
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios
“Porra, pensei, a foto que eu tinha nas mãos não era só boa, era formidável. Um dos fachos de sol incidia, em segundo plano, sobre uma boneca de pano jogada num monte de entulho. Parecia um spot iluminando uma bailarina caída no palco.
A boneca já estava lá?
Claro.
Chang empurrou o pacote de filmes em minha direção. E ela já estava guardando as fotos no envelope, quando falei:
Eu adoraria ter uma cópia.
Ela congelou o gesto de colocar as fotos no envelope, virou o rosto e me estudou, como se avaliasse se eu tinha mérito suficiente para receber o que pedia. Sustentar aquele olhar escuro foi uma experiência difícil. Fez com que eu me sentisse desamparado. Fiquei com a impressão de estar sendo visto de verdade pela primeira vez na vida. E também de estar vendo algo que o mundo não tinha me mostrado até então.
De acordo com o professor Schianberg (op. cit.), não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, nesse instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. Uma febre, nossa única sequela divina. Schianberg diz mais: ao se apaixonar, um ‘homem de sangue quente’ experimenta o desamparo de sentir-se vulnerável. Ele não caçou; foi caçado.”
AQUINO, Marçal. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. p.15.
Marçal Aquino, o que foi esse livro? Meu Deus! Olha esse título: Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. Até o título é lindo. Excelente! Favoritado!
Ele tem duzentas páginas e demorei bem uns cinco dias para terminar, simplesmente porque é impossível ler de uma sentada só. Não porque a escrita seja rebuscada ou porque seja preciso reler para bem compreender. Nada disso. É que a história é tão intensa e provoca tantos sentimentos que força o leitor a parar para respirar.
Uma história brutal, belamente escrita.
Se alguém souber de algum livro de ficção cuja trama se passa no estado Pará e é uma história leve, faça o favor de me indicar. Tudo o que tive a oportunidade de ler foi ótimo, mas tenso nível lado B. As pessoas descomplicadas e felizes residentes no Pará deveriam escrever.

Pssica
O topo do pódio é de Pssica, do autor Edyr Augusto. Pssica eu devorei em um dia e fiquei com a cabeça perturbada por uns outros três. É ótimo. Desgraceira pura condensada em 108 páginas.
Não vou falar de Pssica, não tenho psicológico para tanto. Quem quiser saber do que se trata, que leia.
Voltemos a Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, que tem uma escrita tão linda e poética que a densidade da trama foi um tanto digerida. E está aí uma das melhores características que um livro pode ter: poesia na prosa. Quem sabe fazer isso deixa os assuntos mais casca grossa envoltos em beleza. Dá mais vontade de ler.
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios conta a história de amor entre o fotógrafo Cauby (como o cantor) e Lavínia, uma mulher deslumbrante, que se interessava por fotografia e era casada com o pastor Ernani.
O cenário importa. A história se passa em uma cidade paraense, rica em ouro, onde há uma forte tensão entre os garimpeiros e a empresa que tem concessão de lavra para explorar a região. Logo é uma cidade violenta, onde acontecem muitos crimes bárbaros.
Desde o início do livro, a gente sabe que aconteceu uma coisa muito grave com o Cauby. No presente ele mora na pensão da dona Jane e está acompanhando, na condição de mero ouvinte, a narração da história de amor de um homem que é conhecido como Careca. Enquanto Careca conta a vida para um jornalista, vamos acompanhando em retrospectiva as recordações de Cauby e as histórias de Lavínia e do Pastor Ernani.
Para mim a pessoa mais prejudicada nesse rolo foi o pastor. Gente, o pastor é uma ótima pessoa. Pessoa fofa. Não merecia.
Vale a pena dar algumas informações sobre os personagens, porque eles realmente merecem. Dessa forma, não entraremos na trama propriamente dita, apenas o que estaria em uma sinopse. O suficiente para te convencer a ler.
O Careca passou a vida toda apaixonado por Marinês e vai contar uma história linda e triste de devoção a essa mulher, por quem sempre nutriu um amor platônico. Detalhe que Marinês sempre foi honesta com ele, sobre não estar interessada nele amorosamente. E ainda assim estamos falando de décadas de dedicação. É mais ou menos o que rolou com Florentino Ariza e Fermina Daza em O Amor nos Tempos do Cólera.

O Amor nos Tempos do Cólera
Tem o dono do jornal, Viktor Laurence, cujo nome verdadeiro ninguém nunca soube e que não era amigo de ninguém.
Tem, é claro, nesse contexto de garimpo em guerra, um matador de aluguel chamado Chico Chagas. E tem também o Chang que era um chinês dono da loja onde Cauby e Lavínia compravam material fotográfico. Chang também trabalhava como fotógrafo. Ele era uma pessoa péssima.
Agora vamos aos principais.
Cauby é um paulistano espírito livre, que já largou tudo e rapou as economias para mochilar e fazer cursos na Europa. Voltou quando o dinheiro acabou. Aí conseguiu um projeto para fotografar prostitutas em região de garimpo e assim foi morar no interior do Pará.
Ele é solteiro, tem uns 40 anos e se apaixona por Lavínia antes de saber que ela era casada.
O Pastor Ernani é um cara gente boa. Foi casado por muitos anos, a esposa faleceu e ele passou a ser um homem superdedicado à Igreja. Morou, no Espírito Santo, onde conheceu Lavínia, depois em São Paulo, depois no Pará. Sempre lugares designados pela Igreja. O Pastor tinha o intuito genuíno de ajudar pessoas em situações de vulnerabilidade, sendo muito considerado pela população local.
Lavínia sempre foi linda e talvez um caso de bipolaridade. Desde criança alternava períodos eufóricos e depressivos. Era bastante impulsiva e dada a acessos de arrependimento súbitos. Lavínia foi violentada, usuária de drogas, prostituta, passou por inúmeras situações difíceis, até que conheceu Ernani, que lhe estendeu a mão. Casou-se com ele e passou a acompanhá-lo em suas mudanças. Cauby e Lavínia tiveram um tórrido romance.
Ela é a melhor personagem em um caldeirão de figuras excelentes.

A Dama do Lotação e Outros Contos e Crônicas
A principal personagem feminina de Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios tem semelhanças com Lexi, interpretada por Anne Hathaway, no 3º episódio, da 1º temporada da série Modern Love, do Amazon Prime, e por outro lado também se parece com a A Dama do Lotação, do conto de Nelson Rodrigues, ou Séverine, personagem de Catherine Deneuve em Belle de Jour.
A Dama do Lotação é Nelson Rodrigues, autoexplicativo. É pervertido e insólito.
Nesse conto, uma mulher da alta sociedade carioca acima de qualquer suspeita é confrontada pelo marido que desconfia de sua traição com um amigo do casal. Então para a completa estupefação do marido Carlinhos, ela, Solange, até então considerada um anjo de candura, admite a traição com o amigo e revela que pega todos os dias a lotação que passa perto de sua casa e então se deita com algum homem que conheça no transporte coletivo. É um conto bem curtinho, com um final interessante.
Belle de Jour, ou Bela da tarde em português, é um clássico do cineasta Luis Buñuel. A personagem principal foi interpretada por Catherine Deneuve. Essa obra é a adaptação do livro homônimo de Joseph Kessel, que ainda não li.
Séverine é outra esposa que tem vida dupla, sendo exemplar em seu lar e sustentando uma vida de prostituta de luxo todos os dias enquanto o marido trabalha. Belle de Jour é o codinome de trabalho da recatada Séverine.
Tudo em Belle de Jour merece atenção. Os planos, o figurino maravilhoso assinado por Yves Saint Laurent, a atuação de Catherine Deneuve e de todo o elenco. Não tem cenas superpicantes, tudo de bom gosto e na medida para que o espectador entenda as fantasias da personagem e o que foi realizado por ela, bem como a vida com o marido e as expectativas que ele tinha para a vida familiar. O filme alterna imaginação e realidade o que justifica a categorização como uma obra do cinema surrealista.
Assim como Lavínia, Solange e Séverine têm lares aparentemente estáveis e gostam dos maridos, mas para dar vazão aos seus desejos que não se encaixam no padrão de casamento que lhes era oferecido, optam por viver vidas duplas, em que assumem outras personalidades.
No caso de Lavínia, o relacionamento extraconjugal era apenas com Cauby. O envolvimento emocional entre eles era forte, e o romance alternava períodos de intensa intimidade com acessos de arrependimento. E é nesse ponto que ela se assemelha à Lexi, do episódio Me aceita como eu sou, quem quer que eu seja, de Modern Love.
Lexi é uma mulher jovem e linda, de personalidade vibrante. Ela conhece um rapaz em uma loja de conveniência, eles tomam café e começam um flerte. Conversa vai conversa vem eles marcam um jantar na casa dela. No dia do jantar ela pressente a chegada de mais uma fase depressiva e põe tudo a perder.
Lexi tem transtorno de bipolaridade e nas fases depressivas mal levanta da cama. Por isso já perdeu empregos, amigos, namorados. O sofrimento dela quando vê que o estopim para uma nova crise aconteceu é angustiante. Ao contrário das outra personagens, essa é solteira, trabalha em uma agência de publicidade e quanto está psicologicamente bem é muito criativa e bem sucedida, com uma personalidade solar. Durante o episódio vamos entendendo melhor os efeitos dessa condição psíquica na vida dela e algumas das dimensões alcançadas pelas perdas que as fases depressivas causam. É um efeito dominó que a empurra cada vez mais para o fundo do poço.
Modern Love é a adaptação para o audiovisual de uma coluna que leva o mesmo nome e é publicada semanalmente no The New York Times. As histórias são independentes e ocupam, cada uma, só um episódio.
Apesar do comportamento passível de comparação com essas outras três mulheres da ficção, Lavínia se difere delas pela qualidade do envolvimento tanto com Cauby quanto com Ernani. É interessantíssimo. Vale a leitura para descobrir o que há de Séverine/Solange, o que há de Lexi e o que é só da Lavínia em toda sua complexidade.

Aviões encavalados em Itaituba/PA
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios tem adaptação para o cinema e sei que o filme foi rodado em Itaituba, cidade que realmente foi muito impactada pelo garimpo. Já estive por lá e ouvi de alguns moradores casos do ápice da atividade de garimpo, como o do movimento absurdo da pista de pouso que escoava a produção e o do encavalamento de aviões. Dizem que o volume diário de pousos e decolagens era comparável ao do aeroporto JFK em Nova York… Será?
Camila Pitanga faz o papel de Lavínia e Gustavo Machado dá vida a Cauby. É um ótimo filme. Camila Pitanga recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema do Rio (2011) por este papel e não consigo imaginar outra atriz sendo Lavínia. Recomendo.
Tem perdas em relação ao livro? Tem. Mas a essência está lá. Citando apenas algumas das mudanças: os personagens Careca e Chang não estão no filme. O animal de estimação do Cauby no livro é um tatu, no filme ele é anunciado como um camaleão, porém quando o bicho aparece na tela ele é na verdade uma iguana (só achei interessante, sinceramente essa parte do animalzinho não fez diferença nenhuma). No filme também não há o livro do professor Schianberg, que foi um toque de mestre do Marçal Aquino.
Se quiser optar por apenas um, recomendo muito a leitura do livro.
AQUINO, Marçal. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
RODRIGUES, Nelson. A Dama do Lotação. In: A Dama do Lotação e Outros Contos e Crônicas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
BRANT, Beto & CIASCA, Renato. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. Brasil, Sony Pictures, 2011.
BUÑUEL, Luis. Belle de Jour. França & Itália: Eastmancolor, 1967.
CARNEY, John. Modern Love. EUA: Amazon Prime Video, 2018-atual.
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