Coraline

“Coraline descobriu a porta logo depois que eles se mudaram. Era uma casa muito velha – tinha um sótão sob o telhado e um porão embaixo do chão, além de um jardim cheio de mato com árvores gigantes e antigas.

A Família de Coraline não era dona de tudo. A casa era grande demais para isso. A Família era dona apenas de uma parte.

Outras pessoas também moravam ali.

A srta. Spink e a srta. Forcible ficavam no apartamento abaixo do de Coraline. Ambas eram velhas gorduchas e dividiam o espaço com inúmeros cachorros velhinhos da raça terrier escocês, que atendiam por nomes como Hamish, Andrew e Jock. Num passado já muito distante, elas tinham sido atrizes. Isso foi o que a srta. Spink contou para Coraline no dia em que elas se conheceram.

– Sabe, Caroline – disse ela, errando o nome de Coraline. – A srta. Forcible e eu fomos atrizes muito famosas na nossa época. Éramos as rainhas dos palcos, meu bem. Ah, não deixe o Hamish comer bolo de frutas, ou ele vai ficar acordado a noite inteira com dor de barriga. (…)

No apartamento de cima do de Coraline, mais perto do telhado, morava um velho doido que tinha um bigodão. Ele contou a ela que estava treinando uma trupe de ratos de circo. E não deixava que ninguém visse os bichinhos.”

GAIMAN, Neil. Coraline. p.19.

Para quem busca um livro ótimo que agrade tanto a adultos quanto a crianças, uma boa pedida é Coraline, do autor britânico Neil Gaiman.

Li esse junto com a minha filha, que já tinha visto algumas dezenas de vezes a animação baseada no livro e era apaixonada pela história da menina Coraline.

Uma estratégia que tenho adotado com ela nesse período de alfabetização e que tem dado muito certo é trazer para nossos momentos diários de leitura livros grossos.

Deixem-me explicar o que são considerados livros grossos nesse contexto. todos os dias, desde os sete meses de idade, eu leio para ela antes de dormir. Coisa de quinze minutinhos. E ela sempre me vê com livros na mão. Com o tempo ela foi percebendo que os meus livros eram mais grossos que os dela e começou a dizer que queria ler os meus livros. Então para estimular a curiosidade da pequena, comecei a selecionar livros adequados para a idade dela, mas que se parecessem mais (fisicamente) com os livros que eu leio para minha felicidade. Nessa linha, já lemos juntas: O Hobbit (J.R.R. Tolkien); alguns volumes de Desventuras em Série (Lemony Snicket); Alice no país das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou por lá (Lewis Caroll); Viagem ao centro da Terra (Jules Verne)… e por aí vai. É legal porque ela se sente importante, por ler livros “grossos”, dura muitas noites com ela sempre instigada para saber o que vai acontecer no dia seguinte, e o melhor, quando está muito interessante e temos tempo disponível, eu lanço mão de alguns estratagemas como pedir que ela leia uma página para ganhar mais duas lidas por mim. Essa conta do que ela deve ler e o que ela ganha depende do livro, da hora de dormir e outras variáveis. Tudo é negociado na hora.

Quando o livro é fininho ela lê para mim. Também sou filha de Deus e também amo ouvir a vozinha dela lendo.

Voltando a Coraline, que na edição da Intrínseca é um livro de 223 páginas, classifico-o como terror para crianças. Dá um sustinho, tem moral da história, prende do início ao fim é muito bem escrito. A edição mencionada é particularmente caprichada: capa dura, folhas roxas, ilustradas, vem com marcador personalizado.

Coraline é uma menina pré-adolescente que acabou de se mudar para uma casa antiga. Essa casa foi dividida em apartamentos e a família da menina é vizinha de uma dupla de atrizes aposentadas e um treinador de ratos.

Os pais, ocupados com a mudança de casa, as coisas do emprego e o dinheiro pouco abundante no momento, acabam, por vezes, negligenciando Coraline. No filme isso é mais evidenciado, voltaremos a ele mais tarde.

Outro aspecto do condomínio é que não há outras crianças por perto. A menina acaba tendo que se divertir sozinha ou, às vezes, com um gato que passeia nos arredores.

Para matar o tédio, Coraline inventa para si uma brincadeira de exploradora e sai vasculhando a casa e o jardim. Nessa é que ela conhece os vizinhos que terão papel importante em toda a história.

Um dos cômodos da casa da família não é usado cotidianamente, ele é destinado a guardar móveis que receberam de herança da avó. Nesse cômodo é que Coraline fará a mais importante descoberta: uma porta. Uma porta trancada que ela não sabe onde dará. Agora pensa se uma menina curiosa e sem o que fazer vai deixar passar uma oportunidade dessas de se encrencar? Claro que não.

Ela vai encontrar a chave e atravessar a porta. Do outro lado ela vai encontrar o upside-down. (Brincadeira. Não é sobre Stranger Things, mas é quase.)

A misteriosa porta leva para uma casa quase igual à dela, porém com uma mãe que cozinha comidas deliciosas, um quarto perfeitamente decorado e com todas as coisinhas que ela gostaria de ter. À primeira vista tudo mais parece mais interessante, exceto pelo fato de que as pessoas têm botões no lugar dos olhos e depois de um tempo ficam meio medonhas.

As descobertas de Coraline no mundo depois da porta são muito interessantes. Elas vão tecendo as explicações, as comparações com o mundo convencional e os meios de escapar dali.

Um dado interessante é que o nome da menina era para ser Caroline. Foi por um erro de digitação que nasceu o nome que acabou sendo usado como título do livro e nome da personagem principal. Neil Gaiman incorporou esse “erro” na trama belamente. Mas não vou dar detalhes porque isso foi uma sacada bem legal. Vale a pena conferir no livro e no filme.

A “outra mãe” tem capangas que a ajudam a manter Coraline na “outra casa”. Esses ajudantes são os ratos, que no “outro mundo” não são amáveis como os do vizinho. Eles fazem o trabalho sujo. Fechando portas, pegando coisas, atrapalhando Coraline.

Não se trata exatamente de uma fábula, posto que a personagem principal é humana e vários importantes coadjuvantes também são. Entretanto, assim como os ratos, o gato e outros animais assumem papeis humanizados.

Isso me lembrou dois outros livros em que os ratos têm papel importante e não se comportam como ratos comuns.

Comecemos por Flores Para Algernon. O Algernon que está no título é um rato. Um rato de laboratório. Ele é o único de uma série de ratos expostos a uma pesquisa para aumentar a inteligência dos submetidos ao tratamento que sobreviveu aos testes, pelo menos até então.

O personagem principal de Flores para Algernon é Charlie, um homem de uns 30 anos que tem comprometimento cognitivo, com dificuldade de aprendizado e de se encaixar no mundo. Uma vez que Charlie se torna a primeira cobaia humana do experimento, ele e Algernon vão ter uma relação peculiar que vai se desenvolvendo ao longo da trama. Claro que o mais importante do livro são as relações de Charlie com os humanos que o cercam (colegas de trabalho, professora, namorada, patrão, pesquisadores e etc.), porém é na convivência com Algernon que ele tem o vislumbre do que acontecerá com ele à medida que avança o experimento, visto que Algernon tem desenvolvimento similar.

Esse é um livro muito especial porque é inteligente e diferente. Já tem texto sobre ele aqui, caso queira saber mais. Essa obra do autor Daniel Keyes está disponível no Kindle Unlimited.

Já vimos então os ratos de circo e os ratos vilões, em Coraline, os ratos de laboratório, em Flores Para Algernon, e por fim veremos os ratos donos do bagulho todo. Como assim?

Em O Guia do Mochileiro das Galáxias (Douglas Adams), livro do qual já falei algumas vezes e que tem texto no site apenas para o volume um da “trilogia de cinco”. Foi eleito por mim o mais divertido de 2022, so far.

Recapitulando brevemente, é a história de um alienígena que está na Terra disfarçado de humano para escrever o verbete Terra do Guia do Mochileiro das Galáxias. Essa pessoa quando constata que a Terra será destruída, salva um amigo terráqueo da morte e dá início a uma aventura muito louca a lá Monty Python.

Nessa bagunça toda o humano resgatado que é um dos personagens principais e se chama Arthur Dent, descobrirá entre outras mil coisas que a Terra era um planeta artificial, criado sob demanda por ratos para descobrir o sentido da vida. Sim, Ratos.

Os ratos seriam os seres mais inteligentes do universo e nós humanos apenas cobaias das experiências científicas conduzidas por eles para entender a vida, o universo e tudo.

Então temos um terror infantil (fantasia/aventura), um drama/ficção científica e uma comédia/ficção científica. Todos excelentes no que se propõe.

O filme em stop motion Coraline e o Mundo Secreto, foi lançado em 2009, e tem como dubladores da versão em inglês pessoas como Dakota Fanning e Terry Hatcher. É muito bom. A estética, o roteiro, as alterações, tudo muito bem feito. Esse filme levou quatro anos para ser finalizado e foi indicado ao Oscar e ao Golden Globe de melhor animação em 2010 .

O roteiro tem algumas alterações em relação ao livro. Todas ok, funcionaram muito bem. A essência está lá. Prefiro o livro, porém destaco que o filme é muito bem feito. Achei o filme mais “assustador” que o livro.

 

GAIMAN, Neil. Coraline. Tradução: BEBER, Bruna. Ilustração: RIDDELL, Chris. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

KEYES, Daniel. Flores para Algernon. Tradução: GEISLER, Luisa. São Paulo: Aleph, 2018.

ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. In: Guia Definitivo do Mochileiro das Galáxias: A trilogia de cinco em um único volume. Tradução: COSTA, Carlos Irineu da. Rio de Janeiro: Arqueiro, 2020.

SELICK, Henry. Coraline e o Mundo Secreto. EUA: Focus Features, 2009.