As Margens e o Ditado

“De fato, meu trabalho se funda na paciência. Narro à espera de que, de uma escrita bem plantada na tradição, surja algo que embaralhe as cartas para que a mulher abjeta e vil que sou encontre um modo de se fazer ouvir. Adoto com prazer técnicas de longa data, passei a vida aprendendo como e quando usá-las. Desde garota, adoro escrever romances de amor e traições, investigações perigosas, descobertas horrendas, adolescências transviadas, vidas desventuradas que depois encontram a sorte. É a minha adolescência de leitora que se transformou, continuamente, no longo e infeliz aprendizado de autora. Os gêneros literários são áreas seguras, plataformas sólidas. Coloco ali um tênue indício de história e me exercito com prazer tranquilo, prudente. Enquanto isso, só espero que meu cérebro se distraia, se desgarre, e que as outras eus fora das margens – são muitas – se compactem, segurem minha mão, comecem a me puxar com a escrita para onde tenho medo de ir, para onde me dói ir, um lugar do qual não tenho certeza de saber voltar caso me aventure longe demais. É o momento em que as regras aprendidas, aplicadas – cedem e a mão tira do pote não aquilo que serve, mas, justamente, o que vem, cada vez mais depressa, desequilibrando.”

Elena Ferrante. As margens e o ditado.

 

Elena Ferrante é uma escritora italiana, que prefere o anonimato. Esse nome é de uma persona criada por ela para publicar seus livros (todos sucesso de vendas). Existem especulações, inclusive jornalistas escarafunchando de forma bastante intrusiva, sobre quem seria a pessoa por trás da persona. Sinceramente, não me interessa. Inclusive porque acho lindo que ela prefira o anonimato e passei a achar mais lindo ainda a forma como esse livro foi escrito e como esse conteúdo foi apresentado pela primeira vez ao público.

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Universidade de Bologna

O professor Constantino Marmo do Centro Internazionale di Studi Umanistici Umberto Eco, da Universidade de Bologna, escreveu um e-mail à equipe de Elena Ferrante em que dizia que adoraria que ela pudesse ministrar cursos e fazer palestras, porque seria enriquecedor discutir com suas técnicas narrativas e poéticas ou qualquer outro tema que pudesse interessar a um público não especializado. No e-mail, ele dizia que a universidade promoveria a Eco Lectures em breve e que essa seria a situação perfeita para recebê-la.

Por que Elena Ferrante não pode dar palestras? Por sua opção pelo anonimato.

Quem disse que isso é impeditivo? Pessoas sem imaginação. Desnecessário dizer que Elena aceitou o convite.

Então preparou três palestras sobre seu processo de escrita e convidou a atriz Manuela Mandracchia para encená-las, assumindo o personagem Elena Ferrante. Além das palestras, o livro ainda traz um ensaio em que a autora faz reflexões sobre sua escrita, personagens femininos na literatura e outras coisas partindo da obra clássica A Divina Comédia, de Dante Alighieri (escrito e publicado nos anos 1304 a 1321).

Então é isso: As Margens e o Ditado é um livro composto por três conferências complementares e um ensaio.

É muito interessante, mas para ler e gostar dos três primeiros textos é fundamental que se esteja familiarizado com a obra de Elena Ferrante. Não terá o mesmo aproveitamento o leitor que começar por esse. Corre-se até o risco de não entender do que a escritora está falando. Isso porque Elena vai refletir sobre seu processo de escrita.

A Filha Perdida

Aqui já falamos sobre A Filha Perdida, A Amiga Genial e A história da menina perdida, os dois últimos são partes da Tetralogia Napolitana.

Na primeira palestra, A caneta e a pena, discute-se como começou a escrever e o conceito de margem apresentado no título. O desenvolvimento dessa margem remonta ao processo de alfabetização da escritora e dos métodos utilizados em sua infância que obrigavam a respeitar margens e linhas do caderno. Ela usa essas margens como metáfora para exemplificar como se impõem em sua escrita um certo limite do que se pode e do que não se pode fazer. Também refletirá sobre os autores homens que a influenciaram ao ponto de começar a escrever histórias tendo em sua mente uma voz masculina, essa tendência foi abandonada à medida que amadurecia (para nossa alegria e dela). Muitas reflexões sobre o machismo na escrita e entre escritores e  leitores. Sim. Elena vai questionar por que as mulheres leem autores variados enquanto grande parte dos leitores homens têm uma tendência a ler apenas outros homens.

Nos capítulos Água-marinha e Histórias, eu, vem a parte em que ela subverteu algumas das regras que vinha seguindo até então. A principal delas foi dar voz a personagens femininas sob a perspectiva feminina. Embora fosse obcecada por uma escrita realista, que ela julga nunca ter alcançado como gostaria.

Uma pausa para dizer que quando Elena Ferrante alcançar o realismo que almeja, todos os nossos traumas, segredos e tabus estarão à mostra, porque vamos combinar, as personagens femininas dela são verdadeiras ao extremo.

Voltando para As Margens e o Ditado, essa subversão vem sendo paulatina, e em Àgua-marinha ela usa um anel que a mãe tinha e a cor da pedra que adornava o anel para começar a falar dos seus primeiros livros publicados: Um amor incômodo; A filha perdida; Dias de abandono.Um amor incômodo - eBooks na Amazon.com.br

As margens permanecem quando ela escolhe escrever histórias com gênero bem definido. Tomemos por exemplo A Filha Perdida que é como um terror. Em que a personagem Leda, uma mulher cheia de remorsos e questões a resolver com suas filhas, pratica um ato que vai causar um transtorno de proporções inesperadas em uma família que passava férias no mesmo balneário que ela.

Dias de abandono, Elena Ferrante – Muquifo LiterárioVejam bem, o livro tem uma meta de se ater ao gênero literário escolhido, entretanto, Leda é uma mulher que tem pensamentos e faz escolhas inesperadas. E essas escolhas, boas ou ruins, só poderiam ser feitas por uma mulher. A personagem Leda e a jovem mãe que vai sofrer as consequências do ato aparentemente sem sentido da protagonista, vão questionar maternidade, casamento, família, desejos…

Então é sobre isso: impõem se algumas regras e rompe outras para criar personagens com sentimentos nem sempre louváveis aos olhos da sociedade e que são um turbilhão de pensamentos que podem nos passar pela cabeça, mas que não ousamos confessar.

E aí vem a rebeldia máxima no capítulo 3, quando ela vai explicar como foi o processo de escrita da Tetralogia Napolitana, que é a sua obra de maior sucesso.

Quando li aqueles quatro livros fiquei fascinada por Lenu, Lila e o modo como a autora as apresentava. Caramba! Parecia que tanto uma quanto a outra amiga foram inspiradas em mim e nas minhas amigas. Muito do que elas vivem eu vivi com alguém. As maldades, covardias, recalques, anseios, felicidades das duas ou eu já fiz ou fizeram comigo. Realidade sem filtros. Desnudamento do comportamento humano.

Elena ainda não teria escrito A vida mentirosa dos adultos, que eu ainda não li. Então aquela tetralogia era o ápice do realismo ao qual ela teria conseguido chegar até então. Difícil crer que ela ainda não esteja satisfeita com esse grau de honestidade.

Por hora temos disponíveis três adaptações para o  audiovisual de obras escritas por Elena Ferrante: A Amiga Genial (HBO); A Filha perdida (Netflix) e A Vida Mentirosa dos Adultos (Netflix).

Tetralogia Napolitana

Por fim, o ensaio A costela de Dante. Esse é um capítulo à parte. Para compreendê-lo não é obrigatório conhecer a obra da escritora. Será uma relfexão sobre personagens femininos construídos na literatura produzida por homens e como isso contribuiu para estereótipos limitantes. Para exemplificar ela vai usar a personagem Beatriz de A divina comédia, que tem aspectos heroicos e outros que reforçam a fêmea dócil e submissa.

Um Teto Todo Seu

Em um trecho em que Elena comenta sobre as mulheres que tinham sede de saber e, ainda que clandestinamente, consumiram cultura em tempos em que esse ato poderia lhes causar a vida, como na Idade Média por exemplo, me lembrei de Virginia Woolf, em Um teto todo seu, obra que tem vocação parecida com As margens e o ditado.

Já falei aqui sobre Um teto todo seu, que é também uma coletânea de textos de conferências ofertadas por Virginia Woolf, quando comentei a obra A filha perdida. O trecho a que me refiro é o que Virginia cria a personagem Judith Shakespeare, que seria uma irmã imaginária de William Shakespeare, considerado o maior dramaturgo de todos os tempos.

Judith seria uma irmã tão talentosa ou mais que William, mas a ela, por ser do sexo feminino, foi vedada a oportunidade de estudar mesmo sequer lhe era permitido abandonar as atividades domésticas para ler. Foi obrigada a se casar com o noivo escolhido pelo pai, e para não consumar o casamento, fugiu de casa em Stratford-upon-Avon rumo a Londres. Se o irmão, que amava teatro, começou sua carreira ficando na porta dos teatros guardando cavalos, depois conseguiu atuar até que se tornasse William Shakespeare, ficar na porta dos teatros somente trouxe grosserias e xingamentos para Judith. Que acabou vagando por Londres sozinha e desamparada até que encontrou um homem, de quem engravidou. O fim da suposta irmã de Shakespeare criado por Woolf é trágico e ela teria acabado enterrada em uma cova qualquer sem nunca ter tido a oportunidade de mostrar seu talento ao mundo. “Quem pode medir o fogo e a violência do coração do poeta quando capturado e enredado num corpo de mulher?” (Virginia Woolf)

É isso, escritoras mulheres devem ser lidas por todos, devem ter condições ideais de trabalho, devem ter sua genialidade reconhecida.

Viva as mulheres que ousam dar vazão aos seus sonhos e as que são tolhidas e reprimidas a ponto de engaveta-los para sempre. Coragem!

FERRANTE, Elena. As margens e o ditado. Tradução: LINO, Marcello. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2023.

WOOLF, Virgínia. Um Teto Todo Seu. Tradução: RIBEIRO, Vera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.