
Capa de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.
“A mão de Montag se fechou como uma boca, esmagando o livro com selvagem devoção, com descuidada insanidade, junto ao peito. Os homens lá em cima lançavam braçadas de revistas para o ar poeirento. Elas caíam como pássaros abatidos e a mulher permanecia ali embaixo, parada como uma garotinha entre os cadáveres. (…)
Bombearam o líquido frio que traziam nos tanques com o número 451 presos aos ombros. Com ele ensoparam todos os livros, encharcaram os aposentos. Desceram correndo para o andar de baixo. Montag cambaleando atrás deles entre os gases de querosene. (…)
A mulher se ajoelhou entre os livros, tocando o couro e o papelão encharcados, lendo com os dedos os títulos dourados enquanto seus olhos acusavam Montag.
– Você jamais terá os meus livros – disse ela.”
BRRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Pg. 59.
O trecho citado acima prenuncia uma morte. logo nas primeiras sessenta páginas do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, o leitor presencia três experiências de morte ou quase morte por causas não naturais: a de Mildred Montag, esposa do personagem principal, Guy Montag; a de Ann Bowles, mulher que escondia livros; e a de Clarice McClellan, vizinha do casal Montag.
Mildred engole muitas pílulas para dormir sendo necessário chamar a curiosa equipe de socorro que existe apenas para atender esse tipo de caso. Eles tratam o trabalho de lavagem estomacal e recuperação da pessoa que ingere grandes quantidades de pílulas, como algo tão corriqueiro quanto arrumar encanamento. A cena da ação da equipe foi muito bem narrada.
A mulher de Montag leva uma vida entorpecida pelo excesso de televisão, onde todos são belos e felizes. Há uma tendência a ignorar eventos desagradáveis e sufocar os maus sentimentos. Quando Mildred acorda no dia seguinte ao que quase pôs fim a sua vida, age como se nada tivesse acontecido.

Cena de Fahrenheit 451, François Truffaut.
Ann Bowels é uma mulher que esconde livros em casa, os bombeiros são chamados para atender a uma denúncia, posto que ter livros é um crime, e a mulher prefere riscar um fósforo em um ambiente encharcado de querosene a viver sem seus tesouros de papel.
Clarice McCellan é a vizinha estranha, que tem hábitos diferentes e mal vistos naquela sociedade. Ela gosta de caminhar pela rua, o observar o mundo e as pessoas e conversar. A família de Clarice não assiste televisão, preferem conversar.
Ela é assassinada, sua família desaparece. Logo no início da curta convivência entre Clarice e Montag, ele deixa claro que os bombeiros têm acesso a um dossiê completo sobre a família dela.
O relacionamento de Montag com essas três mulheres na primeira parte de Fahrenheit 451, é a síntese do mundo distópico criado nessa obra prima.
As pessoas são proibidas de ler. O único livro que Guy Montag pode ler é o Manual dos Bombeiros. As casas são à prova de fogo, logo a função de apagar incêndios é desnecessária. Em Fahrenheit, os bombeiros dirigem um automóvel que se chama Salamandra e que gera fogo, ao invés de armazenar e lançar água. O fogo se destina a queimar os livros que os subversivos guardam clandestinamente. Ter um livro é ilegal, ter pensamento próprio é imoral e suspeito.
Não há relacionamentos interpessoais de verdade, as pessoas apenas assistem televisão. Na casa de Montag a sala tem duas paredes ocupadas por duas grandes telas e Mildred quer que ele adquira mais uma para a terceira parede. Nas telas, aparecem o dia todo programas sem valor intelectual que interagem com os telespectadores, dando a impressão de que os fazem companhia de verdade. Mildred se refere a essas pessoas desconhecidas como sendo sua família, ela depende dessas telas para se sentir acolhida.
A partir dos poucos dias que Montag conviveu presencialmente com Clarice, ele começou a desenvolver uma habilidade até então estranha a ele: a curiosidade. Como todos os habitantes daquela localidade, o bombeiro apenas tocava os dias. Não questionava sua vida e sentia-se muito bem queimando livros.
Não só a literatura ficcional era proibida, tratava-se de um mundo anticonhecimento, anticriticidade.
Os intelectuais foram presos ou assassinados. Os que escaparam vivem como andarilhos e guardam em suas memórias livros decorados, que recitam uns para os outros para que seus conteúdos não se percam. Alguns ex-acadêmicos vivem na mais absoluta discrição nas cidades, tentando passar desapercebidos.
Bradbury criou esse país futurista em 1953. A primeira fagulha da ideia que se transformou em uma das distopias mais lidas do mundo, apareceu em 1947, em um conto chamado “Bright Phoenix”. Ou seja, Fahrenheit 451 foi iniciado apenas dois anos depois da Segunda Guerra Mundial, tempo em que os países europeus ainda tinham muito vívidos os horrores do nazismo.
Por que a localização temporal é importante? Porque a queima de livros subversivos pelos nazistas, parece ter sido uma influência. Embora o autor tenha declarado que Fahrenheit não trata de censura, mas do efeito deletério do excesso de televisão, a censura é o tema central do livro. É diretriz de um governo totalitário que as pessoas não se informem por fontes variadas, apenas pela tv. É claro que naquela época em que Fahrenheit 451 foi escrito ainda não existiam redes sociais, sendo a TV o principal meio de entretenimento e influência.

Capa do disco Televisão do Titãs.
Essa abordagem de que a o excesso de telas e de informações rápidas que não estimulam o pensamento deixa as pessoas incapazes de raciocinar está na música Televisão, da banda Titãs. Naquela letra, o eu lírico parece não sair da frente das telas, acreditando e absorvendo tudo o que a “antena captar”.
Na estrofe “Ô Cride, fala pra mãe/ Que eu nunca li num livro que um espirro fosse um vírus sem cura/ Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!/Ô Cride, fala pra mãe!” demonstra desprezo pelos livros e entendimento de que a informação formatada para os programas televisivos são mais úteis a ele. Assim como os personagens ajustados à sociedade criada por Bradbury.

Capa de Admirável Mundo novo de Aldous Huxley.
A obrigação de ser feliz, o acesso aos remédios calmantes e o entorpecimento para não sentir nada ruim se assemelham ao que acontece com os personagens de outra distopia, tão aclamada quanto Fahrenheit 451, que é a obra de Aldous Huxley Admirável Mundo Novo. No livro de Huxley não há pessoas infelizes, todas tem um padrão de comportamento rígido e classes sociais muito definidas, cada qual com a informação que precisa para se sentir útil e ajustado. Para a mesma função dos calmantes de Bradbury, Huxley pensou em uma droga sintética chamada Soma, que é distribuída como ração com quantidades determinadas para cada classe social e de que fazem uso toda vez que sentem tristeza ou outro sentimento incômodo.
Muitos governos autoritários censuraram e queimaram livros e todos eles declararam que algum conteúdo era impróprio aos governados. Além da já citada Alemanha das décadas de 20, 30 e começo da década de 40, temos outros exemplos: a China de Mao Tsé-Tung, que não só queimou livros como tornou obrigatória a leitura do Livro Vermelho; a proibição de livros, notícias e conteúdos críticos na Coreia do Norte e Cuba (apesar do alto grau de instrução dos cubanos e seus avanços na área de saúde); e a ditadura cívico-militar brasileira que durou de 1964 a 1985.

Cartaz de propaganda maoísta. A chamada Revolução Cultural durou de 1966 a 1976.
Mais especificamente sobre o caso chinês, a chamada Revolução Cultural, que difundiu o maoísmo, durou de 1966 a 1976. Apenas livros considerados revolucionários eram permitidos, isso se aplicava também ao cinema e à música. Para ajudar a entender a Revolução Cultural chinesa, há um filme lindíssimo, que mostra algumas facetas desse período em uma trama que acompanha personagens que sofrem os efeitos da revolução de maneiras diferentes: Balzac e a Costureirinha Chinesa, de Dai Sijie. É também de Dai Sijie, o livro homônimo que baseou o filme.
Uma das personagens principais é uma menina de 18 anos conhecida na aldeia como Costureirinha, porque domina o ofício da costura e porque é neta do alfaiate da comunidade, atividade que o torna uma espécie de celebridade. Dois jovens vão passar uma temporada nessa aldeia obrigados pelo governo. A infração dos rapazes é serem filhos de pais considerados reacionários. Ali são forçados a trabalhar na mineração e na lavoura. Todos na aldeia são analfabetos e seguidores do líder Mao.

Cartaz do filme Balzac e a Costureirinha Chinesa, de Dai Sijie.
Quando os rapazes chegam na aldeia para seu processo de reeducação, o chefe destrói quase todos os pertences deles. Para salvar o violino, um deles pede para o amigo violinista que toque Mozart. O chefe questiona se Mozart é do mundo capitalista e ouve do rapaz que a música se chama “Mozart está pensando no comandante Mao”. Então a música enche a sala e o rapaz passa a ser convocado para tocar músicas “revolucionárias”. Aos poucos eles vão introduzindo elementos da cultura universal e provocando transformações na aldeia.
Uma dessas apresentações transformadoras se dá quando leem para a costureirinha um livro de Honoré de Balzac e a ensinam a ler e escrever, esses atos aliados a outros acontecimentos mudam padrão de pensamento dela.
O livro foi traduzido em 25 idiomas e segue proibido em território chinês.
Voltando à distopia do dia, indico também o filme Fahrenheit 451 dirigido por François Truffaut em 1966. O filme mudou poucas coisas do livro e certamente preservou a essência.

Cartaz do filme Fahrenheit 451, de François Truffaut.
O povo que não tem acesso a conteúdo crítico e boa educação não é questionador, sendo, portanto, mais facilmente dominado. A diferença básica de Fahrenheit 451 para Admirável Mundo Novo e 1984, de George Orwell, é que em Fahrenheit 451 a ideia de cercear o conhecimento e entorpecer os seres humanos, partiu da sociedade. Claro que isso serviu para a instalação de um governo totalitário, acabando por favorecer a alguém ou a um grupo que exerce o controle policial e ideológico. A maioria da população do mundo criado por Ray Bradbury adotou esse modo de vida que valoriza o conhecimento impreciso e opiniões terceirizadas por livre e espontânea vontade. Isso é o mais assustador e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Fahrenheit 451 esteve no texto sobre Vidas Secas – animalização do ser humano e retornará em breve. Esse livro dá motes para muitas discussões.
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. Tradução: KNIPEL, Cid. São Paulo: Bilbioteca Azul, 2020.
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução: VALLANO, Lino e SERRANO, Vidal. São Paulo: Editora Globo, 2003.
SIJIE, Dai. Balzac e a Costureirinha Chinesa. França e China: Europa Filmes, 2002.
TRUFFAUT, François. Fahrenheit 451. Reino Unido: Universal Home Vídeo, 1966.
27/03/2021 at 18:10
Amando cada vez mais suas postagens. Parabéns por compartilhar conhecimento!
28/03/2021 at 11:52
Bonita!!! =)
29/03/2021 at 08:17
Obrigado pelo texto e correlações entre obras distópicas! A troca de livros por telas pretas já está em curso. Gostaria apenas de pedir, caso não seja um spoiler, para explicar o título: “Fahrenheit 451”? Pode ser?
29/03/2021 at 10:24
Que bom que gostou! Claro que posso explicar o título (não é spoiler rsrs). Fahrenheit 451 é a temperatura necessária para que que o papel se queime.
Até mais!