
Garota, Interrompida
“A solitária era do tamanho de um banheiro residencial. A única janela era a da porta, reforçada com tela de galinheiro, que permitia que espiassem para ver o que a gente estava fazendo. Não dava para fazer grande coisa ali dentro. Sobre o piso de linóleo verde apenas um colchão sem lençol. As paredes estavam descascando, como se alguém as tivesse atacado com unhas ou dentes. A solitária, supunha-se, devia ser a prova de som. Não era.
Podíamos nos enfiar na solitária, fechar a porta e gritar por algum tempo. Quando acabávamos, podíamos abrir a porta e sair. Gritar na sala de TV ou no corredor era “atuar” (um termo psicológico), coisa mal vista. Quanto a gritar na solitária, tudo bem.
Também podíamos ‘solicitar’ que nos trancássemos na solitária. Poucas pediam isso. Também era preciso ‘solicitar’ para sair. Uma enfermeira espiava pela tela de galinheiro e decidia se você estava pronta para sair. Um pouco como quem espia um bolo pelo vidro do forno.
Segundo as regras de etiqueta da solitária, qualquer pessoa podia se juntar a você, desde que você não estivesse trancada. Uma das enfermeiras podia interromper sua gritaria para averiguar seu motivo, ou outra maluca qualquer podia entrar e começar a gritar com você. Daí essa história de ‘solicitação’. O preço da privacidade era a liberdade.
A verdadeira finalidade da solitária, contudo, era colocar as piradas em quarentena. Como grupo, a gente se mantinha em determinado grau de agitação e angústia. Aquela que passasse mais que poucas horas acima desse nível ia para a solitária.”
KAYSEN, Susanna. Garota, Interrompida. p. 56.

Susanna Kaysen
Susanna Kaysen registrou em livro sua experiência em um hospital de saúde mental. No dia 27 de abril de 1967, ela se internou “voluntariamente” na instituição depois de uma tentativa de suicídio, da qual ela se arrependeu logo no início e procurou socorro por conta própria. Susanna havia tomado uma quantidade absurda de aspirinas com vodka.
Reconhecendo que precisava de ajuda e após uma intervenção da família ela pegou um taxi e foi sozinha ao psiquiatra que determinou sua internação. Em sua expectativa, ela ficaria umas duas semanas até se recuperar e retornar para casa, mas… a temporada naquele manicômio durou dois anos. Não era um hospital qualquer, era particular e renomado, tendo recebido figuras como Ray Charles e Sylvia Plath.
Esse livro é ótimo. Enquanto lemos as páginas narradas em primeira pessoa e vamos conhecendo as personagens da ala feminina, mesmo sem grandes conhecimentos psiquiátricos, dá para perceber que Susanna realmente precisava de ajuda profissional. Talvez não fosse o caso de internação ou pelo menos não uma tão longa. O fato é que bem ela não estava.
As personagens coadjuvantes são maravilhosas, Lisa, a sociopata, é a mais presente e a mais interessante. Além dela tem uma com transtorno alimentar, uma que sofre abuso do pai, uma que é viciada em anfetaminas, é um caldeirão de comprometimentos psicológicos dos mais variados graus, causas e diagnósticos.
O leitor vai saber em detalhes como funciona a instituição, tendo inclusive descrições que permitem imaginar com bastante precisão os recintos. As impressões de Susanna sobre os profissionais, estagiários, colegas, prédio, seus pais e sobre loucura em sentido conceitual são muito bem estruturados na narrativa.
Ela faz apreciações pertinentes sobre: o que é ser louco; os padrões para que se considere uma mulher desajustada e suas diferenças dos padrões aplicados para os homens; o que significa no currículo de uma pessoa ter ficado em um hospital psiquiátrico por dois anos. Por se tratar de história real, a autora teve conhecimento de causa, interesse e tempo para desenvolver esses pensamentos.
O diagnóstico de Susanna era transtorno de personalidade limítrofe ou borderline. Que em toscas palavras se caracteriza por uma severa instabilidade emocional, com alterações de humor abruptas.
Susanna Kaysen construiu um livro irônico e bem humorado. Ficou uma leitura leve sobre coisas graves, que permite ao leitor ver a história da personagem principal e de todos os que a rodeiam pela perspectiva dela, da perspectiva de uma pessoa diagnosticada com personalidade borderline.
Em 1999, Garota, Interrompida foi transformado em filme, com o mesmo nome, e foi um sucesso, com destaque para as atuações de Winona Ryder, como Susanna, e Angelina Jolie, como Lisa. Angelina ganhou o Oscar e o Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante.
É bom como o livro? Não. O livro é bem melhor e o filme dá aquela hollywoodizada fazendo com que a personagem Susanna desenvolver uma dependência emocional em relação a Lisa, exagerando bastante nos rompantes de Lisa, com aquele final a lá Morgan Freeman entimental e repleto de lições de moral e frases de efeito. Prefiro de longe o livro, porém preciso registrar que o filme é muito bom. Às vezes roteiristas fazem escolhas que entendem funcionar melhor no audiovisual do que o que está esmiuçado no livro. Afinal filmes são produzidos para dar lucro e vida que segue.
A título de exemplo: o filme dá a entender que a personagem Susanna pode ser só uma adolescente mais rebelde, sem ter necessariamente um transtorno mental. No livro a autora deixa claro que concorda com o diagnóstico, apesar de questionar a duração da internação e outros métodos. O filme mostra que a Lisa também tem transtorno de personalidade borderline e esse não é o diagnóstico dela no livro. Lisa é uma personagem bem menos agressiva que a do filme.
Enfim livro e filme não contam exatamente a mesma história, mas são duas histórias excelentes.
Sobre o transtorno de personalidade limítrofe ou borderline, tem uma comédia muito engraçada e agoniante em termos de vergonha alheia e empatia pelos personagens todos chamada Bem-vindos ao meu mundo, título original: Welcome to Me. Nela, uma mulher de cerca de 30 anos usa medicação controlada e frequenta psicanálise para se manter estável.
Essa pessoa vai ganhar 86 milhões de dólares na loteria e declarar sua independência em relação ao tratamento psiquiátrico. Ela era obrigada a frequentar o consultório e a fazer terapia por ser condição para receber auxílio financeiro do governo. Uma vez rica, ela simplesmente larga todo o tratamento.
É mais um caso de história bem humorada para abordar questões delicadas no campo da saúde mental, não só da personagem principal, Alice Klieg, mas também dos que a cercam.
Bem-vindos ao Meu Mundo tem uma proposta diferente do filme Garota, Interrompida. Enquanto um é irônico e dramático, o outro exagera nas situações para abordar o tema dos transtornos mentais pela comédia.
Assim como no texto sobre A Garota Dinamarquesa, deixo uma indicação de podcast informativo acerca do que é o transtorno de personalidade limítrofe ou borderline.
O podcast em questão é o Entrementes, apresentado por Luiz Fujita Jr., que faz parte do Portal Dráusio Varella. O episódio sobre personalidade borderline é o de número 7, em que o convidado foi o psiquiatra Marcus Zanetti, docente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês.
Garota, Interrompida, o livro, saía pela editora Única e está esgotado. Infelizmente. Adquiri a minha cópia em um sebo que usa a plataforma Estante Virtual.
KAYSEN, Susanna. Garota, Interrompida. Tradução: SERRA, Márcia. São Paulo: Editora Gente, 2013.
MANGOLD, James. Garota, Interrompida.EUA: Columbia Pictures, 1999.
PIVEN, Shira. Bem-vindos ao meu mundo. EUA: Universal Pictures, 2014.
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