
Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida
“Quando eu era jovem, pedir que me imaginasse com cinquenta anos era tão difícil quanto me pedir para imaginar, concretamente, como era o mundo após a morte. Mick Jagger uma vez alardeou que “Prefiro morrer a continuar cantando Satisfaction quando estiver com quarenta e cinco anos”. Mas agora ele tem mais de sessenta
e continua cantando Satisfaction. Algumas pessoas acham isso engraçado, talvez, mas não eu. Quando era novo, Mick Jagger não conseguia se imaginar com quarenta e cinco anos. Quando eu era novo, era igual. Como posso rir de Mick Jagger? De jeito nenhum. Aconteceu apenas de eu não ter sido um cantor de rock, na juventude.
Ninguém se lembra das coisas estúpidas que eu provavelmente disse na época, de modo que nunca vão poder citá-las, jogando de volta na minha cara. É a única diferença.”
MURAKAMI, Haruki. Do que eu falo quando eu falo de corrida.
Haruki Murakami, romancista japonês, best seller e premiado pela produção ficcional, escreveu Do que eu Falo Quando eu Falo de Corrida que é um conjunto de nove ensaios sobre o esporte corrida em sua vida.
Foram anos escrevendo. Fazendo devagar entre um trabalho e outro, entre uma maratona e outra. É uma declaração de amor pela corrida.
Trata-se da relação real do homem, Haruki Murakami, em seu dia a dia. Também não é uma biografia. São ensaios, crônicas, sem detalhes “picantes” da vida pessoal. É a pinçada de um interesse específico no universo de um homem que tem múltiplos interesses, mas que dá ao esporte que escolheu créditos por ter chegado onde chegou com a saúde que tem, tanto mental quanto fisicamente. É possível dizer que ele dedica ao esporte quase a mesma importância que dedica à escrita.
O mais interessante nesse recorte sobre a prática de exercícios físicos no dia a dia desse escritor é que aos poucos ele vai entremeando outros aspectos da vida e demonstrando como a corrida afeta ou ameniza a existência de Haruki.
Delícia de ler. É bem legal acompanhar o envelhecimento de Haruki Murakami e as adaptações que teve que ir fazendo em sua rotina de exercícios e em sua vida de escritor.
Vejam bem: para uma pessoa como eu, esse livro poderia facilmente ter sido chato. Foi necessário ao autor muito amor pela corrida e, principalmente, muito talento como escritor para compor uma obra de ensaios cujo o tema principal é corrida e isso ser o que é.
Ele não foi sempre escritor. Antes de escrever tinha um inferninho de jazz em Tokio. Um bar que parece ter tido algum sucesso e pelo qual parentes de Haruki argumentaram quando ele decidiu fechar as portas para se tornar escritor.
A vida dele tinha uma rotina bem diferente da maioria das pessoas, dormir de dia e trabalhar de noite. Quando o bar fechava ele ia ainda fechar o caixa, limpar, por as coisas em ordem. Num dado momento teve uma ideia, decidiu escrever um romance. Essa estreia foi um sucesso inesperado. Sabe que horas essa pessoa escrevia? Quando chegava em casa depois do rolê do trabalho no bar e antes de dormir.
Parece insalubre, e era. Ele também fumava. Ele e a esposa.
O trato foi: vamos fechar o bar e dar uns dois anos para tentar estabelecer essa carreira de escritor. Ao que parece, deu certo.
Já de cara eles perceberam que teriam que ajustar o ritmo de vida, passaram a dormir e acordar em horários regulares, seguindo o padrão da maioria dos mortais e pararam de fumar.
Sobre se exercitar, a esposa não acompanhou. Foi mesmo só ele quem embarcou nessa onda.
Inicialmente ele conta ter começado a correr para não ganhar peso, visto que a vida de escritor pode ser bastante sedentária. Depois, com a prática ele foi se apaixonando pelo esporte e recebendo dele vários benefícios. A corrida foi incorporada por Haruki como parte indissociável do que ele é.
Os hábitos de exercício lhe renderam trabalhos como escritor. Escreveu matérias cobrindo maratonas. Ficou conhecido por maratonistas como um membro do “clube”. Tendo sido inclusive capa de revistas de corrida, sendo entrevistado sobre a vida de escritor que corre.

Estátua de Fidípides entre Atenas e Maratona.
Tem um dos ensaios em que ele foi convidado para fazer o caminho clássico que dá origem ao nome maratona que é o trajeto de 42,180km entre Atenas e a cidade de Maratona na Grécia. A ideia era que ele vestisse a roupinha de corredor e fosse com uma equipe de fotografia tirar umas fotos. Claro que se esperava que ele corresse parte do trajeto, mas, entendendo que seria enganação e tomando aquilo como um desafio, correu tudinho debaixo de um sol escaldante. O relato do cansaço depois dessa aventura é muito bom. Dá pra sentir o gosto da cerveja que ele tomou para comemorar.
Em outra passagem Haruki diz que diferente de outros escritores, ele não usa o tempo de corrida para ter ideias literárias e que foram raríssimos os insights que teve enquanto estava se exercitando.
Isso me lembrou uma fala de Judy Blume, que diz ter pena de quem ouve música enquanto caminha pela rua, porque nessas horas ela teve ótimas ideias para seus trabalhos. A experiência dela é exatamente oposta à de Haruki.
Pelo que entendi da conversa dos dois, deixando explícito que a fala de Judy foi uma simples frase dita ao acaso, ela encara esses momentos de caminhada como lazer e ele leva a coisa a sério. Competitivo, não com outros corredores, mas consigo mesmo.
Não vou ficar falando de tudo, só gostaria de pontuar que os relatos das maratonas e das corridas de cem quilômetros, são muito legais. Dá vontade de abrir a porta e sair correndo.

Haruki Murakami correndo
Eu não sou corredora, não tenho a pretensão de ser, para ser bem honesta sou mais para sedentária do que para atleta, apesar de gostar muito de andar de bicicleta e correr ao ar livre. Então, por que me interessei por esse livro, pode ser uma pergunta válida. Fui ler esse livro esperando que ele me desse uma perspectiva como a de Judy Blume, esperando corridas epifânicas. E me deparei com outra coisa. Que foi até melhor.
Pontos em comum entre a prática esportiva de Haruki Murakami e a minha: não gostamos de esportes coletivos (eu sempre fui pereba nesse quesito); preferimos exercícios ao ar livre; gostamos de ouvir coisas em fones de ouvido enquanto nos exercitamos (ele prefere música e eu vario entre as playlists de música e os podcasts, vai do humor do dia), esse momento é para esquecer da vida, limpar a mente, e não para correr enquanto matuta sobre os problemas cotidianos.
Pontos em que diferimos: ele compete consigo mesmo, quer sempre melhorar os tempos, não tem finalidade de quebrar recordes de outros atletas, não pretende estabelecer rivalidade com outros competidores de maratonas, mas sempre luta para se superar.
Eu, de minha parte, não compito nem mesmo comigo, vou pedalando ou correndo enquanto está prazeroso. O melhor dia é domingo porque moro em Brasília e aos domingos o Governo do Distrito Federal fecha o Eixão, uma via de seis pistas que corta todo o Plano Piloto, para o tráfego de carros e abre para que os habitantes usufruam do espaço para práticas esportivas e lazer. Eu pedalo mais do que corro e ele corre mais do que pedala.
Sr. Murakami pedala porque, depois que já tinha tirado da corrida tudo o que ela poderia oferecer como desafio, começou a praticar triátlon. Detalhe que ele odeia pedalar, faz porque é parte da modalidade.
O terceiro ensaio, chamado Atenas no meio do verão – Correndo 46,2km pela primeira vez é sobre a tal da corrida que ele fez entre Atenas e Maratona e também sobre uma maratona no Havaí. Especificamente na parte da corrida grega, Haruki toca em um ponto que tem tudo a ver com outro lado da minha vida sobre o qual eu nunca falei aqui: o trabalho na área ambiental, mais especificamente com licenciamento ambiental.
Já há algum tempo que uma das minhas muitas funções é ajudar o pessoal da área técnica a traduzir os ganhos ambientais para uma linguagem mais próxima da jornalística e assim tentar fazer chegar ao público comum os benefícios socioambientais do trabalho do Ibama para o Brasil.
Assim, acabei me aproximando de áreas que não são exatamente minha praia, visto que sou das ciências humanas e, portanto, o governo me paga para dar atenção aos impactos ambientais que incidem sobre populações humanas.
Essa tarefa de “redatora”, que aliás é das minhas preferidas, é fundamental para demonstrar o que é o Ibama para além das questões burocráticas. O trabalho técnico é o que mais demanda nosso tempo e ele é fenomenal, traz vários ganhos, justifica nossa existência.
Nessas idas e vindas de textos sobre ganhos ambientais de temas dos meios biótico e físico, acabei me inteirando de dados como o de que mais de cem mil animais são atropelados anualmente em rodovias e ferrovias brasileiras (esses dados são de uma pesquisa da Universidade Federal de Lavras).
Haruki Murakami relata que na rodovia grega entre Atenas e Maratona se deparou com vários animais atropelados. Ele contou três cães e onze gatos em 42,180km.
No Brasil, assim como em outros lugares do mundo, órgãos ambientais licenciadores de rodovias e ferrovias, bem como as universidades, têm se debruçado para encontrar soluções que amenizem o atropelamento de fauna. Essas soluções são conhecidas como passagens de fauna e podem ser sinalizações na estrada, passagens subterrâneas, passarelas ou viadutos vegetados, cada um com um nível de eficiência e cada qual mais convidativo para alguns grupos de animais. Algumas dessas soluções, em especial os viadutos e a entrada das passagens subterrâneas, têm tratamento de plantio de vegetação específica para imitar com algum sucesso o habitat natural dos animais sendo atrativo para eles e desviando-os das rodas dos veículos que ali transitam.
As estatísticas mostram expressiva diminuição dos atropelamentos de animais e de veículos acidentados em vias que aplicaram essas soluções. Como exemplos de licenciamentos ambientais conduzidos pelo Ibama, dos quais temos notícias sobre as medidas para proteção da fauna temos o ramal Ferroviário Sudeste do Pará e a BR 101.
Se a estrada por onde Haruki Murakami correu na Grécia tivesse boas passagens de fauna, pode ser que aqueles três gatos e onze cachorros vivessem mais uns anos.
Voltando à corrida uma parte muito importante tanto para Haruki quanto para mim é o que escuto enquanto me movo, seja de bike ou correndo.
Ele gosta só de ouvir música. Quando Haruki terminou de escrever Do que eu falo quando eu falo de corrida ainda não estávamos na era dos streamings. Quem não tem Spotfy caça com MP4 e afins. Pelo menos não era walkman ou diskman (minha filha nem sabe o que é isso).
Conheci uma banda por indicação desse livro. Em várias passagens ele diz que o melhor som para correr é a banda The Lovin’ Spoonful. Tenho que concordar que dá muito certo. É ótimo. Especialmente a faixa Summer in the City. Três vivas para o criador do Spotfy!
Outras indicações de Haruki Murakami são: Creedence Clearwater Revival, Beach Boys e Rolling Stones.
Agora minha vez. Para pedalar eu prefiro os podcasts e para correr as músicas. Tenho a impressão de que o pedal dita seu próprio ritmo. Logo, dá para aproveitar uma conversa interessante sem ficar mais lento ou parar para prestar atenção em alguma coisa.
Mas correndo… aí é bom ter uma coisa estimulante. É nítido que à medida que as músicas vão crescendo em intensidade ou se tornando mais lentas, a gente vai acompanhando. Prefiro ouvir música internacional ou instrumental, porque quando ouço as brasileiras dá vontade de cantar junto e aí já era fôlego.
A melhor banda para minhas corridas sem dúvida e sem pensar para responder é a Jethro Tull. Se for para ouvir uma coisa só e não uma playlist de fontes variadas, é essa com certeza a mais ouvida. É perfeito. Escolhendo duas faixas só p ilustrar, recomendo Bourée e Wounded, Old and Treacherous.
Um instrumental, que é uma delícia para correr, escrever, passear, olhar para o nada ou qualquer outra coisa que se queira fazer é Yann Thiersen. Esse compositor francês fez duas trilhas sonoras de filmes que são preferidos da vida: O Fabuloso destino de Amelie Poulain e Adeus, Lenin, mas mesmo a produção que não está relacionada ao audiovisual é maravilhosa.
Tenho também algumas playlists que têm itens que vão de MGMT, passando por Siouxie and the Banshees, Louise Attack, Blues Etílicos e segue o baile… compartilho uma delas com vocês: Running.

Apresentadoras do podcast Modus Operandi. Segurando o livro também escrito por elas também chamado Modus Operandi.
Por fim: um podcast que tem sido companhia constante e que curiosamente difere da vibe desse texto, mas eu amo demais que é Modus Operandi, das maravilhosas Carol Moreira e Mabê Bonafé sobre crimes reais. Eu escuto bastante esse em casa também, só não recomendo para a hora das refeições, porque é desgraceira pura. Delícia de ouvir.
MURAKAMI, Haruki. Do que eu Falo Quando Eu Falo de Corrida. Tradução: LEITE, Cássio de Arantes. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012.
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