Capa de As Viagens de Gulliver.

“Miramo-nos um no outro durante algum tempo; por fim, tive a ousadia de estender a mão para o seu pescoço, com a tenção de acariciá-lo, assobiando e procedendo como os tratadores de cavalos ao lidarem com um animal estranho. Pareceu, contudo, o cavalo receber com desdém as minhas civilidades, sacudiu a cabeça e inclinou a fronte, erguendo delicadamente a pata dianteira direita para me afastar a mão. Em seguida, reclinou três ou quatro vezes, mas com tão diversas cadências que quase comecei a pensar que ele falasse entre si, nalgum idioma seu.

Enquanto nos achávamos destarte entretidos, outro cavalo chegou e dirigiu-se ao primeiro de forma sobremodo cerimoniosa, tocando cada qual, gentilmente, o casco dianteiro direito do outro, rinchando várias vezes, alternadamente, e modificando o som, que parecia quase articulado. Afastaram-se alguns passos, como se quisessem conferenciar, caminhando um a par do outro, para a frente e para trás, como pessoas que discutissem algum assunto de peso, mas voltando os olhos com frequência para mim, a fim de terem a certeza, para assim dizer, de que eu não fugira. Pasmei de ver tais atos e procedimentos em irracionais; e entre mim concluí que, se os habitantes desse país fossem dotados de um grau proporcionado de razão, deveriam ser o povo mais sábio da terra. Confortou-me por tanta maneira essa ideia que decidi continuar, até descobrir alguma casa ou aldeia, ou topar com algum dos nativos, deixando os dois cavalos a discutir como bem entendessem. Mas vendo o primeiro, um cavalo ruço rodado, que eu me escapava, nitriu de maneira tão expressiva, que supus entender o que ele queria dizer pelo que me voltei e avizinhei-me dele, à espera de suas novas ordens, disfarçando, porém, o melhor que pude, os meus receios, pois já começavam a afligir-me os possíveis resultados dessa aventura; o leitor acreditará facilmente que não me agradava muito a minha presente situação.”

SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver.

 

As Viagens de Gulliver é uma sátira maravilhosa do gênero literário muito difundido na Europa da Idade Moderna que foi a narração de viagens, que basicamente consistia em descrever e narrar minuciosamente os fatos e detalhes das expedições, principalmente marítimas, empreendidas do velho mundo para os demais continentes. O livro segue esse modelo de diário de viagens.

Muito falamos nesse site sobre a inabalável autoestima do homem branco europeu na literatura dos séculos XVIII e XIX e sobre como ele assume como verdade indiscutível a inaptidão de outros povos para a vida na esplêndida civilização criada por eles. Na verdade, embora tenhamos discutido mais detidamente essa crença de superioridade nos séculos XVIII e XIX, essa característica se aplica aos europeus desde que tiveram a consciência de haver terras habitadas por pessoas com outros estilos de organização social. Obviamente essa crença na própria magnificência foi agravada pela fase dos “descobrimentos”, iniciada em fins do século XV. Aliás, generalizando, ainda hoje há dúvidas de que eles tenham superado essa mentalidade.

É delicioso ler como Swift, em 1726, esbofeteou os costumes, instituições, leis, objetivos e tudo o que diz respeito àquela sociedade da qual fazia parte, com uma linguagem ferina parodiando os viajantes ávidos por extrair riquezas das “partes menos afortunadas” do globo. É revigorante perceber que o transe da audácia e da petulância europeia da época, aparentemente, não atingiu a toda a população do velho continente por igual.

Aparentemente, esse duradouro (ou eterno) surto coletivo de superioridade incomodou também a Jonathan Swift e ler As Viagens de Gulliver foi como lavar um pouco da alma. Essa obra deixou claro que mesmo mergulhados no caldo cultural do século XVIII, havia europeus que criticavam os excessos e incoerências de seu próprio povo. Jonathan Swift era um irlandês filho de ingleses, pertencente á alta casta da sociedade irlandesa.

Algumas das críticas feitas por Swift, estão também presentes em Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe, que já tem um texto aqui. Essa segunda obra que data da mesma época, 1719, também criticou a avidez europeia e a sede de aventuras e riquezas, entretanto, em termos de acidez, Swift ganha de lavada.

As Viagens de Gulliver é daquelas histórias que agradam a adultos e crianças, mas não pelos mesmos motivos. Enquanto as crianças vão gostar das aventuras, da descrição dos reinos e dos povos, das piadas mais pueris, principalmente as escatológicas, os adultos vão se deliciar com tudo o que agradará as crianças e mais os diálogos em que Gulliver discute questões políticas e filosóficas com seus anfitriões ou reflete sobre os costumes.

Por exemplo, no país dos Houyhnhnms, os cavalos por um momento tiveram certeza de sua superioridade, inclusive nas terras dos homens, quando ouviram Gulliver contar que lá tem pessoas disponíveis para escová-los e repor o feno quantas vezes fosse necessário. Impressão que durou até o visitante chegar à parte em que explica que eles, os cavalos, servem de montaria. Essa passagem é hilária.

Pôster do livro As Viagens de Gulliver.

Lemuel Gulliver é um médico de formação, com residência fixa e família na Inglaterra. Por opção, vive trabalhando embarcado em navios porque tem sede de aventura. Chegou aos reinos descritos no livro por acidentes náuticos, escapando de piratas ou escapando de uma terra imaginária para outra tentando desfazer as encrencas em que se metia.

Ao todo ele visita quatro terras imaginárias: Lilipute ( e sua vizinha Blefusco) habitada por homens muito pequenos que mediam cerca de seis polegadas; Brobdinag, terra de gigantes cerca de doze vezes maiores que ele; Laputa, a ilha flutuante (talvez o mais próximo a uma Terra plana que a imaginação de um autor brilhante pode criar); e Houyhnhnms, a terra dos cavalos em que os humanos são subalternos e são chamados de Yahoos.

A mais conhecida das quatro aventuras de Gulliver é certamente sua passagem por Lilipute. Essa já foi retratada em inúmeros desenhos animados, filmes, quadrinhos e a cena em que os liliputianos amarram Gulliver, que para eles era um gigante, com suas cordas, é a passagem mais emblemática do livro.

Lilipute era vizinha a outra ilha chamada Blefuscu. Anteriormente era tudo reino de Lilipute, mas uma séria desavença fez com que o povo se separasse em dois e fosse viver cada um em uma ilha, firmando a inimizade entre eles.

Pode parecer que o que será dito agora é um spoiler importante, mas não é. Acreditem esse capítulo, apesar de pequeno é cheio de sátiras e nuances e esse detalhe não afetará a leitura.

Os habitantes de Blefusco e os de Lulipute se separaram porque não conseguiram chegar a um consenso sobre como seria a melhor forma de quebrar ovos. Os liliputianos consideravam os outros praticamente selvagens porque eles se recusavam a obedecer ao método de quebrar as cascas dos ovos pela parte mais fina.  Desavença gerou um mal estar tão grave que, em Lilipute, quem quebrasse o ovo de qualquer forma era considerado um criminoso.

Então, delicadamente, Swift expõe outra pequena rusga entre os liliputianos. Essa outra divergência aparentemente besta, teria potencial para impor nova cisão entre aquele povo, dado o histórico que motivou a separação de Lilipute e Blefuscu: a sociedade era dividida entre os que usam sapato com salto alto e os que usam sapato sem salto. Esse acessório é um símbolo da divisão de classes, posto que os com salto são a nobreza e os sem salto são os demais. Marx só nasceria um século mais tarde (1818) e a Revolução Francesa seria dali à 63 anos (1789).

Capa de A Guerra do Pão com Manteiga

Um dos mais conhecidos escritores  de literatura infantil do mundo, Theodore Seuss Geisel, conhecido como Dr. Seuss, escreveu um livro chamado A Guerra do Pão com Manteiga, sobre um conflito sem sentido e desnecessário que escalou de forma a separar um povo.

Dr. Seuss (1904-1991) escreveu mais de quarenta livros infantis e era cartunista antes de ser escritor. Ele criou não só universos literários interessantes e atemporais como também uma identidade estética única, que foi transposta inclusive para as adaptações de suas obras para o audiovisual. Os personagens mais famosos no Brasil talvez sejam o Grinch, Horton e Lorax. Provavelmente eles voltarão a figurar por aqui. O Grinch inclusive já apareceu no texto sobre o livro Flores para Algernon.

Sobre A Guerra do Pão de Queijo, trata-se de uma poesia. Uma história toda rimada sobre um povo que se dividiu e que se odeiam a ponto de ter construído um muro entre eles. A cisão ocorreu por uma divergência sobre o pão com manteiga. Os Azuizinhos passavam a manteiga em cima do pão e os Laranjinhos passavam manteiga embaixo do pão.

A edição da Companhia das Letrinhas é maravilhosa porque traz as ilustrações originais, a tradução para o português e o texto original em inglês. Principalmente por se tratar de poesia, é fundamental ter o texto original, posto que a necessidade de a tradução além de refletir a história ter que também produzir rimas, pode por vezes alterar um pouco o que o autor pretendia falar, fora a possibilidade de pela leitura do texto como foi escrito pelo autor perceber a riqueza do texto naquela língua. Quais as rimas? Quais as expressões ou piadas escolhidas por Dr. Seuss que só fazem sentido em inglês?

“On the last day of summer, ten hours before fall. My grandfather took me out of the Wall/ For a While he stood silent. Then finaly he said, with a very sad shake, of his very old head. ‘As you know, on this side of the wall we are Yooks. On the far other side of this Wall, live the Zooks.’” (original)

“No último dia do verão, antes do outono chegar. Meu avô me convidou para ir ao Muro passear. Ele ficou em silêncio. Então finalmente disse, balançando a cabeça de um jeito muito triste: – Você sabe, deste lado do Muro somos nós, os Azuizinhos. Mas do outro lado do Muro vivem os Laranjinhos.” (p. 5 a 8)

A coisa fica mesmo fora de controle quando um dos laranjinhos resolve atacar o azulzinho que vigiava a fronteira. Até então o conflito era sem ataques somente a tensão entre os grupos.

A Guerra do Pão com Manteiga foi publicado pela primeira vez em 1984 e foi adaptado pelo próprio Dr. Seuss em 1989 em um curta de animação de mesmo nome. Tanto a publicação do livro quanto o desenho animado foram produzidos ainda na Guerra Fria. Essa história é, portanto, uma metáfora daquele conflito, que poderia ter se tornado uma catástrofe mundial se as duas principais potências envolvidas resolvessem se atacar (ao invés de se meter na vida de possíveis aliados ou inimigos periféricos).

Alguns podem dizer que o conflito da Guerra Fria não era injustificado, posto que a disputa pela superioridade entre capitalistas e socialistas puristas talvez nunca se esgote.

Por isso separamos outro exemplo, um bem óbvio, sobre a necessidade humana de ter razão e ter a última palavra, que quando escala pode transformar o ridículo em catástrofe.

O balde da discórdia

A cidade de Modena e a de Bolonha, bem antes da unificação do Estado italiano, tiveram um entrevero que culminou com a morte de duas mil pessoas. Esse episódio ocorrido em 1325 ficou conhecido como “A Guerra do Balde”.

Habitantes de Modena roubaram um balde de madeira que ficava em um poço de Bolonha. Essa afronta foi revidada por nada menos que 30.000 soldados de infantaria e 2500 cavaleiros bolonheses, que marcharam para Modena para recuperar o artefato.

Modena por sua vez, pega de surpresa, contra atacou com 5000 homens de infantaria e 2800 cavaleiros.

Para a surpresa geral, essa batalha durou cerca de dois meses e a segunda tropa, bem menos numerosa, ganhou a posse do balde.

Aí você pode pensar: esse balde devia ser especial, ser feito com materiais nobres ou representar a cidade de Bolonha tendo por seus habitantes valor afetivo inestimável. Mas não. Era simplesmente um balde de madeira. Hoje exposto na Torre do Sino do Duomo de Modena.

Para terminar, recomendamos o filme As Viagens de Gulliver, em que Gulliver é interpretado por Jack Black em uma versão bem engraçada da aventura em Lilipute. A crítica especializada não gostou muito desse filme, mas eu achei divertido para assistir com a minha filha. Só vale a pena frisar que o filme não comunga do espírito satírico do livro, os criadores claramente optaram pelo caminho do puro entretenimento infanto-juvenil.

 SWIFT, Jonathan. As Viagens de Gulliver. Tradução: BARBOSA, Rui. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

Dr. SEUSS. A Guerra do Pão com Manteiga. Tradução: BEBER, Bruna. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2018.

LETTERMAN, Rob. As Viagens de Gulliver. EUA: 20th Century Fox, 2010.