Elke: Mulher Maravilha

“O salário de Elke [em 1994] era o equivalente a 44 mil reais em 2019. Ganhava bem, mas guardava mal. ‘O que era dinheiro dela, a gente gastava’. Elke ajudava a família e não fazia ideia de quanto custava manter uma casa, quanto mais as duas que sustentava, uma em São Paulo e outra no Rio. ‘Ela era perdulária’, dizia Sasha.

Boa parte do dinheiro era gasto com festas. Nesse período Elke fez experimentos sociais. Uma noite, convidou doze pessoas para beber em sua casa. Um de cada signo do zodíaco. Em outras, chamava levas de arianos, ou de librianos, ou um grupo só de taurinos. ‘Essas festas de signo eram a coisa mais divertida. A Elke deixava as pessoas interagirem e ficava quietinha no canto dela, bebendo, olhando e gargalhando’ conta a advogada Michele Sá, que foi convidada para uma das noites de virgem.”

FELITTI, Chico. Elke: Mulher Maravilha. p. 159.

Chico Felitti, jornalista, escreveu a biografia de Elke Maravilha, intitulada Elke: Mulher Maravilha, publicada em 2021 pela editora Todavia. Muito apropriado esse título. Que mulher! Inteligentíssima, criativa, generosa, original e de personalidade forte.

Elke na capa da revista Manchete

Queria assinalar um aspecto técnico do livro, antes de derramar elogios à nossa homenageada. Esse ano li dois livros publicados pela editora todavia e o projeto editorial deles é digno de nota. Livros maleáveis, possível dobrar as capas como se fossem revistas sem desbeiçar o livro, a capa de um papel que não deixa marca de dedos, miolo de gramatura boa e amarelado, orelhas na capa e contracapa. A qualidade da editoração melhorou a experiência de leitura. Amei. Elke deve ter gostado também!

Inimigos, Elke deve ter tido aos montes, embora o livro só fale de duas pessoas com quem ela não se dava: Sônia Lima e o “patrão” Silvio Santos.

A lista de apaixonados, digo apaixonados como amigos, prontos a socorrer, a passar horas tomando uma cachacinha, a pedir conselhos e que simplesmente amavam estar perto dessa esfuziante figura, esses nem contei. Ao que parece, Elke deixava um rastro de admiração por onde passava. Alguns de seus grandes amigos foram Zezé Mota; Pedro de Lara, Chacrinha, Zuzu Angel, Zé Celso Martinez. Uma lista infinita de devotos.

Luana Piovani e Giani Albertoni que interpretaram Elke Maravilha no cinema, relatam a receptividade que tiveram quando a procuraram para conversar sobre como compor o personagem e o quanto se emocionaram pela facilidade com que Elke as cativara.

Algumas mulheres são seres de outro planeta, são mais que humanas, são divas.

Auto-declarada russa de nascimento (Leningrado/São Petesburgo) e alemã apenas na certidão, Chico Felitti diz ter elementos para acreditar que o nascimento de Elke tenha sido na Alemanha onde recebeu o primeiro registro, apesar de os irmãos dela insistirem na origem russa. O que ninguém contesta é a naturalização brasileira, desde 1949, quando aportou no Rio de Janeiro, com sua família fugida da Europa.

O nome da menina que era Elke Georgievna Grünupp, aqui no Brasil foi registrado com um erro, depois corrigido. Inicialmente o Brasil a recebeu chamando-a de Ilga.

“Elke, pros antigos vikings, é aquele veado enorme. Eu Já nasci um viadão. Um viadão viking.” (p.15) Essa é a definição de seu nome, segundo a própria Elke.

Ainda menina, aprendeu em casa a falar fluentemente oito idiomas. Trabalhou como professora de línguas, tradutora, chegou a cursar medicina na UFRGS, largou o curso no segundo ano, depois cursou letras clássicas na mesma universidade.

A carreira artística começou quando ganhou o concurso Glamour Girl em Belo Horizonte. Ela dizia que as coisas iam acontecendo em sua vida sem que ela optasse por que rumo tomar e que a única coisa que escolheu, escolheu errado, que foi entrar no curso de medicina.

Não teve filhos, por opção. Realizou três procedimentos abortivos, sobre os quais sempre falou sem reservas.Teve vários maridos e a maioria deles ficaram seus amigos depois do término da relação.

Elke e Chacrinha

Elke trabalhou nos programas de Abelardo Barbosa (O Chacrinha, a quem chamava de Painho), no Show de Calouros do Programa Silvio Santos, fez shows, fez cinema, novela, ajudou outros artistas a se firmarem. Ganhou muito dinheiro e gastou tudo, tendo passado, depois do final do Show de Calouros, por muita necessidade. Amigos relatam que ela chegou a pedir dinheiro para comer.

À exceção de Sônia Lima, os outros jurados do show de calouros ressaltam a delicadeza e a generosidade de Elke e de Pedro de Lara, que nos bastidores eram grandes amigos e evitavam ao máximo se meter nos dramas do estrelato.

O livro é pequeno e cheio de detalhes, o que torna a leitura muito divertida. Vou falar só de alguns deles para que você fique com vontade de conhecer melhor essa mulher genial.

Silvio Santos contratou Elke porque ela dava audiência ao programa de auditório. Entretanto, tentou por diversas vezes fazer com que ela “suavizasse” seu “personagem”, ao que ela ignorava sempre afirmando que não se tratava de um personagem. Por esse e outros motivos, dos quais não tem como não tomar partido dela, eles simplesmente pararam de conversar. Mesmo sem conversar ele escalou Elke para ter seu próprio Talk Show, sem consultá-la. Apenas mandou avisar que ela se preparasse para assumir o programa de entrevistas em um mês. Correria total, o programa estreou no prazo e foi um sucesso, chegando a encostar na audiência da Globo.

Silvio ficou feliz? Claro que não! Tentou mudar o perfil do programa e pedir que ela maneirasse nas perguntas por ser aquela uma emissora “de família”.

No dia em que Elke realizou ao vivo um casamento gay, o patrão simplesmente mandou tirar o programa do ar. Tão subitamente quanto nasceu, a atração foi enterrada. Foi cancelada sem que Elke tenha tido a oportunidade de se despedir de sua numerosa audiência.

Essa passagem e mais todo o caso do mau relacionamento profissional entre Elke e Silvio Santos remeteram àquele trecho da música Super Heróis de Raul Seixas e Paulo coelho: “Lá na esquina da Augusta quando cruza com a Ouvidor, não é que eu viiiiiiii o Silvio Santos. Não é que eu viiiiii o Silvio Santos. Sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror…”

Vamos falar de um dos casamentos de Elke. O rapaz é chamado no livro apenas pelo apelido que ela lhe deu: Psicopata. Eles foram apresentados pela funcionária de décadas, chamada por ela de Tia. O moço era um fã que bateu na porta e como correspondia ao “tipo” de Elke, Tia, a funcionária, promoveu o encontro. Isso resultou no casamento mais curto da vida de Elke.

Até então, em se tratando da vida de Elke Maravilha,  tudo bem ter se casado em tempo recorde com alguém que era um fã. O problema começou daí. Amigos próximos relatam que desde a primeira vista acharam algo estranho em Psicopata.

Começou com ele só saindo do quarto, de madrugada. Dizem que ele passava o dia todo no escuro, consumindo cocaína e saia para a sala de madrugada para assistir toda vez ao mesmo filme: O Guarda Costas (Lembra?…And IIIIIIIIIII Will Always love you. I will Aaaaaalways love youuuuuuuu).

E fica pior. Elke assistia a essas sessões vestida de pijama, como quem está em casa de madrugada, e ele… só assistia ao filme com um figurino completo de Elke Maravilha: vestido, peruca, sapato, etc. E esse caso é bizarríssimo. Tem vários outros detalhes muito perturbadores. Terminou com Elke trocando a fechadura da casa e intimando seu hospede e amigo Rubens Curi a arrumar as malas e fugir com ela para São Paulo, deixando o apartamento com sua tranca nova e Psicopata para trás (do lado de fora, claro!).

Em 1972, auge da repressão da ditadura militar no Brasil, Elke foi contratada para um show de uma hora em um clube. Entre as atrações preparadas para entreter a plateia ela convidou amigos para um número musical: Wagner Ribeiro, Ciro Barcelos, Paulo Bacellar, Bayard Tonelli, Cláudio Gaya e Roberto de Rodrigues. Eles estavam vestidos com roupas femininas e maquiados. O figurino era de propriedade dela. Cantaram em falsete a música Beijinho Doce. Foi um sucesso.

Dzi Croquettes

Esse grupo continuou trabalhando sem Elke depois desse empurrãozinho. Foram incorporados ao grupo o lendário dançarino Lennie Dale, que se tornou o líder, Elloy Simões, Reginaldo di Poly, Cláudio Tovar, Rogério di Poly,  Benedictus Lacerda e Carlinhos Machado. Eles passaram a ser nada menos que os Dzi Croquettes.

Nem é preciso explicar porque foram exilados. Não tinha jeito de ser mais afrontoso à moral e aos bons costumes apregoados pelo governo militar.

Sobre essa banda, que pode perfeitamente se encaixar na categoria Diva, há um documentário excelente, que foi roteirizado por Tatiana Issa, que também assina a direção juntamente com Raphael Alvarez e se chama: Dzi Croquettes.

Inclusive Elke Maravilha participa dos depoimentos colhidos para compor a história desse grupo musical maravilhoso.

Além de Elke outras personalidades deram suas declarações para esse filme como: Gilberto Gil, Nelson Motta, Marília Pêra, Ney Matogrosso, Betty Faria, José Possi Neto, Miéle, Aderbal Freire Filho, Jorge Fernando, César Camargo Mariano, Cláudia Raia, Miguel Falabella, Pedro Cardoso, Norma Bengell e Liza Minnelli.

Liza Minnelli (outra Diva) foi uma das responsáveis por auxiliar os Dzi Croquettes em sua carreira internacional durante o exílio. Eles foram um sucesso na Europa, sobretudo em Paris.

Dzi Croquettes (o documentário) recebeu treze prêmios em festivais de cinema independente, sendo a maior parte deles de melhor documentário. Esse filme pode ser encontrado na íntegra no Youtube.

Elza Soares

E por falar em diva, no dia 20 de fevereiro de 2022, aos 91 anos, Elza Soares nos deixou e foi fazer companha a Elke.

Ainda não li a biografia dela escrita pelo jornalista Zeca Camargo.

Assim como Elke Maravilha, Elza Soares foi uma diva. Mulher que deixou sua marca cravada, indelével, na história cultural brasileira.

A história de Elza é bem diferente da de Elke. É chover no molhado pontuar que as duas, por serem mulheres, por suas personalidades e pela carreira que seguiram enfrentaram inúmeras dificuldades. Apesar de Elke ter passado por momentos complicados financeiramente, Elza teve ainda mais problemas nesse setor.

Mulher preta, moradora de favela carioca, Elza conheceu a dificuldade ao nascer e contava que sua celebrada garganta e seu timbre de voz rouco são consequência de sons que emitia quando levantava latas d’água que carregava diariamente para a casa sem água encanada em que morava com a família. Uma vez sucesso nacional e tendo ganhado dinheiro com seu talento, Elza não voltou a passar fome.

Elza Soares

Desde o nascimento, até seu estabelecimento como uma das artistas mais originais e talentosas do Brasil ela percorreu uma árdua estrada: foi obrigada a se casar aos 12 anos de idade, como consequência de um mal entendido, aos 13 foi mãe pela primeira vez, também aos 13 cantou em um show de calouros para que com o prêmio pudesse alimentar o filho, perdeu dois filhos para a fome.

Capa do disco Do Cóccix até o Pescoço. Em uma das faixas Elza interpreta a música A Carne

Elza teve sete filhos, destes: dois morreram de fome, um morreu em acidente de carro e uma lhe foi roubada. Ela só reviu a filha sequestrada trinta anos depois do ocorrido.

Já sucesso nacional, conheceu Garrincha, se apaixonou e foi massacrada pela opinião pública, primeiro porque no início do relacionamento ele era casado e mais tarde porque ele já não rendia no futebol. Garrincha tinha sérios problemas com alcoolismo, desde antes de conhecer Elza. Mas quando o herói nacional perdeu rendimento em suas performances, não tardaram a  reponsabilizá-la pela derrocada (Yoko Ono feelings!). Quando será que as mulheres deixarão de ser responsabilizadas pelas imaturidades ou decisões malogradas de seus companheiros?

Aliás, Elza e Garrincha tiveram um complicadíssimo relacionamento, em que ela lidou com o alcoolismo do marido e as consequências disso. Ela se separou de Garrincha e apenas um ano depois ele faleceu de cirrose hepática. Até o fim da vida Elza declarava que ele foi o grande amor da vida dela.

Ainda assim, essa guerreira, diva, maravilhosa, prosseguiu com sua potente voz encantando plateias até bem próximo de sua morte.

Uma vida de mais de nove décadas que fará falta. Recomendamos a entrevista concedida por Elza ao Roda Viva em 2002, para conhecer melhor a trajetória da artista por suas próprias palavras. A participação está disponível no Youtube.

Elza Soares já foi mencionada nesse site, no texto sobre a peça: Um Bonde Chamado Desejo, com a música Maria da Vila Matilde.

FELITTI, Chico. Elke: Mulher Maravilha. Rio de Janeiro: Todavia, 2021.

ISSA, Tatiana. Dzi Croquettes. Brasil: Imovision, 2009.