Ciranda de pedra | Amazon.com.br“- Pode contar tudo, tio Daniel não me manda, quem manda em mim é meu pai, ouviu? Meu pai.

Luciana não respondeu e Virgínia levantou-se, tomada de súbito pavor. Falara alto demais. Teria a mãe ouvido? Pôs-se a enrolar no dedo uma ponta da franja. “Não, não ouviu e se ouviu não entendeu.” Abriu a porta e assim que a empregada entrou, sondou-lhe a fisionomia. Tranquilizou-se. “Só se zanga mesmo quando eu falo naquilo.” Riu baixinho.

– Onde está a outra? – perguntou Luciana erguendo do chão uma presilha.

– Perdi.

– Então você vai de fita.

– Não, de fita, não! Meu cabelo é liso demais, fica tão feio…

– Então vai sem nada – disse Luciana com indiferença.

Dirigiu-se à cômoda que tinha um tom rosa encardido m puxou a gaveta. Estava emperrada. Puxou-a com mais força.

– Dá um pontapé que ela abre logo.

– É um bom sistema esse. Assim, quando arrebentar tudo, você guarda sua roupa no chão. – Tirou da gaveta um par de meias brancas. – Quando estes móveis vieram de lá, ainda eram novos.

– Mentira – disse Virginia em voz baixa. Falava com cuidado para que a mãe não ouvisse lá embaixo. – Bruna já me deu tudo assim mesmo. O pai deu mobília nova para ela e então ela me deu estes. Tio Daniel disse uma vez que ia me dar uma mobília azul e não me deu nada.

– Ele tem mais em que gastar.

– É. mas ele disse que ia me dar uma mobília e não deu nada. Bruna disse que ele tem obrigação de dar tudo pra minha mãe e pra mim. E Bruna sabe.

– É pouco o que ele dá, não?

– Não quero saber, só sei que ele ia me dar uma mobilia azul e não deu nada.”

Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra.

 

Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira, sempre entrega. Ainda não li nada ruim dessa mulher. Destaque para o livro de contos altamente incensado pelos leitores: Antes do Baile Verde.

Dizem por aí que antes de escrever Ciranda de Pedra (1954), Lygia havia escrito outros romances, mas que os queimou por considerá-los ruins.

Vida e Obra de Lygia Fagundes Telles - Toda Matéria

Lygia Fagundes Telles

Nunca saberemos como eram. Uma pena.

Essa mulher maravilhosa nos deixou no ano passado, tendo vivido 103 anos, nos quais teve tempo para se formar advogada, trabalhar como Procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo até se aposentar, escrever quatro romances, vinte e um livros de contos, tudo ao mesmo tempo. Várias de suas obras foram adaptadas para a TV, teatro e cinema, incluindo Ciranda de Pedra que foi transformado em novela em 1981 e depois teve seu remake em 2008. E o tanto de prêmios? Nem sei quantos, apenas cito os quatro Jabutis, o Camões e chegou à indicação para o Nobel de Literatura em 2016 (o prêmio foi concedido a Bob Dylan que nem foi buscar. Aff…).

Além dos prêmios literários Lygia também recebeu diversas honrarias ao longo de sua carreira: foi imortalizada pela Academia Paulista de Letras, recebeu a Ordem do Rio Branco, título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Brasília, medalha Imperatriz Leopoldina e outros tantos.

Essa introdução foi só para apresentar a mulher extraordinária que foi a autora do livro da vez: Ciranda de Pedra.

O título “Ciranda de Pedra” tem seu sentido, digamos, concreto e seu sentido alegórico. No suntuoso jardim da casa de Natércio, havia uma escultura de cinco anões de pedra formando um círculo de mãos dadas. Alegoricamente, essa escultura representa cinco personagens: Bruna (a carola), Otávia (a linda), Afonso (o babaca), Conrado (o certinho) e Letícia (a menos popular da turma). Eles formavam um círculo de amizade impenetrável a outros interessados.

Bora destrinchar: Bruna, Otávia e Virgínia são irmãs; Conrado e Letícia também são irmãos; Afonso é vizinho, aliás as famílias deles são vizinhas. Virgínia é irmã, mas não mora com Bruna e Otávia. Os pais se separaram e ela foi morar com a mãe e o padrasto.

Ciranda de Pedra (1981 e 2008).

É da perspectiva dela, Virginia, que o leitor acompanhar a história. O narrador em terceira pessoa narra a vida da personagem principal. Dá para dizer que é um romance de formação? Sim, é possível interpretar assim. Virgínia era uma menina de uns 10 anos e ao final do livro tinha uns 20. Ao longo do livro ela vai crescer, amadurecer, ressignificar pessoas e acontecimentos em sua vida, passar por poucas e boas.

Natércio é um advogado renomado, workaholic, rico e sisudo. Quando sua esposa Laura, decide deixá-lo para se casar com outro homem, ele mantém sob sua guarda as filhas mais velhas e a mais nova vai com a mãe para o novo lar.

Daniel, o padrasto, é médico e é um homem de classe média. Laura tem transtornos psiquiátricos graves, com alucinações, lapsos de memória e surtos. E a pequena Virgínia fica aí perdida entre a vontade de voltar para a casa do pai rico e de ser aceita pelas irmãs que a esnobam, não fortalece os laços com Daniel, que por sua vez também não faz esse esforço, e não pode contar com a mãe acamada, que passa o tempo quase todo em um quarto escuro.

Com o tempo, Virginia vai morar com o Natércio e as irmãs, vai ter uma semana do cão em que seu mundo virará de ponta-cabeça, vai estudar num internato, vai crescer.

Crescer elaborando em si todas as ausências e como lidar com elas. Como preencher o vácuo.

Existe uma questão de aparências e tabus entre os adultos que impõe ausências e silêncios à vida de Virgínia. Um vácuo de amor, palavras, pertencimento, aceitação.

Não vou contar o final, só garanto que é um final sensacional.

O vácuo semelhante do que Virgínia experienciou está presente em outras obras igualmente fenomenais: Crônica da Casa Assassinada e Os Banshees de Inisherin.

 

Crônica da Casa Assassinada é um dos meus livros preferidos, já falamos dele por aqui.

Nessa obra, Lúcio Cardoso mergulha em uma tradicional família mineira: os  Meneses.

Uma gente oprimida, presa a um ideal de status social, falida (do tipo come m$%#a e arrota caviar). Um dia chega a essa casa a jovem esposa carioca de Valdo, o irmão ainda solteiro. Essa mulher que chega chegando, traz vivacidade, alegria e já no primeiro dia é repreendida por isso. O chefão é Demétrio Meneses, pense numa pessoa infeliz. Ele subjuga a esposa, Ana, que também vem de uma TFM e por tanto foi criada para ser assim submissa, o irmão Demétrio, os empregados da fazenda e principalmente o irmão secreto, Timóteo.

Timóteo para mim é o melhor personagem. Ele vive isolado em um quarto, onde recebe comida e champanhe e passa os dias sozinho sendo ignorado pelo resto da casa. Os demais Meneses simplesmente fingem que ele não existe. O motivo do desprezo é porque Timóteo teve a coragem de assumir quem é. Ele é gay! Só isso.

Então serão aí três pessoas formando uma “ciranda de pedra” e duas “Virginias”, no caso Timóteo e Nina, a esposa de Valdo e personagem principal do livro.

Deu para perceber o vácuo? É um vácuo de amor, de conversa, de luz (as janelas estão sempre fechadas), de alegria, de liberdade. Aquelas pessoas se suportam, se podam e simplesmente existem. O vácuo da casa assassinada é tão grande que adoecerá quem vive ali, tanto os cirandeiros, quanto os que não aprovam daquele estilo de vida.

Já em Os Banshees de Inisherin (roteiro e direção de Martin Macdonagh), o vácuo é de outro tipo. Não se trata de uma família, mas de uma comunidade inteira, uma cidadezinha insular irlandesa chamada Inisherin, na década de 1920, durante a guerra civil irlandesa.

Inisherin tem sei lá, uns mil habitantes ou menos, as distancias entre as casas é grande, é uma ilha, portanto, isolada do resto da Irlanda, mas perto o suficiente para que de lá as pessoas ouçam as explosões e vejam sinais da guerra. Tem um único Pub, que é onde os inisherienses vão tomar cerveja e jogar conversa fora todos os dias.

Apesar de serem poucos habitantes e de frequentarem o mesmo Pub todos os dias, os personagens dessa história não tem grandes laços de amizade entre si.

Pádraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), os personagens principais, são amigos um do outro e só. Aí tem o Dominic que é um menino esquisitão, que ninguém quer por perto e que é filho de um pai violento, tem a velha profetiza do apocalipse que sempre tem uma coisinha desagradável a dizer, Siobhán que é irmã de Pádraic e que parece ser a única pessoa sensata naquela loucura, mas que vive em autoisolamento porque não suporta a fofocada e a falta de tudo daquela cidade. Siobhán não é antipática nem insensível, muito pelo contrário, trata a todos com cordialidade e empatia, mas não quer estabelecer relações fortes porque prefere a companhia dos livros àquela futrica de cidade pequena. Eu seria Siobhán nesse rolê.

Diferente da irmã, Pádriac é pouco instruído, um homem simplório também de bom coração, que ama aquela cidadezinha e a vida que leva. Para ele tudo ia às mil maravilhas até o dia em que seu único amigo, o músico metido a virtuose, Colm ao vê-lo chegar ao Pub declara: “Sit somewhere else” (sente-se em outro lugar). E assim Colm encerra a amizade de anos com Pádriac. A justificativa é que Colm não gosta mais dele, isso é dito com todas as letras.

Mas aí Pádriac que é uma pessoa insistente e se recusa a largar a amizade que preenche o vácuo da sua existência naquele lugar, fica cercando Colm e tentando reatar a amizade.

Agora vai dar certo, né? Não. Não vai.

Colm, já bastante irritado com a insistência, diz a Pádriac que a cada vez que falar com ele, que lhe dirigir a palavra, usará uma tesoura afiada que tem em casa para cortar um dedo de sua  própria mão e dará o dedo amputado a Pádriac de presente.

Esse filme é classificado como uma comédia dramática e é isso mesmo, a bizarrice do comportamento das pessoas daquela comunidade, o vácuo e mesmo os momentos mais dramáticos contém em si um humor bem peculiar, que lhe proporcionará umas risadinhas.

Para saber se Colm cumpriu a promessa em relação a cortar os próprios dedos, vai ter que assistir.

Os Banshees de Inisherin ganhou vários prêmios, entre eles Baftas e Globos de Ouro, e foi indicado a tantos outros, como o Oscar.

Sobre as novelas adaptadas de Ciranda de Pedra produzidas pela Globo em 1981 e 2008, é possível achar fragmentos da primeira e a segunda completa no Youtube. Pelo pouco que assisti, elas mudaram bastante o conteúdo do livro, o que não quer dizer nem que seja ruins nem que sejam boas. Se tiverem curiosidade, o Youtube está aí para isso.

 

TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. Companhia das Letras, 2009.

CARDOSO, Lúcio. Crônica da Casa Assassinada. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

MCDONAGH, Martin. Os Banshees de Inisherin. EUA, Irlanda e UK: Searchlight Pictures, 2022.

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