Grande Sertão: Veredas

“Conto. Reinaldo ― ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. Se sem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor podia vir mandado do Dê? Desminto. Ah ― e Otacília? Otacília, o senhor verá, quando eu lhe contar ― ela eu conheci em conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se diz! quando os anjos e o voo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, estilo dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois lhe conto; tudo tem o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que eu tive de Se pode? Vem horas, digo! se um aquele amor veio de Deus, como veio, então ― o outro?… Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e antôntem amanhã! é sempre.Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível. Digo! afora esses dois ― e aquela mocinha Nhorinhá, da Aroeirinha, filha de Ana Duzuza ― eu nunca supri outro amor, nenhum. E Nhorinhá eu deamei no passado, com um retardo custoso. No passado, eu, digo e sei, sou assim! relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu incendiei! eu ficava escutando ― o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!”

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. p 105.

 

Esse é um dos livros brasileiros mais celebrados mundo a fora. O que é totalmente compreensível. Maravilhoso! Merece todo o incenso que atrai. É uma obra digna do Nobel, que talvez não tenha sido consumado pela morte precoce do autor.

A linguagem usada por Guimarães Rosa em Grande Sertão é tão peculiar que chega a dar vontade de pegar uma tradução para a versão em inglês, francês ou qualquer outra língua que se compreenda minimamente só para ver como foi possível traduzir “nonada”, “toleima” e todo o resto.

Mesmo nas frases sem aglutinações, arcaísmos ou palavras criadas pelo autor, a construção está longe do português formal. Esse é sem dúvida o trunfo maior dessa obra que tem outros tantos aspectos geniais.

É difícil? É difícil. É para ler com calma, voltando para pronunciar as palavras em voz alta, tentando compreender o sentido pela sonoridade e sabendo que não entenderemos tim tim por tim tim. Muitas vezes é necessário se contentar em pegar o sentido da coisa sem se preocupar com cada palavra.

Passadas as vinte primeiras páginas a coisa vai. Vai porque Riobaldo é o cara, a história é sensacional e o leitor se acostuma com o estilo e o léxico do sertanejo do norte de Minas Gerais.

João Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa era médico de formação, depois tornou-se diplomata tendo servido um tempo no consulado de Hamburgo na Alemanha. Essas duas facetas profissionais são muito importantes para a concepção de Grande Sertão: Veredas. A medicina propiciou que ele trabalhasse atendendo pessoas no norte de Minas. Ele próprio era mineiro, mas de outra região e de condições de vida bem mais confortáveis do que os atendidos por ele.

Vinícius de Morais teria dito do colega de Itamaraty que era um romancista quase científico, porque tinha cadernos com anotações sobre aspectos geográficos, fauna e flora do cerrado do norte de Minas, além de costumes e dizeres dos habitantes da região do rio São Francisco. Antes de ser um escritor, era um exímio observador.

E a Alemanha? O que Hamburgo pode ter a ver com Grande Sertão: Veredas? A influência da língua alemã no texto é evidente. O texto é cheio de palavras emendadas, aglutinações. Esse recurso é característico da língua alemã. Lembrando que Guimarães Rosa era poliglota. Funcionário de relações exteriores do Brasil. Tendo ele e sua esposa Aracy, a quem ele dedica essa obra prima, tido importante influência no auxílio a judeus alemães na Segunda Guerra Mundial.

O sotaque de Minas Gerais também é conhecido por pronunciar palavras aglutinadas, como os famosos: lidileite e mastomate. Mas, Guimarães foi além dos mineirismos e usou recursos de diversas línguas estrangeiras para compor o léxico dos jagunços.

Quer saber de um detalhe bizarro? Guimarães adiou por muito tempo o aceite do convite para ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras. Era supersticioso e acreditava que ao aceitar sua vida estaria completa e ele morreria. Aí quando finalmente ele se tornou imortalizado pela academia em 1967… morreu dois dias depois, aos  59 anos de idade de causas naturais.

Não dá para dizer honestamente que essa tenha sido minha segunda leitura da obra, porque quando o fiz, lá na década de 90, fiz sem muito entusiasmo. Achando chato e difícil. Adolescente querendo dizer que Guimarães Rosa não é tudo isso. Por outro lado, mesmo tendo lido por obrigação, os segredos da trama eu já sabia. Isso fez diferença nessa segunda leitura. Esse é um livro para ser relido, prestando a atenção no comportamento dos personagens e nos indícios do que está por vir.

Apesar de eu já saber os segredos mais cabeludos antes de terminar o livro e isso tenha sido útil, recomendo que no primeiro contato o leitor venha sabendo o menos possível da trama.

Chega de delonga vamos ao enredo sem spoilers. Um homem, meio corajoso meio covarde, faz parte de um grupo de jagunços no interior norte de Minas Gerais. Região das veredas de buritis.

Grande Sertão: Veredas (Série)

Os personagens principais são os jagunços Riobaldo e Diadorim. Riobaldo entra para a jagunçagem porque quer acompanhar Diadorim, o homem mais corajoso que já encontrou e por quem era platonicamente apaixonado. Eles se tornam melhores amigos, inseparáveis mesmo. Um protege o outro e confiam cegamente entre si.

O autor vai construir o código de ética dos Jagunços, as crenças no diabo ou coisa que o valha bem como a crença em Deus, a briga entre grupos adversários, as mudanças na chefia dos bandos.

Diadorim não se apresenta com esse nome para a todo o bando, para os demais ele é Reinaldo, apenas Riobaldo sabe de seu outro nome.

Eles farão parte do bando comandado por Joca Ramiro, um Jagunço experiente, corajoso, justo segundo o código de ética deles. Joca Ramiro é um pop star para os seus seguidores, principalmente Diadorim. Aí nesse ponto vamos ter que falar de outros dois personagens: Zé Bebelo e Hermógenes.

Zé Bebelo, inicialmente, é o líder de um grupo que tem como finalidade combater os jagunços. Ele é inteligente, tem contatos com o governo e a polícia e aspirações que mudam ao sabor do vento. Primeiro ele quer ser o herói que acaba com os Jagunços, depois quer ser candidato a cargo político, depois quer ser líder de jagunços. É um personagem muito interessante.

Hermógenes é um homem cruel. Pode parecer redundante quando falamos de pessoas que se unem em bando para assaltar, matar, estuprar e viver de atrocidades em um Brasil onde a lei e o Estado não chegam, mas ele é pior que os demais. Hermógenes é o braço direito de Joca Ramiro, até o dia que Joca Ramiro o contraria.

O livro todo é uma conversa de Riobaldo com o interlocutor misterioso. Sem pausas, diretão, umas quinhentas páginas de um quase monólogo. A única voz que o leitor ouve é a de Riobaldo, mas, vez ou outra, ele lança perguntas como se repetisse a questão feita pela pessoa que conversa com ele.

Temos única e exclusivamente o ponto de vista de Riobaldo. Ou seja, o narrador é nada confiável e ensimesmado.

Especula-se se esse interlocutor seria alguém em específico como o próprio Guimaraes Rosa ou Euclídes da Cunha, cuja obra Sertões teria influenciado Grande Sertão: Veredas.

Preciso confessar que atribuía a Grande Sertão uma frase que na verdade é de Sertões. Li o livro todo procurando “O sertanejo é antes de tudo um forte” e não achei porque não era mesmo para estar lá.

Grande Sertão: Veredas está lindamente posicionado no seleto grupo de meus livros nacionais preferidos junto com Vidas Secas, Memórias Póstumas de Brás Cubas e outros poucos.

Dava para explorar esse livro e os comparativos possíveis sob inúmeras perspectivas: religião, regionalismo, superstições, amor platônico e por aí vai. Escolhemos aqui a ambiguidade, a flexibilidade moral, porque, além de ser uma das mais interessantes facetas desse texto é também a que entrega menos sobre o que faz esse livro ser excelente no intuito de não estragar a experiencia de ninguém.

Vereda

Em Riobaldo e no código de ética dos jagunços a ambiguidade impera. Ele é um homem que vive de cometer crimes, mas que acha que é uma pessoa boa. Ele por diversas vezes vai dizer que Hermógenes é muito cruel e mata com torturas e requintes de crueldade e que essa característica do colega faz dele uma pessoa ruim. Ok, concordo que Hermógenes é pior que a média, porém não há como ser um jagunço gente boa. As pessoas atacadas por eles não concordariam que um é bom e o outro é ruim dentro do mesmo bando que causou tanto mal às suas famílias.

Riobaldo na conversa com o misterioso homem letrado, faz questão de frisar o quanto ele é um homem de princípios.

Em um trecho ele vai dizer que não acha certo estuprar, mas que cada um sabe de si. Aí a gente acha que os demais homens do bando satisfazem suas necessidades sexuais dessa maneira execrável, o que, segundo a ética jagunça era permitido, mas que Riobaldo não era adepto dessa prática, até ele mesmo dizer que já teria estuprado duas vezes sendo que na primeira não achou nada demais, mas os olhos desesperados da segunda vítima o fizeram mudar de ideia.

Isso foi só um exemplo da moral flexível do nosso anti-herói.

Nessa linha das contradições do espírito de Riobaldo e seus companheiros, vamos agora conversar sobre um caso real em que a moral flexível está presente.

Capa da Time. Edição especial sobre o Unabomber

Theodore Kaczynski (Ted), esse senhor de QI bastante elevado, compartilha com Riobaldo não só o espírito ambíguo, mas também a capacidade intelectual, uma vez que nosso jagunço era pensador, quase um filósofo, considerado um sábio no meio em que vivia.

Ted era matemático e professor universitário nos Estados Unidos. Esse homem foi admitido como aluno em Harvard aos 15 anos de idade e era descrito como estranhamente reservado por seus colegas de dormitório.

Talvez a única pessoa que realmente tenha sido íntima de Theodore fosse seu irmão David.

Ele teve uma infância problemática, tendo ficado isolado dos pais por um período de meses devido a um tratamento de urticárias severas. Depois quando se constatou que ele tinha QI de 167 pontos, pulou um dos anos do ensino fundamental. Nesse ponto, Ted se isolou mais ainda das outras pessoas porque não conseguiu se ajustar socialmente entre os alunos mais velhos.

E para coroar as dificuldades da vida desse rapaz e as influências que recebeu, o pai, que sofria de câncer, cometeu suicídio quando Ted tinha já 48 anos de idade.

Segurem essas informações sobre a vida pessoal de Ted e somem a elas uma das coisas mais estranhamente sádicas e brutais que a ciência conseguiu produzir: o estudo psicológico conhecido como MK Ultra, uma parceria de Harvard com a CIA. Parece conspiratório e é.

Kaczynski foi por anos cobaia desse estudo que utilizava LSD e técnicas para debilitar psicologicamente os submetidos. Segundo o psiquiatra Harvey Weinstein “A ideia era tratar de descobrir como interrogar as pessoas e debilitá-las, e também como proteger seu pessoal dessas técnicas”. Claro que nem Ted nem os outros voluntários tinha ideia do que era o real propósito da “pesquisa”. Deixo aqui o link da matéria da BBC sobre esse experimento que foi além da universidade e acabou estragando a vida de diversas pessoas, muitas delas nem voluntários eram.

O MK Ultra, seus idealizadores e executores também se encaixam no conceito de ambiguidade moral explorado aqui, mas vamos nos ater a Ted Kaczynski e suas ações. Esse preâmbulo era necessário para entender que ele era uma pessoa que teve eventos em sua vida que deixaram marcas e o transformaram no produto final: um homem que causou, pelo menos, dezesseis explosões de bombas nos EUA, vitimando várias pessoas.

Jovem Theodore Kaczynski

A partir daqui vamos chamá-lo pelo nome pelo qual ficou conhecido: Unabomber. Essa alcunha é resultado da sigla usada pelo FBI para se referir a ele: University and Airline Bomber. Outra referência muito boa para entender o caso do Unabomber é o podcast Modus Operandi, episódio 90.

Infelizmente, ataques terroristas são muito frequentes no mundo. As motivações vão desde causas religiosas, políticas, passando por vingança pessoal, tentativas de atrair para si a atenção ainda que por um motivo hediondo. É justamente a motivação que faz o Unabomber um tipo particular de terrorista.

Esse homem acreditava estar fazendo o bem em alertar a sociedade dos perigos causados por ela própria e sua relação com o consumo desenfreado, produção industrial/tecnológica e meio ambiente. Tudo bem causar uns prejuízos e matar alguns se a causa é nobre, certo? Erradíssimo, mas era assim que ele raciocinava.

O terrorista, apelidado de Unabomber fez exigências a grandes órgãos de imprensa para que seu manifesto de 35.000 palavras chamado Sociedade Industrial e Seu Futuro fosse publicado na íntegra e assim ele pararia as explosões. O Unabomber foi preso em 1996 e condenado a prisão perpétua sem possibilidade de condicional depois de se declarar culpado de todas as acusações. Posteriormente, ele tentou refazer sua declaração com o objetivo de se declarar inocente, esse pedido foi negado.

Capa do Manifesto Unabomber

Aqui é legal frisar que esse homem se considerava inocente de verdade. Não porque não fosse ele o fabricante das bombas, mas porque ele entendia que era um instrumento para evolução e a promoção da harmonia ecológica, posto que as vítimas seriam os vilões que fazem mal uso dos recursos naturais e, portanto, era justificável que as bombas e cartas fossem usadas para espalhar a palavra do Unabomber.

Outro detalhe importante é que o ensaio de Kaczynski é considerado bem escrito e fundamentado e é objeto de estudo ainda hoje. O manuscrito também é conhecido como Manifesto Unabomber.

Assim como Riobaldo, Kaczynski tem sua consciência tranquila, pois fez o que era necessário para a manutenção do bem, nesse caso pela defesa da causa ambiental. Para Riobaldo e sua moralidade torta a causa nem era “nobre” o que chama atenção é o exercício comparativo que ele faz com outras pessoas, jagunços ou não, que o permitem se sentar em cima dos crimes que cometeu e se considerar uma pessoa boa. Na tentativa de Riobaldo de justificar, para si e para os outros, as atrocidades cometidas, comandadas ou toleradas por ele, ele se mostra um homem incapaz de assumir a culpa por seus atos. Mudando a régua do certo e errado para fazer caber o conceito que tem de si mesmo.

Entre as adaptações para teatro e audiovisual destaca-se a versão de Grande Sertão: Veredas como série pela rede globo em 1985. Não assisti porque não achei.

Bônus: a maravilhosa Maria Betânia recitando um trecho de Grande Seretão: Veredas. É fantástico.

 

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.