Dois Irmãos

“Perto do alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se misturava com o do filho caçula. Então ela sentava no chão, rezava sozinha e chorava, desejando a volta de Omar. Antes de abandonar a casa, Zana via o vulto do pai e do esposo nos pesadelos das últimas noites, depois sentia a presença de ambos no quarto em que haviam dormido. Durante o dia eu a ouvia repetir as palavras do pesadelo, “Eles andam por aqui, meu pai e Halim vieram me visitar… eles estão nesta casa”, e ai de quem duvidasse disso com uma palavra, um gesto, um olhar. Ela imaginava o sofá cinzento na sala onde Halim largava o narguilé para abraçá-la, lembrava a voz do pai conversando com barqueiros e pescadores no Manaus Harbour, e ali no alpendre lembrava a rede vermelha do Caçula, o cheiro dele, o corpo que ela mesma despia na rede onde ele terminava suas noitadas. “Sei que um dia ele vai voltar”, Zana me dizia sem olhar para mim, talvez sem sentir a minha presença, o rosto que fora tão belo agora sombrio, abatido. A mesma frase eu ouvi, como uma oração murmurada, no dia em que ela desapareceu na casa deserta. Eu a procurei por todos os cantos e só fui encontrá-la ao anoitecer, deitada sobre folhas e palmas secas, o braço engessado sujo, cheio de titica de pássaros, o rosto inchado, a saia e a anágua molhadas de urina.

Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse): “Meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora da morte.

Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado, à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se apagava um pedaço do céu crepuscular.”

HATOUM, Milton. Dois Irmãos.

 

Vencedor do Jabuti de 2001, segundo romance publicado pelo manauara descendente de libaneses Milton Hatoum, Dois Irmãos foi uma gratíssima surpresa. Detalhe: Hatoum publicou cinco romances e os três primeiros venceram o Jabuti.

Já esperava que seria muito bom e superou de longe as minhas expectativas. Em primeiro lugar porque nunca tinha pensado na imigração de árabes para Manaus. Na verdade, nunca tinha olhado efeitos, variedade e organização de imigrantes na região amazônica para além dos dados estatísticos.

Essa história tem obviamente características amazonenses que só poderiam ser daquele lugar, mas o principal mesmo eu diria que é universal.

Halim, que era muçulmano, casou-se na Igreja com Zana que era católica melquita. Eles eram absolutamente apaixonados um pelo outro.

Quando se casaram foram “presenteados” por uma freira que era responsável por um orfanato com a índia Domingas, que na prática virou uma escrava. Morava no quartinho nos fundos do quintal da casa e teve mais obrigações que direitos ao longo de toda sua vida.

Zana era louca para ter filhos, Halim não os queria. Queria apenas Zana sem ter que dividi-la. Como ele fazia tudo o que a esposa desejava, cedeu. Assim nasceram os gêmeos idênticos: Yaqub e Omar.

Omar, que nasceu minutos depois do irmão, vai ser chamado pela mãe de o caçula ou peludinho. Ele teve questões de saúde quando bebê e esse fato fez com que Zana se dedicasse muito mais a ele que ao outro filho. Tempos depois o casal teve outra criança, uma menina: Rânia.

Dois irmãos (HQ)

O narrador vai se apresentando ao longo do livro, ele conta a história em terceira pessoa, como um observador. Não vou contar quem é, porque é muito legal descobrir mais sobre ele, que vai se tornando personagem ativo, narrando alguns trechos em primeira pessoa. Sensacional esse narrador.

Omar e Yaqub nunca se deram bem. Existia ciúme, disputa, inveja, personalidades bem marcadas e difíceis.

Quando eles eram garotos, uma menina chamada Lívia era a paixonite de ambos e ela meio que dava bola para os dois. Teve um carnaval que Omar recebeu mais atenção dela e depois, em um evento em que assistiam um filme na casa de uma vizinha, Lívia deu mais atenção a Yaqub. Aí… Omar, que era sangue quente, enciumado quebrou uma garrafa de vidro e desferiu contra o rosto do irmão. O corte gerou uma cicatriz em forma de meia lua, que vira a marca do rancor de Yaqub.

Halim tinha planos de que quando fizessem  treze anos mandaria os dois meninos para uma temporada na aldeia em que nasceu no Líbano, Zana era contra.

Depois da briga dos irmãos por causa de Lívia, Halim que não era exatamente um pai muito atuante, decide que é a hora da viagem para o Líbano. Como forma de apartar a briga dos dois e porque a mãe que tinha claras preferências pelo caçula, Yaqub foi enviado ao exterior sozinho.

Esse foi o segundo fato determinante para que os irmãos nunca se dessem bem, posto que Yaqub recebe essa obrigatoriedade de ir sozinho ao Líbano como um castigo injusto.

O tempo que o mais velho passou fora do Brasil deixou marcas profundas nele, traumas mesmo. Entretanto, esses acontecimentos não são narrados. O que é dito é como ele voltou “caipira” em relação aos colegas de escola brasileiros e os irmãos e que ficava furioso ao mencionarem o Líbano perto dele.

A mãe e a filha têm, cada uma a seu modo, relações bem esquisitas com os gêmeos, bem esquisitas mesmo.

Pode se dizer que, exceto por Domingas e o filho dela, não há anjos. Todos os personagens são pessoas complicadíssimas, assim como nós seres reais.

Os gêmeos são considerados homens muito bonitos. Yaqub é instrospectivo, inteligente, esforçado. Vai recuperar o tempo “perdido” no Líbano de forma espetacular, se tornando engenheiro respeitado em São Paulo. Dando aquela esfregadinha do sucesso na cara do irmão sempre que pode.

Omar é boêmio,  vive nas noitadas ou deitado na rede de ressaca sendo cuidado pela mãe e por Domingas.

Rânia é inteligente, empreendedora e linda, cortejada por muitos pretendentes e faz questão de esnobar todos. Só se preocupa com os negócios da família e com os irmãos.

Zana é manipuladora, superprotetora de Omar, governa a família com rédea curta, só não manda em Yaqub.

Halim é tão ausente, tão desinteressado dos filhos que nunca quis, que nem dá para dizer que ele é uma pessoa integrada à família. Só se interessa por Zana.

A trama vai acompanhar essa família desde o seu surgimento, com a ascensão, a vida faustosa e a queda. Com muitas histórias intermediárias sobre as relações com os vizinhhos, a sociedade manauara do século XX, economia do estado do Amazonas da década de 30 em diante, imigração libanesa e tantos outros aspectos. Imagino que quem conheça bem a cidade de Manaus vai amar esse livro pelo uso dos espaços urbanos e do entorno. É como Mrs. Dalloway está para Londres. Manaus é praticamente um personagem.

Os gêmeos, especialmente os idênticos, sempre dão bons personagens. Ou por uma cumplicidade bem costurada ou porque não se conhecem e um dia se esbarram ou ainda porque não se gostam, como é o caso de peludinho e Yaqub.

Um par de gêmeas idênticas que não se dão nada bem são as maravilhosas Phoebe e Ursula Buffay, interpretadas por Lisa Kudrow, na série Friends.

Ursula nasceu antes de Phoebe. Quando faço essa afirmação estou me referindo à criação da personagem, pois Ursula era uma garçonete na série Mad About You desde 1992 e Friends começou em 1994. Amo as duas séries. Elas fazem parte do seletíssimo grupo das séries de insônia, que são séries tão boas que quando perco o sono procuro um episódio delas para ver (Mad About You, Friends, Will and Grace e Gilmore Girls).

Voltando a Ursula e Phoebe. Phoebe é personagem fixa de Friends, está em todos os episódios ou quase todos. É uma dos seis amigos que dão nome à série. Ela é meio hippie, trabalha como cantora no Central Perk e como massagista. Phoebe é a pessoa de bom coração da turma, meio avoadinha e tals, gente boa.

Essa mulher nunca tinha contado aos amigos que tinha uma irmã gêmea, porque acha a irmã uma pessoa de mal caráter e as duas não tinham contato há tempos. Até o dia que Mad About You invade Friends no episódio The one With Two Parts (Part 1). Jamie (Helen Hunt), que é a principal personagem feminina de Mad About You, entra no Central Perk e confunde Phoebe com Ursula.

Mais tarde nesse mesmo episódio, Joey Tribiani, vai começar um romance com a irmã de Phoebe.

Friends

Elas são interpretadas pela mesma atriz, logo são idênticas, certo? Mesmo assim, Joey (Matt Le Blanc) não percebe semelhança entre sua nova namorada e a melhor amiga. Isso vira um problema quando Phoebe se dá conta, porque Joey, que é um desapegado, se apaixona por Ursula, e Phoebe tem certeza que a irmã irá sacanear o amigo.

As duas contracenam quando Phoebe tira satisfação com Ursula e pede que ela não magoe Joey. E é muito bom!!! Só fica melhor quando Ursula realmente é bem babaca com Joey e para aliviar a dor do amigo, Phoebe se finge de Ursula para terminar o relacionamento com Joey. Enfim… momentos que só Friends faz por você. Eu achei genial aproveitar o personagem de outra série de sucesso.

Aqui pelo menos dá para saber quem é a boa e quem é a má. Phoebe está para Raquel assim como Ursula está para Rute.

Já Omar e Yaqub são bem menos preto no branco. São personagens mais complexos. Também são mais complexos os gêmeos univitelinos Pedro e Paulo, de Esaú de Jacó de Machado de Assis. Esaú de Jacó é dos meus machados preferidos, talvez fique atrás apenas de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Esaú e Jacó

Vamos começar esclarecendo que os gêmeos se chamam Pedro e Paulo e o título do livro, Esaú e Jacó, é uma referência bíblica aos gêmeos filhos de Isaque e netos de Abraão, que brigavam desde o ventre.

Foi impossível ler Dois irmãos e não pensar em Esaú de Jacó porque eles tem algumas semelhanças. Assim como Omar e Yaqub, Pedro e Paulo não combinam em nada. A personagem Flora faz mais ou menos o que Lívia faz: é a mulher por quem os gêmeos competem e que gosta dos dois.

Machado de Assis era o cara da ironia fina e da crítica social e nesse livro ele criou personagens que espelhavam o conflito político da época. Esaú e Jacó foi escrito em 1904, ainda no início da república, quando Brasil era dividido politicamente entre monarquistas e republicanos e é claro que cada um dos gêmeos era partidário de um regime.

Natividade, a mãe dos gêmeos, embora não pendesse mais por nenhum deles, se assemelha a Zana quando o que mais quer na vida é que os dois parem de brigar.

E por fim, o narrador: Conselheiro Aires (posteriormente Machado de Assis escreveu o Spin Off de Esaú e Jacó em que o personagem principal é esse Conselheiro e chama-se Memorial de Aires). Continuo não revelando quem é o narrador de Dois Irmãos. Apenas apontarei que são narradores que por vezes contam a história em terceira pessoa e por outras são personagens ativos, logo há uma alternância entre a primeira e a terceira pessoa.

São histórias com semelhanças. Provável que Machado tenha inspirado Hatoum. Importantíssimo reforçar que apesar dessas partes em que se parecem, no grosso as histórias são muito diferentes. A leitura de um jamais substituirá a do outro.

Esses casos de irmãos gêmeos idênticos que têm diferenças irreconciliáveis acontece com alguma frequência na vida real também.

O ano é 2019, Cachoeira Alta, Goiás, Brasil. Os personagens: Fernando, Fabrício e Valéria e Mariana (nomes fictícios copiados da matéria do G1).

Um juiz condena os dois gêmeos a registrar e pagar  pensão alimentícia à Mariana que pode ser filha de qualquer um dos dois. Por serem univitelinos o exame de DNA não foi suficiente para determinar qual seria o pai biológico. Cada irmão apontou o outro como o pai da bebê.

Valéria disse que teve um breve relacionamento com quem acreditou ser Fernando, mas que diante da confusão da paternidade de sua filha, não tem mais certeza de nada.

Tanto o Juiz quanto Valéria entendem que os dois irmãos sabem muito bem quem é o responsável e criaram essa confusão para tentar se eximir da responsabilidade. Parece que os gêmeos já eram conhecidos por usar da semelhança física para enganar mulheres.

“No caso dos autos, ressai que um dos irmãos, de má-fé, busca ocultar a paternidade. Referido comportamento, por certo, não deve receber guarida do Poder Judiciário que, ao revés, deve reprimir comportamentos torpes, mormente no caso em que os requeridos buscam se beneficiar da própria torpeza, prejudicando o direito ao reconhecimento da paternidade biológica da autora, direito este de abrigo constitucional, inalienável e indisponível, intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana”(trecho da sentença).

Porque esse livro maravilhoso que é Dois irmãos (cinco estrelas fácil), demorou 14 anos para cair no gosto do público mesmo com um Jabuti no currículo? Mistérios da literatura.

Dois Irmãos foi publicado em 2001 e virou best seller  em 2015, depois que os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá fizeram dessa história uma HQ. A HQ viralizou antes do livro e aí o livro bombou. Não li a HQ.

Isso tudo virou uma série de dez capítulos, disponível na Globoplay.

A série é muito boa. Ela tem uma estética já recorrente de algumas séries produzidas pela Globo que destoa da imagem e do tom que minha imaginação criou para aquela família. E tudo bem. Essa é uma das graças da literatura. Cada um que crie o seu mundo com base na sua interpretação do livro.

Exemplos de outras séries que têm uma vibe parecida com a criada para Dois Irmãos são Hoje é dia de Maria e Capitu. Teatral, meio circense, lindo demais. Todas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho.

 

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

CARVALHO, Luiz F. Dois irmãos. Brasil: Globo, 2017.

KAUFMAN, Martha & CRANE, David. Friends. EUA: Warner Bros, 1994-2004.

ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2012.