Crônica da casa assassinada

“Muitas vezes — e agora era eu quem confessava — em dias passados, imaginei o que poderia tornar esta casa tão fria, tão sem alma. E foi aí que descobri a terrível imutabilidade de suas paredes, a gelada tranquilidade das pessoas que habitam nela. Ah, minha amiga, pode acreditar em mim, nada existe de mais diabólico do que a certeza. Não há nela nenhum lugar para o amor. Tudo o que é firme e positivo é uma negação do amor. Procurou um apoio, deixou-se abater sobre a cadeira que o sr. Valdo ocupara momentos antes. Dir-se-ia que já nada mais nos separava, e que dentro do mesmo abismo, discutíamos paixões idênticas.”

Lúcio Cardoso. Crônica da casa assassinada. 

O próprio Lúcio Cardoso deixou bem claras suas mágoas e objetivos literários sobre seu estado de origem: Minas Gerais. Seguem dois exemplos para começo dessa conversa sobre a obra Crônica da Casa Assassinada (1959) e a instituição conhecida como Tradicional Família Mineira (TFM para os íntimos):

“Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão, é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira. Contra o espírito bancário que assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu espírito.” (Lúcio Cardoso, Jornal do Brasil, 25 de novembro de 1960).

Lúcio Cardoso

Minas, esse espinho que não consigo arrancar do meu coração – fui menino em Minas, cursei Minas e os seus córregos, vi nascer gente e morrer gente em Minas, na época em que essas coisas contam. O que amo em Minas é a sua força bruta, seu poder de legenda, de terras lavradas pela aventura que, sem me destruir, incessantemente me alimentam. O que amo em Minas são os pedaços que me faltam, e que não podendo ser recuperados, ardem no seu vazio, à espera que eu me faça inteiro – coisa que só a morte fará possível.” (Lúcio Cardoso, julho de 1962)

Lúcio Cardoso nasceu em Curvelo, interior de Minas Gerais em 1912 e faleceu no Rio de Janeiro em 1968. Veio da TFM, boas condições financeiras e influentes politicamente. Seu irmão, Adauto Lúcio Cardoso, foi deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN), partido bastante conservador,  depois presidente do Congresso Nacional e Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

E a informação de um milhão de dólares, cereja do bolo: Lúcio foi das primeiras pessoas importantes no meio cultural brasileiro a se assumir homossexual.

Adauto Lúcio Cardoso

Lúcio também pintou quadros nos últimos 6 anos de sua vida, chegando a expô-los publicamente algumas vezes. Eu, particularmente, prefiro a escrita.

Essa obra literária foi adaptada para o cinema em 1972, com roteiro assinado pelo autor. Não gostei do filme, mas devo confessar que ver a figura de Timóteo representada à cores foi muito bom e valeu a experiencia de assistir àquela produção de baixíssimo orçamento. Norma Bengell como Nina também esteve muito bem. O filme está disponível no Youtube e se chama A Casa Assassinada.

A Casa Assassinada

Sem mais delongas, vamos ao enredo sem spoilers.

O livro se passa em sua maior parte na cidade fictícia de Vila Velha, que seria na Zona da Mata mineira, nas proximidades de Ubá, Viçosa, Rio Branco… (euzinha nasci e vivi em Viçosa até os 18 anos).

Algumas passagens do livro, sobre as origens e a história de Nina sem Valdo são no Rio de Janeiro, então capital do país. O Rio, sua modernidade e efervescência fazem contraponto a Vila Velha.

A casa que vai ser assassinada é a chácara dos Meneses. Nela moram inicialmente: Demétrio e sua esposa Ana, Valdo e Timóteo, os homens são os irmãos Meneses. Também vivem na casa a governanta Betti e o jardineiro Alberto.

Timóteo e Nina (filme)

Eis que um dia, chega para morar com eles Nina, recém casada com Valdo, jovem, moderna, deslumbrante, moça da capital. Essa mulher, mesmo que por vezes sem querer, vai revolucionar a pacata, recalcada, insossa e triste vida dos Meneses. Também morará na casa André Meneses, filho de Nina e Valdo.

Outros personagens que deixarão seus depoimentos serão dois médicos, um farmacêutico e o padre Justino.

De cara, já no primeiro capítulo (eu li três vezes até cair a ficha, ou melhor dizendo, até assimilar que aquilo era aquilo mesmo) ficamos sabendo de um caso de incesto entre mãe e filho. É um diálogo muito forte da mãe moribunda e o filho, que a ama como Édipo amou Jocasta, com o agravante que eles sabiam do parentesco desde o início. Aí a gente tende a achar que a Nina é o capeta.

Não se apressem no julgamento. Tentem não julgar ninguém à medida que avança a leitura.

Um dia, conversando com a vendedora da livraria Circulares, aqui de Brasília, sobre Crônica da Casa Assassinada, eu disse a ela que ainda estava no início da leitura, achando o estilo do Lúcio Cardoso muito pomposo e formal, mas que ele era o rei do cliffhanger porque era impossível não querer saber o que vinha a seguir. E ela me disse uma coisa interessante: que ele prende o leitor pela fofoca. E é isso mesmo. Saboreiem a fofoca.

Crônica da Casa Assassinada é um livro epistolar. Composto por cartas, diários, confissões, depoimentos de quase todos os personagens. O único Meneses que não expressa sua perspectiva é Demétrio. Eu daria uns trocados para saber o que Demétrio pensava.

Faz todo o sentido que ele não registre sua opinião. Ele é o recalcado blaster, o que prende todo mundo no sistema Meneses de vida. Uma pessoa assim, jamais abriria sua guarda para deixar entrever nada de pessoal.

Entrever é um verbo importante para essa obra. A casa em si, vive fechada, faça chuva ou faça sol, porque Demétrio tem pavor de que os de fora saibam o que acontece ali, mesmo que não aconteça muita coisa. É uma casa velha, mal conservada, eles já foram ricos e agora vivem do nome, das aparências, do brasão da família.

Tão Minas Gerais…

A Nina é uma personagem maravilhosa que já começa grade e ainda cresce assustadoramente ao longo das páginas. O que foram as últimas cem páginas? Meu Deus do céu!

Outro personagem digno de nota é Timóteo. Não vou dar detalhes demais sobre Timóteo, só digo que ele é o irmão homossexual naquela família. Tenso!

Ao iniciar o livro, se estiver achando a linguagem muito dramática, insista. Tente se acostumar ao estilo do autor, vai valer a pena. É o mesmo conselho que dei para O Som e a Fúria, do Faulkner: não desista porque vai valer a pena. Crônica da Casa Assassinada é certeiro um dos melhores livros lidos por mim esse ano.

Nina e Timóteo têm meu máximo respeito. O padre Justino é bem muito bom também.

Inicialmente achei que Lúcio podia ter pesado menos a mão na formalidade do texto, com o tempo isso parou de me incomodar porque aquele estilo mais rebuscado foi fazendo sentido e combinando com o clima da família Meneses.

Apesar do tanto que esse livro me impressionou positivamente, tenho uma ressalva. Mesmo que se mantivesse o estilo mais formal, seria possível mudar o tom ou algumas nuances que diferenciassem a linguagem dos personagens entre si. É bem monocórdio. O farmacêutico fala na mesma vibração que Ana e que Nina e que Timóteo e que a Betti. Isso não chega a causar confusão porque no início de cada capítulo está expresso quem está narrando.

Sim, a TFM tem seus recalques e questões que demandariam terapia de grupo televisionada para resolver os problemas psicológicos do estado.

Mas é só a mineira mesmo ou seria um problema universal de famílias “tradicionais”? O que leva pessoas a se fecharem em um pacto de tradições familiares e preferirem (conscientemente ou não) a infelicidade de alguns de seus membros a sair do padrão? Que padrões ou tradições são esses e quem inventou?

Sapiens

A invenção das tradições

Para essa última pergunta, a regressão temporal deve levar a Adão e Eva ou quem quer que tenham sido os primeiros humanos. Uns resolveram dominar, outros engoliram a corda, outros foram forçados a aderir e pronto: estava criada a regra, mesmo que a revelia de alguns. Quanto mais tempo seguindo, mais complicado questionar.

Como o próprio título da obra A Invenção das Tradições de Eric Hobsbawn  e Terrence Ranger diz : as tradições são inventadas. Da noite para o dia alguém decide que aquilo é uma tradição e os demais acatam e passam a seguir. Sapiens, de Yuval Harari, também oferece uma perspectiva que pode se encaixar nessa linha da invenção de tradições quando se pensa na humanidade como a única espécie capaz de criar ficção. O que serve tanto ao bem quanto ao mal. Dei aquela toesqueada nesses conceitos. São as duas, tanto a de Hobsbawn e Terrence quanto a de Harari, teorias bem mais sofisticadas e interessantes que isso. Mas, pegou a ideia?

Assim vamos conversar sobre outras obras, que têm famílias tradicionais, cuja infelicidade se instalou pela necessidade tirada do suvaco de manter tradições e aparências, ainda que a um alto custo emocional.

Mencionei anteriormente meu queridinho O Som e a Fúria. Essa obra, que está ali no pódio, acotovelando Cem anos de Solidão, acompanha a família Compson. Uma família que, assim como os Meneses, já viu dias melhores e ainda vive do nome e das posses que restaram. Degringolou.

Quem são os Compson: a mãe, o pai, quatro filhos, sendo uma mulher e um deles com severa deficiência mental, e uma neta, nascida sem que houvesse casamento entre a mãe e o pai dela. Na propriedade rural em que os Compson vivem no sul dos EUA, há uma casa paralela à deles onde vive uma família que trabalha na fazenda e nos serviços domésticos, provavelmente, desde gerações anteriores à abolição da escravatura.

Que familhinha osso essa dos Compson. A mãe é uma mulher de saúde frágil que fica sempre deitada na penumbra e faz aquela chantagem emocional com os filhos. Quentin o mais velho terá um fim trágico e, ainda por cima, para afastar as críticas à irmã que teve uma filha sem se casar, meio que inventa uma relação incestuosa tentando assumir a paternidade da sobrinha (Oi? Melhor ter tido relações com o próprio irmão do que ter um filho sem se casar?).

As pessoas mais livres e mais desprezadas pelos Compson são justamente Candace e sua filha (não vou contar mais nada sobre a filha, nem o nome. Tenho motivos para isso). Elas simplesmente renegam aquele monte de regras nonsense e vão viver suas vidas. A presumida liberdade delas consome o filho mais novo, de caráter bastante duvidoso, que ficou encarregado de cuidar da mãe e do irmão deficiente.

Aos empregados, que são de uma geração que não nasceu escravizada, resta a subserviência. A personagem Dilsey Gibson é genial.

Falamos então de uma TFNA (Tradicional Família Norteamericana) e agora passemos para a mais tradicional de todas as famílias britânicas, o cerne da TFB ou BRF (British Royal Family) : os Windsor.

A rainha, falecida em 2022, o rei Charles e os príncipes William e George, próximos na linha sucessória.

Importante dizer que essa coisa toda não começou com os Windsor, vem de muito mais longe que isso. E eles vêm sobrepondo regra louca sobre regra desnecessária há séculos, desde o ano de 927, quando inicia o primeiro reinado estável com Etelstano da honorável família de Wessex.

Até tiveram alguns monarcas que mudaram uma coisinha aqui outra ali, como o famoso rei Henrique VIII, da dinastia Tudor. Esse sim, abalou estruturas tradicionais para resolver uma questãozinha em seu casamento com Catarina de Aragão. Isso lá pelos idos de 1530. Depois dele, qualquer rebeldia ficou ofuscada.

Sou completamente apaixonada pela série The Crown da Netflix. Tipo que dá coceira esperar por novas temporadas.

The Crown (A Coroa) conta a história da BRF desde o final do reinado de George VI e a coroação de sua filha Elizabeth II até tempos bem próximos do atual. A última temporada, que foi a quarta, parou o mais ou menos em fins da década de 1980, quando o então príncipe Charles e a princesa Diana já tinham seus dois filhos e um casamento de merda.

E a tradição causando problemas graves e destruindo vidas? Temos aos montes.

Como a série preenche lacunas com ficção, mas se baseia em fatos reais, não há a possibilidade de spoiler. Vamos a uma pequena lista de babados fortes.

O Rei Jorge VI era o segundo na linha de sucessão quando foi entronado substituindo seu recém abdicado irmão, rei Eduard VIII.

Por que renunciou ao trono? Para se casar com Wallis Simpson. Por que não poderia se casar com Wallis? Porque ela era divorciada.

Uma vez que no Reino Unido o monarca é também o chefe da Igreja Anglicana e o anglicanismo condena o divórcio, um rei só pode se casar com uma mulher que nunca tenha sido casada. Eduard preferiu abdicar, mesmo com alguns arrependimentos e sentimentos nada nobres, segundo a série.

Depois que Elizabeth II sobe ao trono, a família volta a cometer o mesmo erro, dessa vez com a princesa Margareth, irmã de Elizabeth, que nem ia ser rainha de nada nunca, porque Elizabeth teve cinco filhos e todos eles estavam antes de Margareth na linha de sucessão.

Mais uma vez, venceu a tradição e, de acordo com The Crown, Margareth nunca foi feliz na vida amorosa, posto que preferiu não abdicar de seus direitos e deveres de membro da família real.

Agora chega, certo? Errado. O atual rei Charles III, que completará dia 8 de outubro seu primeiro mês de reinado, passou por poucas e boas. Vamos começar com o casamento para fechar esse assunto dos matrimônios, mas depois citaremos mais alguns. Ele era, diria que ainda é, apaixonado por Camilla Parker Bowels (Camilla, não? Agora Queen Camilla) e é correspondido. Pois o povo fuxiqueiro dos Moutbaatten-Windsor, fez o inferno para ele escolher outra noiva e Camilla nem era casada ainda. A família não achava Camilla adequada, apesar de ela ser de linhagem aristocrática, porque ela não era mais virgem. (Come on…?!)

A série mostra que fizeram com que Camilla se casasse com o namorado anterior ao príncipe e que a toque de caixa Charles escolheu Diana, que era muito nova e inocente para entender a treta que estava arrumando para si ao dizer sim a uma proposta de casamento de alguém que mal conhecia.

Existe toda a aura mágica por traz de fazer parte de uma família real e se tornar uma princesa de verdade. As monarquias têm que dividir essa culpa do imaginário felizes para sempre com contos de fada e com a Disney. Propaganda enganosa.

Outros momentos em que a tradição tornou tudo pior: quando Charles foi forçado a frequentar o colégio casca grossa que formou seu pai; quando Charles foi obrigado a largar a atuação de que tanto gostava para ir estudar em Gales; quando Alice de Battengerg foi “escondida” do mundo por ser a mãe excêntrica do príncipe consorte.

Alice tem uma trajetória interessantíssima, que vale a pena ser conhecida. Ela recebeu inclusive a honraria israelense de Justa entre as Nações pelos serviços prestados para salvar judeus do holocausto.

E o episódio em que Margareth descobre primas com deficiências físicas e mentais? Todas bem internadinhas em um hospital psiquiátrico, sem nunca mais terem recebido a visita de um Windsor sequer.

E tem as coisas menores, que ficam mais evidentes com a chegada de Diana na 4ª temporada e que são o cúmulo do desnecessário. Tipo impedir a princesa de qualquer gesto de espontaneidade. Tudo fachada. Uma mulher destruída por dentro, infeliz até a última gota e tendo que fingir um conto de fadas para os de fora. Oprimida a ponto de desenvolver distúrbio alimentar e depressão.

Mostrando a excessiva preocupação com aparências em famílias que nem brasileiras são, não se está tentando isentar a TFM de sua aura austera e opressora. Não se justifica.

As regras da TFM são muito prejudiciais, principalmente àqueles que, como Timóteo, saem da curva (e a curva é bem fechada). Difícil nascer Timóteo em uma família de Demétrios.

Tradições que oprimem deveriam ser abolidas da mesma forma como foram criadas: do nada, como mágica. O apego aos brasões não pode se maior que a vontade de viver livremente (obviamente, condutas criminosas não se incluem nesse conceito de liberdade).

Talvez as famílias que queiram manter um legado por aí discordem de mim. E tudo bem! Quem sou eu para dizer como os outros devem levar suas vidas? Mas… Deus me livre de tantas regras, tradições e vida de aparências.

CARDOSO, Lúcio. Crônica da Casa Assassinada. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

HARARI, Yuval. Sapiens: uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Tradução: BRITTO, Paulo Henriques. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MORGAN, Peter. The Crown. UK: Netflix, 2016-atual.