
As Vinhas da Ira
“Eles queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; dá um bom fogo. Atiram batatas nos rios, colocando guardas ao longo das margens para evitar que o povo faminto vá pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos, e deixam a putrescência penetrar na terra. Há um crime nisso tudo, um crime que está além da compreensão humana. Há uma tristeza nisso, a qual o pranto não pode simbolizar.
Há um fracasso nisso, o qual opõem barreiras ante todos os nossos sucessos: à terra fértil, às filas retas de árvores, aos troncos vigorosos e às frutas maduras. E crianças, sofrendo de pelagra, têm que morrer, porque a laranja não deve deixar de dar o seu lucro. E médicos-legistas devem declarar nas certidões de óbito: “Morte por inanição”, porque a comida deve apodrecer, deve ser forçada a apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os homens vêm nos carros barulhentos apanhar as laranjas caídas ao chão, mas elas estão untadas de querosene. E eles ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de laranjas, num lodaçal putrefato. Nos olhos dos homens reflete-se o fracasso. Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira diluem-se e espraiam-se com ímpeto, amadurecem com ímpeto para a vindima.”
STEINBECK, John. As vinhas da ira. p.640.
Eu não vou contar o final. Podem ficar despreocupados. Maaaas, o final desse livro foi um choque para mim. A última página mesmo. O finzinho final finalíssimo.
Ainda estou pensando sobre esse encerramento. John Steinbeck, o que foi isso?
As Vinhas da Ira, uma das obras mais famosas desse escritor norte-americano, venceu o prêmio Pulitzer em 1940. John Steinbeck foi laureado com o Nobel de literatura em 1962.
Esse é o único livro desse autor que eu li. Ao que parece, pelas outras sinopses, as relações/exploração de trabalho são tema recorrente, tanto na produção como escritor de ficção quanto como jornalista. O jornalismo foi fundamental para embasar a ficção de John Steinbeck.
Concomitante à crise econômica de 1929 os Estados Unidos viram seus estados mais ao sul e de predominância agrícola passar por um pesadelo ambiental. As tempestades de poeira que duraram aproximadamente dez anos, afetando com maior ou menor intensidades áreas agricultáveis, ficaram conhecidas como Dust Bowl. Esse período desastroso para os produtores rurais de estados como Oklahoma e Texas, agravou a crise pré-existente e marcou a queda vertiginosa da qualidade de vida de milhares de famílias, que perderam a condição de pagar pelas terras em que trabalhavam como arrendatários ou meeiros, ou mesmo de pagar hipotecas e empréstimos.
É na desgraça alheia que alguns menos retos de caráter veem oportunidades e nesse momento donos de terra californianos prometeram emprego em lavouras atraindo milhares de pessoas e provocando uma imensa onda migratória do leste para o oeste.
O que tem de errado em uma propriedade, que precisa de trabalhadores, oferecer emprego? Absolutamente nada. O problema é que foram convocados propositalmente muito mais braços do que era o necessário. Primeiro cria-se a expectativa de melhoria na sobrevivência de quem já teve alguma coisa e hoje está na miséria, então quando essas famílias chegam ao local onde deveria haver abundância de emprego, encontram abundância de mão de obra ociosa, justamente porque as vagas estão preenchidas. E aí acontece uma espécie de leilão cruel para ver quem topa trabalhar por menos.
Steinbeck frisa o tempo todo no livro que o homem desesperado de fome, vendo seus filhos emaciados e fracos faz qualquer coisa, topa qualquer serviço por mais mal pago e em condições mais degradantes.
O início do livro é marcado pela esperança, pelos preparativos, pelo entusiasmo dos Joad em relação à vida nova na linda e ensolarada Califórnia e aí a viagem segue e o tom vai mudando aos poucos. É muito boa a construção do crescimento da tensão e dos caminhos que vão tomando os personagens.
Os personagens são muito bem constituídos. A começar pela falta de nomes próprios dos mais velhos. Sabemos que a família é a dos Joad. Aí tem o Tom, condenado por homicídio e em fase de liberdade condicional, o Al que é irmão do Tom e entende de de carros, a Rosa de Sharon, irmã recém casada e grávida, as crianças Winfield e Ruthie e os mais velhos são simplesmente mãe, pai, avó e avô.
Há outros personagens com alguma importância, sendo o principal desses coadjuvantes o ex-pastor, Casy, que, naquele momento, é uma pessoa em crise existencial que não acredita mais nas coisas que pregava. Esse é um dos meus favoritos. É interessantíssimo.
Outra personagem muito linda é a mãe. A mãe é a força da família. Maravilhosa. Lúcida.
E esse povo vai viajando e ajuntando mais gente e deixando outros pelo caminho e a coisa vai se desenrolando como um parafuso sendo apertado bem aos poucos até sufocar.
Chega de informação sobre o enredo. Vale muito a pena a leitura.
Como mencionado anteriormente, o trabalho de jornalista deu a Steinbeck conhecimento de causa sobre realidades que não eram a dele. Essa obra veio depois que ele foi designado pelo The San Francisco News para cobrir o fenômeno migratório. Aí tem a questão do talento para escrever como se fosse ele próprio um Oakie. Já já explico esse termo.
O autor consegue transportar o leitor para a realidade do migrante, toda a expectativa, a preparação para a viagem, os panfletos anunciando oportunidades de emprego, a situação das famílias atingidas pelo dust bowl em Oklahoma, o modo como os policiais tratam as pessoas à medida que se afastam de seu local de origem. Além de problemas familiares e de dramas inerentes à alma humana que permeiam as relações e por muitas vezes definem os rumos da caravana.
Oakie é o apelido pejorativo que os migrantes do leste recebem. Ele se origina do nome do estado de Oklahoma, mas é aplicado a qualquer pessoa pobre que tenha ido procurar emprego na Califórnia. No início, os Joad não tem problemas em serem chamados de Oakies, até porque é de lá que eles vieram mesmo, até perceber o tom de desdém com que essa palavra é pronunciada ao se referir a eles. Um equivalente brasileiro, seria chamar de “paraíba” toda pessoa que tenha saído da região nordeste do Brasil rumo aos estados mais ao sul. A intenção é massificar, despersonalizar, inferiorizar. Os Oakies eram vistos como vagabundos desqualificados, merecedores das piores vagas de trabalho, pessoas que deveriam estar felizes só de ter o direito de respirar o ar californiano e que portanto devem se resignar aos maus tratos.

Dust Bowl

Dust Bowl, 1935
Sobre o Dust Bowl dos EUA da década de 30, o que aconteceu no interior do estado de São Paulo em 2021 foi o mesmo fenômeno. Olha a humanidade andando de lado de novo… Lição dada nem sempre é lição aprendida. (nem comento a negação do óbvio).
Outro livro bastante contundente sobre relações de trabalho injustas é Germinal, que já foi comentado aqui no texto sobre A Casa dos Espíritos. Muitos problemas em comum enfrentados pelos personagens em obras separadas pelo oceano Atlântico e por mais de 50 anos.
Germinal narra a vida de mineradores de carvão na França em fins do século XIX e as greves por melhores condições de trabalho. Fica bem caracterizada a ação dos donos das minas para baratear o custo da mão de obra ao mesmo tempo que maximiza a produção e os lucros. Sendo um livro bastante gráfico quanto às mazelas vividas pelos mineradores.
Não que não haja reação dos trabalhadores contra os desmandos dos donos de terra em As Vinhas da Ira, mas Germinal extrapola o relato das injustiças trabalhistas e da brutalidade do dia a dia e faz de sua narrativa uma demonstração de como começa, se desenrola e acaba uma greve efetivamente levada às últimas consequências quando os mineradores se insurgem contra a administração da mina. Não dá para ler enquanto come, vai embrulhar o estômago.
As Vinhas da Ira chegou a ser proibido em várias partes dos EUA, por ser considerado obsceno e subversivo. A associação de fazendeiros da Califórnia processou a Fox pela produção do filme dirigido por John ford que conta a história dos Joad.
Steinbeck tinha lado. Ele escreveu do ponto de vista dos migrantes, dos oprimidos. Isso foi visto como uma afronta ao sistema econômico e aos empregadores dos EUA.
Provavelmente, esses aspectos políticos expliquem a reação raivosa de vários setores, jornais e inclusive escritores estadunidenses, que em 1967 se posicionaram contrários à concessão do prêmio Nobel a John Steinbeck.
Essa semana, republiquei no Instagram @livroseoutros.site, o primeiro texto desse honorável blog que foi sobre o meu livro brasileiro do coração, Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Sem se ater aos aspectos linguísticos e estilísticos dos textos, a história geral é muito parecida.
São pessoas extremamente pobres, dispostas a mudar de lugar em busca de qualquer trabalho, que quando conseguem trabalho é em condições precárias ou quando se dão melhor veem os empregadores irem piorando as relações tentando cada vez mais tirar vantagem deles, usam o máximo de sua força produtiva para apenas sobreviver e sustentar os filhos.
Em comparação, os Joad têm mais recursos financeiros que Fabiano e Sinha Vitória. Eles têm um carro, alguns dólares, tem algum nível de conhecimento formal. Os Joad já tiveram sobrevivência digna quando eram meeiros em Oklahoma antes da grande depressão e do dust bowl. Fabiano, por sua vez, sempre viveu na miséria completa.
Assim como os Joad mais velhos são chamados apenas de mãe, pai, avó e avô, os membros mais novos da família de Fabiano não são designados no livro com nomes próprios. São apenas menino mais velho e menino mais novo. Até a maravilhosa cachorra Baleia tem nome e os filhos não.
O soldado amarelo é a exata caricatura dos policiais californianos: arrogantes, preconceituosos, puxa-saco de poderosos e valentões contra os humildes. Mesmo estando economicamente mais próximos dos migrantes/retirantes que dos donos de terra, não hesitam em usar sua força para demonstrar poder sobre quem está um pouco mais abaixo que eles.
Se fosse para classificar, em termos de brutalidade o troféu é de Germinal (1885). Em termos de escrita fluida: As Vinhas da Ira (1939). Mas como obra de arte, Vidas Secas (1938) leva de longe. As três são obras fundamentais da literatura dos países nos quais foram produzidos: França, Estados Unidos e Brasil. Todas imperdíveis e atualíssimas a despeito de quando foram lançadas e das minhas preferências.
STEINBECK, John. As Vinhas da Ira. Tradução: VINHAES, Herbert Caro e E. Rio de Janeiro: Record, 2012.
ZOLA, Emile. Germinal. Rio de Janeiro: Penguin, 2004.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record: São Paulo, 2002.
13/10/2022 at 14:06
Acabei de chegar na metade do livro agora.
Eles acabaram de entrar na Califórnia.
Realmente foi uma viagem sofrida essa deles.
Muita tragédia nesse caminho.
E a forma de contar essa história é muito legal. A parte “jornalística” conecta a gente perfeitamente com o contexto da época.
Depois eu vou querer ler Germinal também.
Depois. Daqui a uns meses.
Dou conta de ler dois livros assim em sequência não.
14/10/2022 at 22:43
Compreendo perfeitamente. Li Germinal há muito tempo.
Também não emendaria uma leitura na outra.
Aproveite a leitura! As Vinhas da Ira é muito bom.
Quando você terminar, a gente conversa sobre a temporada californiana.
21/10/2022 at 18:08
Terminei o livro essa madrugada…
Achei muito bom!
O livro foi bom, mas as coisas que aconteceram com ele foram horríveis.
Dá pra gente ver direitinho o que acontece quando os trabalhadores negociam o salário direto com o patrão, sem nenhuma regulação do Estado.
E eu fiquei curioso pra ver o filme.
Vou aproveitar que já tem o link aqui, e já deixar salvo pra assistir depois.
25/10/2022 at 10:58
Aquele finalzinho… o último parágrafo… gravou uma imagem mental bem perturbadora na minha cabeça para todo sempre. É um final muito bom para uma história desse nível.
E sim, fundamental e didático para entender relações de trabalho e remuneração modernos.