Capa do livro Anna Kariênina

“Logo depois do jantar, veio Kitty. Ela conhecia Anna Arcádievna, mas muito pouco, e nesse dia foi visitar a irmã não sem um certo temor de como a receberia aquela dama da sociedade petersburguesa, a quem todos tanto elogiavam. Mas gostou de Anna Arcádevna – logo se deu conta disso. Anna, pelo visto, encantou-se com sua beleza e juventude e, antes que Kitty pudesse perceber, já se encontrava sob a influência da Anna como também sentia-se tomada de paixão por ela, como são bem capazes as mocinhas de se apaixonar por mulheres mais velhas e casadas. Anna não parecia uma dama da sociedade, nem uma mãe de um menino de oito anos, mas antes uma jovem de vinte anos pela flexibilidade dos movimentos, pelo frescor e pela vivacidade que nunca abandonavam seu rosto e que se desprendiam ora do sorriso, ora do olhar, exceto pela expressão séria, por vezes triste, dos seus olhos, que impressionava e atraía Kitty. Sentia que Anna era totalmente natural e nada escondia, mas que havia nela um mundo diferente, mais elevado, de interesses complexos e poéticos, inacessíveis para Kitty.”

TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. P. 82.

 

Sem abrir, só passando os olhos sobre o bloco que é o livro Anna Kariênina, algumas ideias vêm à mente. A primeira delas é que uma obra desse tamanho certamente não renderá apenas uma postagem. Sendo assim, inaugura-se nesse site a categoria “Calhamaço”, que será evocada sempre que um livro desse vulto for analisado. Essa é, portanto, a primeira, mas não a última, postagem da série Anna Kariênina.

Segunda: concomitante a essa leitura, serão lidas outras coisas intercaladas, para que não fique em uma só história por tanto tempo.Então a dinâmica será assim: Anna Kariênina semana sim, semana não e, nos intervalos, outras obras.

Uma vez aberto o livro, o leitor é imediatamente fisgado pela primeira e maravilhosa frase introdutória:

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

À cada página virada cristaliza-se a conclusão que define minha sensação ao ler o livro: Queria eu ser capaz de escrever assim! Impecável! O estilo, as expressões, os personagens, tudo na medida certa. Magistral!

Tolstoi foi um dos maiores autores da época de ouro da literatura russa, juntamente com Dostoievsky, Gogol, Leskov, Pushkin e outros. Essa safra durou praticamente todo o século XIX até início do século XX. Esses autores eram aristocratas, em uma Rússia ainda pouco urbanizada, em que havia um abismo entre as classes sociais, mas já com dois estabelecidos centros urbanos: Moscou e São Petersburgo, sendo a segunda cidade mais cosmopolita e efervescente que a outra.

Anna Kariênina se passa principalmente nessas duas cidades e ainda no interior, na zona rural. Seus muitos personagens se dividem entre esses três cosmos. Moscou, cidade administrativa, mais conservadora, e São Petersburgo onde viviam as pessoas modernas, com sua mentalidade um pouco mais livre e grupos seletos.

 

Anna Karenina (nome que aparece em algumas traduções) filme de 1935.

Está bem caracterizado em Anna Kariênina o campo, os donos de terra que em sua maioria também faziam parte da aristocracia tsarista. Um dos aspectos de pano de fundo mais interessantes do livro são as relações dos aristocratas donos de terra e com os mujiques (camponeses). Além de Anna, o outro personagem principal, tão importante quanto ela, é Konstantin Dmítrich Lievin, que era justamente um desses agricultores.

Destas esferas os personagens mais emblemáticos, seriam a própria Anna Arcádievna Kariênina, moradora de São Petersburgo e ao que parece nascida em Moscou; Stiepan Arcádich Oblónski, irmão de Anna, aristocrata, funcionário público residente em Moscou e Konstantin Dmítrich Lievin, proprietário de terras.

Muitos dos homens da aristocracia russa eram nomeados para cargos públicos esse é o caso do marido de Anna Aleksei Kariênin e também do irmão Oblónski.

Oblónski muda de cargo no funcionalismo público ao longo do livro, tendo por duas vezes ido a Petersburgo agradecer o cargo para o qual fora recém indicado. Trata-se de um bon-vivant, casado, pai de quatro filhos, cheio de casos extraconjugais e esbanjador.

Kariênin, por sua vez, ocupa a mesma função pública há muito tempo, sendo muito respeitado em seu trabalho, era homem austero, culto e dedicado. Mantinha com sua esposa Anna uma relação de respeito e confiança. Anna enquanto casada com Kariênin gozava de um grau de liberdade que as mulheres moscovitas não dispunham, mas que não era estranho às petersburguesas.

Na primeira parte do livro, que apresenta os personagens principais, duas mulheres se destacam: Kitty e Anna.

Kitty, apelido de Ekatierina Aleksándrovna Cherbástikaia, era uma jovem filha de uma princesa e de um príncipe que estava em idade de casar-se. Residente em Moscou, Kitty tinha muitos pretendentes, por ser originária daquela família e por ser bela. A obra deixa claro que nos bailes moscovitas não lhe faltavam pedidos de dança e que ela era a moça mais aguardada. Kitty, sabia disso e se esforçava, com a ajuda da mãe, para a produção de seus vestidos e penteados altos, como a moda da época. Inicialmente ela tinha dois pretendentes, Aleksei Vrónski e Konstantin Lievin. Entre os dois, por influência da mãe, preferia se casar com Vrónski, oficial promissor do exército, bem relacionado na sociedade aristocrata e bonito. Já o pai preferia Lievin, que era antigo conhecido da família e tinha claras e boas intenções para com sua filha caçula. Tolstói faz questão de deixar registrado como eram perfeitos os dentes de Vrónski fazendo alusão a eles e à beleza do rapaz por diversas vezes.

O reinado de Kitty nos bailes de Moscou foi abalado pela chegada de Anna Kariênina, mais madura, casada, se vestia bem, mas sem o esforço empreendido por Kitty, conversava com naturalidade com as mais diversas personalidades e sobre variados assuntos. A beleza e o magnetismo sem esforço fazem com que Anna seja o centro das atenções. Inclusive Kitty é fisgada por suas qualidades desejando estar perto de Anna para aprender com ela, como uma referência feminina do que ela própria gostaria de ser.

O encanto de Kitty por Anna é quebrado quando Vrónski demonstra também ter sido enredado pela aura de frescor e beleza que desprende da senhora Kariênina e, o pior, ela parece corresponder.

Assim como Anna e Kitty, dezenas de outras personagens femininas cumprem esse papel de rainha do baile. Essas mulheres exercem atração irresistível e recebem olhares e admiração dominando os recintos em que adentram.

Capa do livro Senhora de José de Alencar

Recentemente, tratamos aqui de Aurélia Camargo, a riquíssima mulher da alta sociedade carioca da obra Senhora de José de Alencar. Claro que José de Alencar, por seu estilo de escrita desfiou um rosário muito mais vasto e menos sutil que Tolstói para descrever a magnanimidade de sua heroína.

Diferentemente de Anna, Aurélia era solteira quando figurava como rainha do baile, mas apesar de sua beleza inigualável, também exercia atração e interesse dos pretendentes, bem como a inveja de suas rivais, por sua beleza e fortuna.

Herdeira das posses de Lourenço Camargo, seu avô que já a conheceu na idade adulta, Aurélia passou de linda menina pobre e humilde, para poderosa dama da sociedade carioca, impecavelmente bem vestida e rica. A humildade que outrora guiava as atitudes da moça deram lugar a uma empáfia revanchista e meticulosa, que impulsionada por sua beleza física e recursos financeiros forjaram a personalidade cínica fundamental para o desenvolvimento de Senhora.

O livro retrata como os olhares se dirigiam a ela nos salões frequentados pela alta sociedade do Rio de Janeiro, na época capital do império. Aurélia era também inteligente e tinha faro para identificar bajuladores a quem tratava com ironia fina, o que parecia aumentar ainda mais a atração que exercia sobre os presentes.

As rainhas do baile não são exclusividade da ficção. Pelo menos é o que dá a entender, o podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo. É um competentíssimo relato em oito episódios do caso do assassinato da socialite Ângela Diniz.

Ao ouvir esse documentário e entrar no universo dos anos 1970/80, foi impossível não procurar as imagens e o tal único vídeo que sobrou para contar a história e observar por mim mesma o que era o poder de encantamento da mulher que ficou conhecida pela alcunha de “Pantera Mineira”. O vídeo mencionado é uma propaganda do cartão de crédito Passaporte e tem uma breve participação de Ângela aos dois minutos e quatro segundos.

Esse podcast reconstrói a narrativa acerca do crime que chocou o Brasil na véspera do réveillon de 1976 percorrendo a seguinte sequência: o crime em sí; o primeiro julgamento de Doca Street, o assassino; quem era Ângela quando morava em Belo Horizonte; crimes ocorridos envolvendo a vítima e como isso foi importante para torna-la culpada aos olhos da opinião pública da época; a fama de mulher fatal e como Ângela acabou por encarnar esse papel; quem foi Doca Street; o movimento feminista no brasil na década de 1980 e o segundo julgamento de Doca Street; o que representa esse caso para as discussões feministas e para as punições de feminicídios no Brasil.

Poster do podcast Praia dos Ossos

Brevemente, o caso é que uma mulher, Ângela Diniz, conhecida da alta sociedade, rica e muito bonita, foi assassinada com três tiros no rosto e um na nuca, por seu então namorado Doca Street. O casal passava um tempo na casa dela localizada na Praia dos Ossos, em Búzios/RJ. O réu fora julgado (ou seria mais preciso dizer que a vítima fora julgada?) em 1979, quando uma construção narrativa do advogado de defesa e da imprensa, validada pela mentalidade da época, ela foi taxada como a mulher muito sedutora e provocadora que levou o namorado à loucura a ponto de ele não ter alternativa, se não assassina-la. Doca, que já havia cumprido um pequeno tempo na prisão, teve uma condenação pífia, pois sua culpa foi atenuada pelo argumento sem amparo legal de que o assassino assim agiu por legítima defesa da honra.

Esse julgamento foi anulado e o novo juízo aconteceu em 1981. No episódio 7, o podcast, narrado por Branca Viana, explica o que tinha mudado no contexto social brasileiro e que propiciou uma reação feminista organizada e forte e que colaborou para alterar o destino de Doca Street, que terminou cumprindo pena de 15 anos de reclusão.

Entre os dois julgamentos, a lei da anistia trouxe de volta militantes feministas que foram fundamentais para reescrever a história desse crime, outra grande causa foi a comparação entre o caso Ângela Diniz e outros dois feminicídios. Essas outras mulheres tinham personalidades e modos de vida bem diferentes de Ângela. Heloisa Balesteiros e Maria Regina Santos Souza Rocha foram mulheres que levavam uma vida bem mais tolhida, sob as asas de seus maridos machistas e que foram igualmente assassinadas simplesmente por terem posto um fim aos relacionamentos. O podcast é muito bem sucedido na demonstração de que para ser considerada uma vítima, Ângela não poderia ser a “rainha do baile”. Enfim, todas as vítimas de feminicídio que são citadas nessa obra foram mortas por serem mulheres. Para ilustrar, cito uma frase dita por Branca Viana no material: “Pode parecer calculista, mas é uma realidade para quase todo movimento social. Não é toda tragédia que consegue mobilizar um movimento, porque sempre tem quem contra-argumente: ‘ah não… tava pedindo’. Os casos que se encaixam mais fácil nos padrões de moralidade comovem mais gente.”

Nesse tema em que comparamos Ângela Diniz à Kitty e Anna Kariênina, os episódios de Praia dos Ossos que permitem esse paralelo são o segundo, que conta como Ângela foi criada e moldada pela mãe, que ciente da beleza natural da filha, fez o possível para torna-la um bom partido, visto que para a instituição TFM (Tradicional Família Mineira) naquela época, era fundamental que as filhas mulheres fizessem bons casamentos. Ângela teria sido a “criança de parar a missa”. Para se ter uma ideia de como ela chamava atenção, isso foi registrado em colunas sociais nos jornais mineiros. Esforço comparável ao que a princesa Cherbástskaia fez em prol da filha Kitty, que por sua vez assumiu o papel.

Pelos depoimentos das amigas de Ângela e demais entrevistados pelo podcast tem-se a impressão de que ela tinha luz própria, irradiava sensualidade e beleza. Consciente de seu poder, a Pantera Mineira, fez dele seu ganha pão, sendo convidada para festas, fotografada para propagandas, entrevistada e atuante em programas de TV. Em uma comparação com personagens verídicas contemporâneas seria como Paris Hilton ou uma Kardashian, mas com o sex appeal de Jessica Rabbit. Ângela Diniz era uma It girl. Essa faceta é bem reconstituída no episódio 5, que também explica como funcionava a sociedade da qual Ângela fazia parte.

Nossas três protagonistas de parar o baile podem ser também representadas por músicas, cujas letras falam de mulheres fascinantes: Suddnly I See, de KT Tunstal, cabe mais à Anna Kariênina, como se as pessoas do círculo de convivência de Anna colocassem em palavras o impacto de sua presença.  Totalmente Demais, da banda Hanói Hanói, traduz melhor a impressão que tive de Ângela Diniz, da liberdade que ela procurava e que conquistou.

TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução: FIGUEIREDO, Rubens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Penguin, 2013.

VIANNA, Branca. Praia dos Ossos. Brasil: Rádio Novelo, 2020. Radionovelo.com.br/praiadosossos/