
Esperando Godot
“ESTRAGON (com ênfase) Bagagem! (Aponta o dedo para Lucky) Por quê? Sempre segurando. (Imita alguém curvado, ofegante) Nunca no chão. (Abre as mãos, endireita-se, com alívio) Por quê?
POZZO Ah! Por que não disseram antes? A razão pela qual ele não fica à vontade. Tentemos esclarecer o assunto. Não teria ele esse direito? Sem dúvida que o tem. Seria, então, por que ele não quer? Isso sim é que é lógica. E por que ele não quer? (Pausa) Senhores, a razão é a seguinte.
VLADIMIR Preste atenção!
POZZO Para me impressionar, para que eu continue com ele.
ESTRAGON Como?
POZZO Pode ser que tenha me explicado mal. Ele quer despertar minha compaixão, para que eu renuncie à ideia de nos separarmos. Não, tampouco é bem assim. […]
VLADIMIR O senhor quer se livrar dele?
POZZO Ele imagina que mostrando-se incansável, vai me fazer mudar de ideia. Eis o seu cálculo deplorável como se me faltassem escravos. (Os três olharam para Lucky). […] Note que eu poderia estar no lugar dele e ele, no meu. Não tivesse o acaso escolhido o contrário. A cada um, o seu lote.
VLADIMIR O senhor quer se livrar dele?
POZZO O que disse?
VLADIMIR O senhor quer se livrar dele?
POZZO De fato. Mas em vez de expulsá-lo, coisa ao meu alcance, quero dizer, em vez de simplesmente colocá-lo no olho da rua, dar-lhe um pé na bunda, vou levá-lo, por bondade minha, ao mercado do São Salvador, onde espero embolsar alguma coisa. A bem da verdade, expulsar criaturas assim não é mesmo possível. Para fazer direito, seria preciso matá-las.”
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. p.42.
Samuel Beckett, irlandês radicado na França, laureado com o Nobel de Literatura em 1969, escreveu Esperando Godot tanto em francês quanto em inglês. Não se trata de tradução, são dois originais. Deu vontade de ler os dois para ver como divergem. Li na tradução para o português feita por Fábio de Souza Andrade (Companhia das Letras).

Samuel Beckett
Esperando Godot foi lançado em 1949, no pós Segunda Guerra Mundial e essa é a obra mais conhecida do autor.
Encenada em diversos lugares inúmeras vezes. Esperando Godot já foi encenado no Brasil, em todos os países europeus, nos EUA, países africanos, asiáticos e já virou filme. Os personagens foram adaptados e interpretados como mulheres, presidiários, adaptados para realidades regionais muito diferentes da do autor.
Tem gente que classifica Esperando Godot como uma peça do teatro do absurdo. Outras pessoas dizem que é um absurdo enxergar absurdismo em Beckett, porque a realidade está ali naquela vida de desolação e desesperança.
Se quiser me explicar ou dar-me sua opinião sobre como classificar Esperando Godot em uma corrente literária, fique à vontade nos comentários. Vale salientar que não sou uma estudiosa de Beckett, apenas leio e dou minha modesta opinião.
Sobre o que é Esperando Godot? Dois homens, Estragon e Vladmir, esperam por um outro chamado Godot. Está resumido. É isso.
Darei um pouco mais de detalhes até porque uma sinopse que se preze têm que convencer pelo menos um leitor a abrir um livro.
Dois homens estão há algum tempo (indeterminado) em frente a uma árvore à beira de uma estrada (cenário também indeterminado) aguardando um outro personagem chamado Godot. Eles não estão confortáveis, estão famintos, maltrapilhos, cansados, mas não arredam o pé dali.
Então surgem mais dois homens, Pozzo e Lucky. O que vem à frente tem uma corda atada ao pescoço cuja ponta está na mão do outro. O amarrado, Lucky, parece muito maltratado, só se movimenta quando toma puxões na corda. Os outros personagens têm inclusive dificuldade em determinar se ele dorme ou está acordado. O que puxa é rude nos modos, estala um chicote toda vez que dá ordens ao escravo. Nenhum desses homens conhece Godot.
Há ainda um quinto personagem. Um moleque de recados de Godot. A participação dele é curtíssima e genial.
Contar mais que isso estragará essa experiência diferentona. Nunca li nada igual a essa peça. Também nunca a vi encenada ao vivo. Só em vídeo.
Os diálogos são cheios de inconsistências, como se as pessoas estivessem embriagadas ou tivessem perdido parte da lucidez. Eles parecem pessoas sem propósitos, que acabam se agarrando a um compromisso como pedra de salvação, mesmo que não saibam ao certo que compromisso é esse.
Vejam bem: eles não conhecem o tal Godot, não sabem a que horas ou dia ele virá, não sabem se estão no lugar certo e ainda assim não vão embora.
É como se raciocinassem assim: “Tenho um propósito que não me lembro mais qual é exatamente, mas sei que depende de conversar com um tal de Godot. Posso desistir? Não sei. Vou ficando porque vai que não era para desistir.”
Memória e embrutecimento da capacidade de diálogo são definitivamente uma questão nessa peça. Nenhum dos personagens tem a totalidade dos fatos. Eles têm lembranças fragmentadas e dissociadas que acabam colaborando para aquele estado de letargia, aprisionados em um compromisso nebuloso ao mesmo tempo que não há obrigação nenhuma, pelo menos não que eles se lembrem. A peça dá a entender que os quatro personagens mais atuantes passam a maior parte de seus dias em silêncio. E que isso já ocorre na vida deles há algum tempo, portanto não são capazes de articular bem as ideias quando precisam se expressar.
Lembra Kafka? Lembra. Em O Processo ou O Castelo principalmente. Aqueles personagens mergulhados em realidades que não entendem e das quais não conseguem escapar pois vão sendo enredados naquela realidade aparentemente nonsense. Ou se é processado por algo da qual não se faz a mínima ideia e só resta aceitar ou se é contratado para fazer um trabalho e nunca consegue fazê-lo.
Falei um pouco sobre O Castelo no texto sobre Drácula, de Bram Stoker.
Mas não vou alongar a conversa sobre Kafka. Vou falar de uma outra cena que também faz parte da literatura clássica e que tem a mesma consistência dialógica que Esperando Godot: o chá de Alice no País das Maravilhas.
O chá é um evento permanente. Com três comensais, mas preparado para quatro. Alice vê a cadeira vazia e simplesmente se senta sem ser convidada o que já irrita aos presentes, que apesar da contrariedade acabam assumindo aquela intrusa como uma coisa que não podem mudar e a incorporam à “conversa”.
Ali temos o Chapeleiro Maluco, a lebre de março e um caxinguelê. Ao que parece eles estão a tanto tempo nesse chá que não sabem mais por que estão ali. Não têm mais do que conversar e ficam tagarelando sobre nada. As louças sujas se acumulam na mesa, nada acontece e mesmo assim ninguém vai embora. É uma cena fenomenal.
A peça é cheia de frases para pensarmos. Cheia.
Muito impressionante é uma conversa entre o dono do escravo e os dois homens que esperam Godot enquanto o homem, chamado Pozzo, justifica porque tem um escravo, praticamente se colocando como uma vítima. Como um bom samaritano que faz o favor de aturar o homem que o serve, que ironicamente se chama Lucky, sortudo em inglês.
Parece o malabarismo cognitivo que gerações de europeus fizeram para justificar a escravização de povos considerados inferiores por eles ou o atualíssimo discurso para justificar os casos de trabalho análogo à escravidão hoje em dia. Vide o podcast A Mulher da Casa Abandonada, do jornalista Chico Felitti para a Folha de São Paulo.
O podcast é sobre Margarida Bonetti e seu esposo Renê Bonetti que levaram para trabalhar nos EUA, em condições sub-humanas, uma mulher brasileira analfabeta. Nada de salário, maus tratos físicos e psicológicos, privação de liberdade e negação de auxílio médico. No quinto episódio o jornalista trouxe outros casos de escravidão contemporânea em trabalhos domésticos, apresentando entre eles os pontos em comum. Sendo um deles o autoconvencimento de que aquelas mulheres tratadas com tanta indignidade não teriam capacidade cognitiva de conseguir coisa melhor que aquilo, sendo, portanto, um caso de caridade e amor ao próximo que os “patrões” fazem ao acolhê-las como “membro da família”. Como membro da família o trabalho delas não precisa ser remunerado. Diferentemente dos outros membros mais nobres, elas trabalham mais de oito horas diárias, praticamente sem folgas, em troca apenas de comida e abrigo. Comida diferente da dos “patrões” e abrigo bastante inferior, sem mencionar os casos de torturas.
Esse podcast se tornou a sensação do momento nos tocadores de áudio, inaugurou uma romaria de curiosos ao bairro de Higienópolis, São Paulo capital, para ver de perto a mansão em pandarecos onde vive, ou vivia até outro dia, a Margarida Bonetti, nascida em uma tradicional e rica família brasileira e hoje fugitiva do governo dos Estados Unidos.
Esperando Godot faz isso por você: num texto aparentemente nonsense, de repente você está pensando em escravidão e em como humanos justificam o injustificável. Além dessa outras tantas reflexões profundas e filosóficas vão sendo propostas à medida que o texto avança. Genial!
Encontrei muitas produções audiovisuais da obra e vou citar duas. Uma delas consegui assistir inteira e recomendo demais. A outra só consegui assistir ao trailer, mas achei que valia a menção por ser uma produção nacional.
A primeira foi feita em 2001, dirigida por Michael Lindsay-Hogg. Achei ótimas as atuações o cenário e tudo. Bem minimalista como requer uma montagem mais fiel.
A segunda é uma produção de José Celso Martinez, usa São Paulo como cenário. Como disse anteriormente aqui só menciono a existência e compartilho o trailer. Não consegui assistir ao filme. Se alguém souber onde encontro, pode deixar aí a dica por favor.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução: ANDRADE, Fábio de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CAROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Tradução: BORGES, Maria Luiza. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
LINDSAY-HOGG, Michael. Esperando Godot. Film4 Distribuition: Irlanda, 2001.
MARTINEZ, José Celso & GARDEMBERG, Monique. Esperando Godot. São Paulo: Teatro Oficina, 2021.
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