R. R. Martin.
Não li os livros e talvez não os leia, a menos que o autor escreva um final para a série.
Vamos a Sansa, era a filha mais velha de uma família de nobres que governava a região conhecida como Winterfell e fazia parte dos Sete Reinos. A série é ambientada em um universo medieval e, considerando os valores da Idade Média, as mulheres jovens com origens semelhantes às de Sansa Stark, tinham como único e desejado destino casar-se com um homem de status importante e dar-lhes filhos. É nesse contexto que ela faz a sua primeira má escolha, tornar-se noiva do primogênito do Rei Roberth Baratheon, que era casado com a Rainha Cercei Lanister.
O nome desse mancebo era Joffrey Baratheon e ele se tornará rei após o falecimento de seu pai.
E, caramba, ela vai ser humilhada, das mais variadas formas, ameaçada de morte, enganada, violentada, vai comer o pão que o diabo amaçou. Até que de repente se dá conta de que tinha sido ingênua ao extremo, ludibriada e usada por muita gente ao mesmo tempo que percebe o poder de que dispõe com a ausência dos irmãos mais velhos em Winterfell. Ela dá a volta por cima, endurecida, como não poderia deixar de ser depois de tanto sofrimento.

Pôster de Game of Thrones
Para fugir do então Rei Joffrey Baratheon, ela se alia ao cortesão Lord Baelish, também conhecido como Mindinho. Esse senhor vai usá-la de forma muito dissimulada para variadas tramoias pensando exclusivamente em seu próprio favorecimento. Uma dessas jogadas é torna-la noiva do então senhor de Winterfell, Ramsay Snow.
O pior momento dessa maravilhosa personagem é certamente esse enlace. A vida conjugal foi breve, até porque o noivo era um sádico que a estuprou e torturou.
Depois da redenção, quando a família Stark retoma Winterfell, Sansa diz a sua irmã Ária: “Sem Mindinho, Ramsey e o resto, eu teria sido um Passarinho a vida toda.”
Essa fala de Sansa foi muito criticada na época da primeira exibição daquele episódio. Não pela referência ao sofrimento em si, que inegavelmente proporciona crescimento aos indivíduos da raça humana, mas porque a personagem sofreu atrozmente e a construção da frase pode ser interpretada como uma certa “gratidão”, podendo dar a impressão o mal infringido a Sansa se justificava posto que forjou-lhe o caráter.
Apesar dessa de concordar com essa problematização, o final da personagem Sansa foi um dos poucos finais que me agradou. Sansa se tornou uma promissora governante de Winterfell, que jamais se deixaria pisar novamente, embora não precisasse daquela desgraceira toda.
Por fim, um caso de amadurecimento masculino: Alex DeLarge, de Laranja Mecânica.
Esse é um caso diferente dos citados até aqui e não só porque ele era um homem. Primeiro porque ele era um delinquente, torturador, assaltante, estuprador, adepto do que ele chamava de ultraviolência. Por esses crimes ele foi preso e julgado a vinte anos de prisão, então o governo precisando de uma cobaia, fez com ele um acordo pelo qual Alex consentia em passar por um processo de lavagem cerebral chamado Método Ludovico. O “tratamento” deveria deixa-lo incapaz de cometer crimes. Num primeiro momento, o método funcionou e ele parou realmente de cometer crimes, mas não porque tenha sido lapidado, mas porque toda vez que pensava em contravenções ou violências se sentia nauseado e não conseguia prosseguir.

Capa do livro Laranja Mecânica.
No livro de Anthony Burgess e no filme de Stanley Kubrick, Alex consegue reverter o efeito do método Ludovico e se torna novamente um adepto da ultraviolência.
Ou seja, nada adiantaram os métodos radicais de punição que serviram de circo para entreter e enganar a sociedade, mas não recuperavam os detentos.
O que trouxe amadurecimento para Alex foi um inesperado encontro com um amigo, e isso só ocorre no livro. Esse amigo, que era ex drugui de sua gang, estava em um café. Quando começam a conversar algumas coisas simples agem no cérebro de Alex como insights que mudarian seu padrão de pensamento.
Laranja Mecanica é uma obra escrita em uma linguagem específica, que era falada pelos druguis, os jovens das gangs da cidade. Quando Alex se aproxima de Pete no café falando com todas aquelas gírias a garota que acompanhava Pete demonstra não estar entendendo nada e, além disso, o interlocutor não responde com o mesmo vocabulário. A segunda coisa é que Pete apresenta a garota como sendo sua namorada, então o casal se levanta e despede de Alex que fica sozinho pensando que é aquilo que ele quer para ele, uma namorada e uma vida adulta. Nessa hora ele entende que não é mais um adolescente e que naquele contexto não fazia sentido nenhum seu comportamento.
No caso de Alex, não houve intervenção ou sofrimento de qualquer espécie capaz de despertá-lo para as responsabilidades, apesar de tudo o que ele viveu, ele só se tornou um humano minimamente amadurecido por conclusões próprias, quando chegou o tempo dele.
FERRANTE, Elena. História da Menina Perdida. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
BENIOFF, David & WEISS, D.B. Game of Thrones. Irlanda do Norte, Croácia, Islândia, Espanha, Malta & Marrocos: Warner Bros. & HBO, 2011-2019.
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Edição especial de 50 anos. Tradução: FERNANDES, Fábio. São Paulo: Aleph, 2012.
FERRANTE, Elena. A Amiga Genial. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
FERRANTE, Elena. História do Novo Sobrenome. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
FERRANTE, Elena. História de quem foge e de quem fica. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
WEINER, Matthew & HORNBACHER, Scott. Mad Men. EUA: Lionsgate Television, 2007-2015.
Postagens em que já foram mencionados os livros da Tetralogia Napolitana:
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão – Minando a alma feminina
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