“O porto de Mariel foi aberto e Castro, depois de declarar que toda aquela gente era anti-social, afirmou o que queria exatamente: que toda essa escória fosse embora de Cuba. Imediatamente, começaram a aparecer cartazes, dizendo: VÃO EMBORA, A PLEBE DEVE IR EMBORA. O Partido e a Segurança do Estado organizaram uma manifestação voluntária, entre aspas, contra os refugiados que se encontravam na embaixada. O povo não teve outro jeito senão assistir àquela manifestação; muita gente foi com a intenção de ver se conseguia pular a cerca e entrar na embaixada; mas os manifestantes não podiam aproximar-se da cerca, pois havia uma fila tripla de policiais para protegê-la.
Começaram então a sair, do porto de Mariel, milhares de barcos lotados rumo aos Estados Unidos. No início, não era simplesmente quem quisesse sair que podia ir embora, e sim quem Fidel Castro quisesse deixar sair: os criminosos comuns, que cumpriam pena, agentes secretos para se infiltrarem em Miami, os doentes mentais. E tudo isso foi feito à custa dos cubanos no exílio, que mandaram
embarcações para buscar seus familiares. A maioria daquelas famílias em Miami gastou todas as economias para fretar barcos que trariam seus parentes; mas, quando atracavam em Mariel, Castro enchia as embarcações de marginais e loucos, os quais nem podiam levar parentes. Mesmo assim, milhares de pessoas honestas conseguiram fugir.”
Reinaldo Arenas. Antes que Anoiteça.
Reinaldo Arenas escreveu essa autobiografia no estilo sem censura. Esse autor cubano que nasceu em Holguín no ano de 1943 e faleceu, tirando a própria vida, em Nova York, no ano de 1990, deixou ao mundo essa obra como o último ato como escritor e como ativista político, seguido de uma carta de despedida em que culpa Fidel Castro pelos descaminhos de sua vida.
No fim dos dias, Reinaldo já estava muito debilitado por complicações com o vírus da AIDS.

Reinaldo Arenas
Reinaldo vai contar sua vida desde a infância em condições miseráveis na zona rural, até as conferências que deu pelo mundo a fora depois de sair da ilha e ir morar nos EUA.
Digamos que o autor tivesse algumas prioridades na vida: sexo, escrita e ativismo político. A ordem é bem essa aí, embora uma tenha influenciado na outra e elas não teriam o mesmo rumo separadas.
Estamos falando de um homossexual na década de 1960. O que por si só representaria dificuldades para a vida em sociedade, ainda mais na América Latina. Falando da Cuba sob o autoritarismo castrista, a homossexualidade de Reinaldo o colocava em risco de prisão e até de vida.
Ah, então Cuba perseguia homossexuais? Sim, e muito ferozmente. Assim como os perseguiram o autoritarismo militar no Brasil, Argentina e Uruguai, o regime ditatorial soviético e, ainda o governo democrático do Reino Unido, onde a homossexualidade foi considerada crime até 1967. Atualmente 68 países têm em suas legislações punições a cidadãos que praticam relações sexuais com parceiros do mesmo sexo, dentre eles 11 preveem pena de morte.
Nosso narrador não foi preso apenas por ser homossexual e por ter diversas vezes conseguido driblar a censura do governo cubano e publicar seus escritos no exterior, com a ajuda de amigos escritores que viviam na Europa. Reinaldo era bastante conhecido e traduzido fora da ilha. À medida que o regime endurecia, crescia a pressão para que ele explicasse como contrabandeava manuscritos para fora de Cuba.
Assim sob as acusações de ser gay e de ser um escritor antirrevolucionário, a vida de Reinaldo Arenas se tornou um inferno, desde a subida de Fidel Castro ao poder até 1980, quando ele finalmente consegue enganar a segurança e fugir de Cuba.
Esse livro é bem escrito, bastante gráfico, com muitas descrições de violência e de atos sexuais. Logo, melhor não oferecer a menores de 18 anos. Entre as narrações das cenas sexuais temos até incesto e zoofilia.
Apesar dos temas pesados, é um livro repleto de partes engraçadas, como o colega que morava na igreja e levava rapazes para se divertirem lá, além de tomar chá, vestido à rigor, no calor de Havana, evocando a rainha da Inglaterra. Também tem a história do buraco feito na parede para invadir um antigo convento, onde os artistas se encontravam para festas clandestinas e todas as outras festas clandestinas…
Esses alívios cômicos e outras partes mais leves fazem desse livro uma obra “tranquila” de ler.
Esse homem sofreu demais. Aff Maria!!! Foi preso, torturado, preso de novo, perseguido pela própria família, pelo Estado, pelos “amigos”. Ele não era exatamente um anjo de candura e deixa isso bem claro em sua narração da própria história, entretanto os abusos, principalmente os impetrados pelo Estado cubano, não têm justificativa. Uma vidinha de merda mesmo, com o perdão da palavra.
É a mesma queixa dos presos por ditaduras militares na América do Sul. Muitos foram presos, perseguidos, torturados, exilados ou mesmo assassinados sem que tivessem cometido crimes. E mesmo para os que eram da guerrilha armada e chegaram a cometer crimes por suas causas, não é possível tolerar a violência institucionalizada. Tortura é crime e, aplicada como política de Estado, se torna infinitamente mais grave. Aos criminosos, o rigor da lei. Não cabe aos governos de momento, alterar as regras a seu bel prazer.
Sobre a perseguição a escritores, o livro conta com detalhes o depoimento de “arrependimento” e delação do escritor Herberto Padilla, cuja prisão havia sido condenada em carta assinada por escritores latino-americanos como Vargas Llosa, Octávio Paz e Juan Rulfo.
Arenas cita também a assinatura de Gabriel García Márquez, mas é sabido que Gabo não teria assinado o documento, quem assinou por ele foi um amigo e ele pediu para que seu nome fosse retirado.
Aliás, se tem um escritor que Reinaldo Arenas morreu odiando, foi Gabriel García Márquez. Essa raiva é justificada. Estamos falando de um vencedor do Nobel, mundialmente conhecido, provavelmente o maior expoente da literatura latino-americana, que era amigo íntimo de Fidel Castro.
Provavelmente, no lugar de Arenas eu também nutriria sentimentos pouco amigáveis.
Enfim, não me cabe julgar Gabo nem Arenas. São dois escritores que me proporcionaram ótima experiência literária.
Discordo de Arenas quando ele acusa Gabo de ser um plagiador de William Faulkner. Já li os dois e eles não tem nada a ver em seus estilos literários.
Nesse site já falamos de O Som e a Fúria; Ninguém escreve ao Coronel, Cem anos de Solidão e O Amor nos tempos do cólera. Também dei uma entrevista sobre Cem anos de Solidão, que é o meu queridinho da vida.
Fiquei bastante curiosa para ler El Mundo Alucinante, que o próprio Reinaldo compara em qualidade com Cem Anos de Solidão.
Por falar nisso, Antes que Anoiteça foi um livro que eu cismei que tinha que ler e procurei por todo lado, por meses, até achar um exemplar na biblioteca central da Universidade de Brasília (UnB). Está esgotadíssimo, tendo sido publicado pela editora Record. Não sei se saiu de catálogo ou se poderá haver reimpressão.
Bibliotecas são lugares mágicos para bibliófilos. Muito melhor que natal.
Antes que Anoiteça foi transformado em filme, tendo sido Javier Barden indicado como melhor ator ao Oscar e ao Globo de Ouro. Reinaldo Arenas foi interpretado por Javier Barden. Também fazem parte da película: Johny Depp e Sean Penn. Assim como o livro, o filme também é difícil de encontrar. Parece que é possível alugar pela Apple TV, não testei. Custei a achar essa possibilidade.
Vamos escolher aqui uma passagem emocionante do livro, muito emocionante, e que me fez lembrar de Scarface, aquele filme muito doido estrelado por Al Pacino láaaaa nos anos 80. Um clássico sem dúvida.
Em 1980, entre abril e outubro, o governo Cubano abriu o Porto de Mariel para que cubanos interessados em deixar a ilha assim o fizessem.
Legal, né? Um momento em que era possível fazer escolhas. Só que não foi bem assim.
Mais de três mil barcos vindos dos EUA aportaram no Porto de Mariel para levar para a Flórida parentes de pessoas que já haviam imigrado. Estima-se que 125 mil cubanos saíram rumo aos EUA nesse êxodo.
O governo de Fidel, entendeu aquela fase, que se iniciou com pedidos de asilo em massa à embaixada peruana, como uma afronta e como uma oportunidade. A afronta era que filhos de Cuba quisessem deixar a ilha e a oportunidade foi a de tirar de Cuba os indesejáveis, os maus cubanos. Outra estimativa é a de que 25 mil criminosos e pessoas que estavam internadas em instituições psiquiátricas foram convidadas a deixar o país. Sabe quem mais poderia deixar Cuba? Os homossexuais. Bastava uma entrevista e a aprovação de uma comissão que deveria decidir se aquela pessoa era ou não de fato homossexual.
Foi nessa chance que Reinaldo Arenas conseguiu deixar para trás a repressão castrista. Claro que teve mais emoção do que simplesmente entrar num barco e partir, mas aí fica de surpresa para quem ler o livro.
Sabe quem mais chegou aos Estados Unidos da América desse jeito? Sim, Tony Montana, o Scarface (Al Pacino). Brian de Palma queria contar uma história inspirada em outro Scarface, no caso Al Capone, imigrante italiano que tocou o terror na época da lei seca (1920-1933). Então ajustou a história para um criminoso ambicioso e sem o menor traço de escrúpulos chegado em Miami em 1980, enxotado pelo governo de Cuba.
O filme começa contando essa história do Êxodo de Mariel e apresentando assim o contexto em que Tony Montana foi parar em Miami. Brian de Palma usa inclusive imagens reais dos barcos bastante precários abarrotados de gente saindo de Cuba e chegando aos EUA. Também um trecho de um discurso de Fidel Castro sobre maus cubanos. Al Capone vendia bebidas ilegalmente e Tony vendia outras drogas ilícitas para a realidade dos anos 80.
Scarface é um clássico do cinema e não é à toa. Se você ainda não viu, fica minha forte recomendação. Apenas vale destacar que sendo um filme sobre máfia, tráfico de drogas, um personagem completamente alucinado por poder, vai ser bem violento. Esse filme está disponível no Telecine e Star+, também pode ser alugado no Prime Vídeo e na Apple TV.
Recomendo também o filme Cuba e o Cameraman (Netflix) que é um documentário feito por um americano que frequentou a ilha de Cuba desde antes da Revolução até depois do falecimento de Fidel Castro em 2009. O documentário vai mostrar sobre a perspectiva de Jon Alpert, o cameraman, o que aconteceu com três famílias ao longo desse tempo. É muito interessante, legal demais a trajetória de Cuba, suas transformações sociais, políticas e inclusive das edificações. Bem impressionante. Esse documentário foi indicado ao Emmy por melhor documentário histórico e fez parte da seleção do Festival de Cinema de Veneza.
ARENAS, Reinaldo. Antes que Anoiteça. Tradução: CUBRIC, Iréne. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SCHNABEL, Julian. Before the Night Falls. EUA: 2000.
PALMA, Brian de. Scarface. EUA: Universal Pictures, 1983.
ALPERT, John. Cuba e o Cameraman. EUA e Cuba: Netflix: 2017.
Deixe um comentário