
Capa do livro Alice, que contem as histórias: Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá.
“Nesse instante apareceu uma Corça vagando por ali; olhou para Alice com seus olhos grandes e meigos mas não se assustou nadinha. ‘Venha cá! Venha cá!’ disse Alice, esticando a mão tentando afagá-la; mas a Corça só recuou um pouco e voltou a olhar para Alice.
‘Como você se chama?’ finalmente a Corça perguntou. Que voz doce e suave tinha!
‘Quem me dera saber!’ pensou a pobre Alice. Respondeu um tanto acabrunhada: ‘Nada, por enquanto’.
‘Pense bem’ a Corça disse, ‘esse não serve’
Alice pensou, mas não adiantou coisa alguma. ‘Por favor poderia me dizer como você se chama?’ disse timidamente. ‘Acho que isso poderia ajudar um pouco.’
‘Vou lhe dizer se vier um pouco adiante comigo’, disse a Corça. ‘Aqui não consigo me lembrar.'””
CARROLL, Lewis. Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá. In: Alice. p.200.
Talvez um dia comentemos Aventuras de Alice no País das Maravilhas, mas hoje, invertendo a ordem cronológica das publicações e também a de popularidade, iniciaremos a obra de Lewis Carroll por Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá.
Por ser autor reconhecidamente genial, porém de vida pessoal controversa, falemos um pouco sobre Lewis Carroll.
Os dois livros sobre a pequena Alice são recheados de questões de lógica e matemática. À primeira leitura, a maior parte desses problemas e questões lógicas pode passar batida, mas à cada releitura outras perspectivas aparecem. Imagino que no original, em inglês, deva ser ainda mais complexo e interessante, talvez um dia eu encare.
Carroll era matemático de formação, tendo lecionado na Christ College, em Oxford na Inglaterra. Também foi reverendo anglicano e fotógrafo.

Lewis Carroll
O que parece, em uma leitura desatenta, uma divertida história nonsense, vai se revelando um intricado jogo de palavras e ideias.
A mancha na biografia de Carroll, que na verdade era pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, está em sua relação com as crianças, mais especificamente meninas. A possibilidade obscura de que ele possa ter cometido atos de pedofilia não é infundada. Caroll vivia cercado de meninas e as fotografava bastante, às vezes seminuas, e, curiosamente, com o consentimento dos pais.

Alice Liddell aos 7 anos, fotografada por Lewis Carroll
Alice Liddel, menina para quem Carroll criou a personagem Alice, foi também fotografada por ele e era filha do reitor da Christ College.
Dizem que a história das Aventuras de Alice no País das Maravilhas foi inventada por Carroll em um passeio de barco com Alice e suas duas irmãs. Depois a história fora passada para o papel e mandada para publicação. Sete anos depois do sucesso de Aventuras de Alice no País das Maravilhas, foi publicada sua continuação: Através do espelho e o que Alice encontrou por lá.
Essa história não se passa no País das Maravilhas e não se parece em quase nada (ou nada) com o filme Alice através do espelho, produzido pelos estúdios Disney e dirigido por Tim Burton.
A genialidade do livro começa antes da história propriamente dita. Entre o sumário e o primeiro capítulo “A casa do espelho” há o desenho de um tabuleiro e uma lista com sequência de movimentos de xadrez onde Alice seria um peão branco. A movimentação dela e dos outros personagens no lugar onde se passa a aventura é toda planejada como se o universo através do espelho fosse o tabuleiro de xadrez e todos se movessem como em um jogo que Alice vencerá em onze jogadas. Então o livro apresenta um poema e só depois deste é que a história começa.
Aliás, Através do Espelho tem vários poemas em suas páginas. Por vezes Alice recebe pedidos para declamar ou cantar e, em outras, personagens cantam ou declamam para ela.
A trama começa em um dia calmo, quando Alice está brincando com as suas gatas e um tabuleiro de xadrez de peças brancas e vermelhas. Então a menina levanta uma das gatas para mostra-la ao espelho e começa a se questionar como seria a sala do outro lado do espelho, se seria igualzinha à sua sala mesmo nos espaços que ela não consegue ver refletidos. Então ela sobe no console da lareira e estranhamente atravessa o espelho indo parar na “casa do espelho”.
Lá, Alice vai encontrar personagens tão mágicos e diferentões quanto os do País das Maravilhas. Mas não serão os mesmos. Exemplos dessas criaturas são os gêmeos Tweedledum e Tweedledee, a rainha vermelha, o leão e o unicórnio.
Alice tem que aprender a se mover e a conversar do jeito certo com os personagens certos para conseguir avançar até a rainha branca.

Tweedledum e Tweedledee, em filme de Tim Burton
No caminho para a casa de Tweedledum e Tweedledee, Alice teria que atravessar o “bosque onde as coisas não têm nome”. No momento em que ela adentra o bosque sua primeira impressão é de alívio por estar em um lugar fresco depois de ter sentido tanto calor, de repente ela pensa que aquelas árvores são responsáveis pela temperatura agradável, mas não consegue completar esse raciocínio porque não se lembra da palavra “árvore”. Então, ela percebe que não se lembra de seu próprio nome. Para pedir ajuda, Alice chama para perto de si uma corça que, por sua vez, não lembra o que é. E é aí que a corça convida Alice para sair do bosque e ao se afastarem um pouco a corça de repente se lembra de ser uma corça, bem como Alice se recorda das informações que o bosque havia confiscado.
Duas referências vieram à mente nesse ponto em que a proximidade geográfica com algum lugar causa efeitos psicológicos adversos nos personagens.
A primeira delas é mais direta em relação ao ocorrido com Alice, e é o lapso de memória que acomete os personagens da obra de Kazuo Ishiguro O Gigante Enterrado.

Capa de O Gigante Enterrado
O Gigante Enterrado tem uma aura misteriosa ambientada em um romance de cavalaria bem interessante, em que um casal de idosos, Axl e Beatrice, que não se lembra de muitas coisas importantes, sai em uma viagem longa para visitar o filho. O local onde vivem é envolto em uma névoa que prejudica a memória das pessoas e á medida que se afastam da névoa eles vão recuperando memórias felizes e dolorosas. No meio da ida para a casa do filho, Axl e Beatrice descobrem que a névoa é produzida por uma fonte fantástica e que é possível acabar de vez com ela e então a trama toma um novo rumo, incorporando novos personagens.
Há uma discussão sobre memória e felicidade, o quanto é importante lembrar-se de tudo para prosseguir a vida, sobre velhice e companheirismo, amizade e comprometimento.
Kazuo Ishiguro foi o vencedor do Nobel de literatura em 2017, talvez suas obras mais famosas sejam a ficção científica distópica Não me abandone jamais e o drama Vestígios do dia, que ainda não li, apenas assisti às adaptações para o cinema. Estão na lista de desejos literários.
Casando a névoa, que é uma substância gasosa que afeta a memória dos personagens, e o bosque, que é um lugar específico onde quem adentra não consegue raciocinar com os mesmos recursos de quem está de fora, aparece a nossa segunda referência: o Oráculo de Delfos.

Oráculo de Delfos
Na Grécia antiga, muitas pessoas eram atraídas para a cidade de Delfos onde o oráculo abrigava pitonisas que recebiam e repassavam aos mortais profecias do deus Apolo, que por sua vez tinha ligação íntima com seu pai, Zeus, e com os demais deuses olímpicos. Pessoas de diversas classes sociais iam em busca de respostas para suas angústias, fossem essas corriqueiras ou grandiosas. Um dos ilustres consulentes do Oráculo de Delfos foi Alexandre o Grande.
Se as profecias realmente se cumpriam, não há como saber, mas que mulheres em transe ofereciam “respostas” quando consultadas, ofereciam. E era só naquele lugar específico do Oráculo.
Segundo a mitologia, uma serpente morta por Apolo caíra em uma fenda e daquela rachadura emanavam gases oriundos da decomposição do animal tornando aquele lugar especial.
Pesquisas conduzidas por geólogos, químicos e toxicólogos concluíram que as fendas mágicas eram na verdade falhas geológicas de onde emanavam hidrocarbonetos em concentrações capazes de gerar transe, causando efeitos semelhantes aos apresentados por um grupo de jovens usuários tíner ou cola como entorpecentes. Essa comparação que usou observações do comportamento de jovens usuários de drogas em uma pesquisa moderna e as descrições de Plutarco sobre as Pitonisas, chegou a alguns pontos de similitude.
Caroll produziu um universo muito interessante em Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Talvez ele tenha se inspirado no Oráculo de Delfos para criar o bosque das coisas sem nome e Kazuo Ishiguro pode ter se inspirado tanto na obra de Carroll quanto no Oráculo para criar a névoa de “O Gigante Enterrado”. E ainda podem ter sido histórias completamente independentes, que autores criaram cada um a seu tempo sem que houvesse relação de influência de uma sobre a outra.

Pôster de Alice Através do Espelho
Apesar de não ter nada a ver o livro com o filme de Tim Burton, Alice Através do Espelho é um filme bem legal. Visualmente tão bonito quando a versão de Alice no país das maravilhas do mesmo diretor, mas com uma história boa. Porque vamos combinar que o filme Alice no País das Maravilhas é de aspectos técnicos (como maquiagem, efeitos, figurino) nota 10 e enredo no máximo 3. Já o enredo de Alice Através do Espelho merece um 7, em minha modesta opinião.
CARROLL, Lewis. Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá. In: Alice. Tradução BORGES, Maria Luisa X. de A. São Paulo: Zahar, 2009.
ISHIGURO, Kazuo. O Gigante Enterrado. Tradução: MOREIRA, Sonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BURTON, Tim. Alice Através do Espelho. EUA: Disney, 2016.
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