
Capa do livro Capitães da Areia
“– Quer ver uma coisa bonita?
Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abriu num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saia do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e o conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade.”
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. p. 68.
Capitães da Areia é uma das mais conhecidas obras do escritor baiano Jorge Amado e foi publicada pela primeira vez em 1937, ano em que também fora queimada e censurada pelo Estado Novo, ditadura varguista que vigorou de 1937 a 1945. Ainda no ano de 1937, Jorge Amado fora preso sob a acusação de ser comunista.
A leitura desse livro para mim vem com um bônus, visto que o cenário é a cidade de Salvador, que é uma das minhas capitais brasileiras favoritas. Sobre a interação do autor com a cidade durante a escrita de Capitães da Areia, a autora Zélia Gatai, que era esposa de Jorge Amado, disse que seu marido passou algumas noites dormindo no trapiche com as crianças abandonadas da cidade e que isso explica o olhar de dentro, os detalhes e a empatia para com os meninos.
Digo meninos porque eles eram de fato um bando de crianças do sexo masculino. A única menina do bando aparece a partir do último terço do livro.
Tratam-se de garotos abandonados ou órfãos que vivem de roubos e outros delitos nas ruas de Salvador. Seriam cerca de cem crianças no bando nomeado “Capitães da Areia”, que era chefiado por Pedro Bala, garoto que por sua astúcia e capacidade de liderança conquistara essa posição de destaque entre os iguais. O livro cita a rivalidade entre grupos de menores de rua daquela cidade, narrando inclusive um enfrentamento entre Pedro Bala e quatro meninos do bando chefiado por Ezequiel.
Esses meninos de idades variadas, se organizam para cometer assaltos e sobreviver da renda dessa atividade. Têm táticas para se infiltrar em casas de pessoas abastadas, batem carteiras, roubam lojas, estupram meninas, mantém relacionamentos sexuais entre eles e com prostitutas, fumam, bebem, enfim, vivem como criminosos adultos.
Como amparo eles tem alguns adultos amigos: o Padre José Pedro, que ganhou a confiança deles e tenta levá-los ao caminho do bem; Querido-de-Deus, um capoeirista que às vezes contrata os meninos para fazerem alguns roubos, mas também auxilia quando eles precisam; Don’Aninha, mãe de santo que os reccebe em seu terreiro, dá concelhos e conversa com eles; João-de-Adão, um estivador que fica mais próximo de Pedro Bala.
Eles só têm medo da polícia, do reformatório e do orfanato. O livro deixa bem claro que eles não temem não ter o que comer, temem perder a liberdade. Também é bem acentuado como o reformatório tem métodos que aumentam a raiva ao invés de recuperar os jovens ali detidos. O mesmo pode ser dito do orfanato, comandado por freiras, destinado às menores do sexo feminino.
Apesar de valorizar da liberdade, os meninos sentem falta de ter amor de mãe, frequentemente estabelecem entre amor de família e liberdade uma dicotomia: ou se tem um ou outro, os dois, em seus imaginários, não poderiam andar juntos. Quando da chegada de Dora ao bando, aos poucos ela foi assumindo esse papel de mãe e irmã, embora Pedro Bala e Professor a vissem como noiva.
Além de Dora, outras três mulheres são exaltadas ao longo da obra por sua coragem: Rosa Palmeirão, Maria Cabaçu e a mãe de Volta-seca, membro dos Capitães de Areia. O modo reverenciam essas quatro mulheres monstra que elas são como modelos de conduta para eles.
No Distrito Federal, o projeto educacional Mulheres Inspiradoras, criado pela professora da rede distrital Gina Vieira Ponte, se tornou modelo para várias escolas brasileiras. Esse projeto consiste em apresentar aos alunos mulheres importantes para a história da humanidade para que lhes sirvam de influência. Em uma segunda fase cada aluno escreve sobre uma mulher que seja inspiradora dentro a trajetória pessoal deles. Muitos escolhem suas mães ou avós e os relatos são de terem descoberto fatos e detalhes sobre a vida dessas pessoas que sempre estiveram por perto, mas que eles não conheciam em profundidade, tendo sido surpreendidos pelas vidas dessas mulheres.
Provavelmente, por não terem mães ou outras parentes presentes em seus cotidianos, os membros do bando das crianças de rua, relatariam as peripécias das mulheres que segundo eles “lutavam como homens”.

Gina Vieira Ponte. Criadora do Projeto Mulheres Inspiradoras.
Após a chegada de Dora e sua incorporação aos Capitães da Areia, ela talvez fosse a escolhida para representar uma mulher inspiradora para os garotos, mais que Rosa Palmeirão e Maria Cabaçu. Entretanto, aposto que Volta-seca escolheria a própria mãe.
Dora, que era uma menina de doze anos quando perdeu a mãe em uma epidemia de varíola, ficou sozinha com o irmão de cinco anos, largada nas ruas da capital baiana até ser acolhida pelos Capitães da Areia. Ela, com seu jeito determinado, corajoso e ao mesmo tempo meigo, conquistou os meninos se tornando uma liderança, depois de Pedro Bala.

Pôster do filme Riquinho.
No filme Riquinho, de 1994, estrelado por Macaulay Culkin, o personagem cujo nome dá título ao filme era a criança mais rica do mundo e tinha uma agenda de adulto, bastante atribulada. Em um desses compromissos de negócios ele vê uma turma de crianças da mesma idade dele que jogava beisebol na rua. Sentindo vontade de se juntar às crianças o menino rico é primeiramente escorraçado pela líder do grupo, Glória, que é também a única menina entre muitos meninos.
Glória é a menina que dá a palavra final. Inclusive a aproximação de Riquinho com o grupo dela só ocorre quando ela baixa a guarda. Glória e seus amigos não cometem delitos, têm família, casa, escola. A semelhança está na liderança e no fato de ser a única garota na turma o que dá a ela uma personalidade que combina Pedro Bala e Dora.
Muitos membros dos Capitães da Areia sabem sobre suas origens, quem foram seus pais e o que aconteceu com eles até chegarem à condição de crianças abandonadas. Pedro Bala perdeu a mãe no parto e o pai quando tinha cinco anos, assassinado pela polícia em uma greve dos estivadores. O pai de Bala era conhecido como Loiro e tinha o respeito dos grevistas do porto. Após sua morte trágica passou a ser uma espécie de mártir entre os estivadores. Esses fatos relatados por João de Adão e confirmados por Don’Aninha, encheram Pedro de orgulho e acabaram por determinar seu destino. Tomar parte de sua ancestralidade foi um momento de epifania, transformador para o líder dos Capitães da Areia.
A autora cubana Teresa Cárdenas, escreveu um livro fininho e sensível sobre um homem escravizado na Cuba colonial. O livro se chama Cachorro Velho e narra em terceira pessoa a vida de homem que era escravo em uma fazenda.

Capa de Cachorro Velho.
Cachorro Velho era o nome dele, o único nome que ele conhecia. Tudo o que ele sabia sobre sua ascendência lhe fora contado por uma anciã chamada Aroni. Segundo Aroni, ele tinha recebido da mãe um nome africano. A própria Aroni fizera o parto. Poucos dias depois do nascimento a mãe dele fora vendida. Ele, recém nascido, ficava esfregando seu rostinho no peito das mulheres que o pegavam no colo em busca do leite materno, esse comportamento divertiu o proprietário da fazenda, que achou que ele fuçava como um cachorro velho e então lhe deu essa alcunha que substituiu seu nome. Nem mesmo Aroni lembrava o nome original.
Na fazenda, haviam escravizados traficados de países africanos que chegaram em navios negreiros e outros nascidos em território colonial. Cachorro Velho pertencia a esse segundo grupo. Aroni era para ele a memória não só da mãe, mas também do continente africano, que ele nunca chegou a conhecer.
O livro mostra a diferença de atitude entre os nascidos em solo cubano, na época colônia espanhola, e os escravos vindos de países africanos. Segundo o personagem principal, os companheiros que vieram de fora não se conformavam com a escravidão e lutavam contra ela como se nada tivessem a perder, ao passo que os que tinham nascido na fazenda, temiam desagradar aos senhores e sofrer as consequências, a ponto de Cachorro Velho já ter desistido de uma fuga com grandes possibilidades de sucesso, por ter sido acometido de uma crise de pânico causada pelo terror dos castigos que sofreria, caso fosse recapturado.
A personagem Aroni era para Cachorro Velho o que João de Adão e Don’Aninha eram para Pedro Bala: sua memória, o arquivo vivo de sua ancestralidade.
Um dos personagens mais violentos do bando dos Capitães da Areia é o conhecido como Volta-Seca. Ele não era soteropolitano. Vida -Seca veio do sertão e saiu de seu local de origem quando a mãe foi assassinada. A mãe de Volta-Seca era amiga pessoal de Lampião (sim, Virgulino Ferreira, o cangaceiro). Eles eram tão chegados que Volta-seca era afilhado de Lampião. O sonho do menino era se juntar ao bando de seu padrinho e ser um cangaceiro.

Volta-seca em uma das vezes em que ficou preso.
No final do livro, quando Jorge Amado fala do destino dos principais Capitães da Areia, Volta-seca consegue encontrar Lampião em uma estação de trem, diz ao padrinho/ídolo de quem é filho sendo prontamente identificado. Então, recebe uma arma das mãos do chefe dos cangaceiros e executa um policial com requinte de crueldade. Lampião fica tão admirado com a “coragem” do menino que o incorpora ao bando, deixando que ele seja extremamente cruel com todos as suas vítimas, mesmo sob protesto de outros cangaceiros.
Porque estamos dedicando esse espaço a Volta-seca? Porque ele é um personagem real. Os Capitães da Areia são uma criação de Jorge Amado, ainda que baseada na situação verídica dos meninos de rua de Salvador na primeira metade do século XX. Entretanto, Volta-seca (Antônio dos Santos) foi um cangaceiro que entrou para o bando de Lampião com onze anos de idade.
O verdadeiro Volta-seca, que escapou do bando de Lampião e sobreviveu ao episódio da Grota do Angico, tento vivido mais de 80 anos, jurou de morte Jorge Amado por ter mencionado seu nome no livro. Segundo ele, o escritor inventou mentiras e em sua criação o fizera personagem menor, coadjuvante no grupo ficcional. Audácia jamais perdoada por Volta-seca que, quando desistiu de matar Jorge Amado, recusou compromissos remunerados somente porque neles teria de ficar frente a frente com o escritor.
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PETRIE, Donald. Riquinho. EUA: Warner Bros, 1994.
CÁRDENAS, Teresa. Cachorro Velho. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
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