Capa do livro Anna Kariênina

“– Ah, com o Buzulúkov, houve um caso… maravilhoso! Exclamou Petríski. – Veja, ele é louco por bailes e não perde um só baile na corte. Foi a um grande baile com um capacete novo. Você já viu os novos capacetes? Muito bonitos, mais leves. Lá estava ele… Não, escute só.

 – Está certo, estou ouvindo – respondeu Vrónski, esfregando-se com uma toalha felpuda.

– Passa uma grande princesa com um embaixador qualquer e, por azar, começa a conversar sobre os novos capacetes. A grande princesa quer lhe mostrar o capacete novo… Olham em volta e lá está plantado o nosso caro amigo. (Petríski imitou a posição do outro com o capacete na mão.) A grande princesa pede que dê a ela o capacete… e ele não dá. Como pode ser? Em volta, piscam para ele, ascenam com a cabeça, franzem o rosto. Dê. Não dá. Fica imóvel. Imagine só…E então o tal… não sei o nome… já quer tomar-lhe a força o capacete das mãos…Ele não dá!… O homem o arranca e entrega à grande princesa. “Veja esse é o modelo novo” diz a grande princesa. Ela vira o capacete e, imagine só, lá de dentro, pum! Cai uma pera, e balas, duas libras de balas!… Ele as havia guardado, o nosso amigo!

Vrónski rolou de rir. E ainda muito depois, já falando de outro assunto, quando lembrava o capacete, se contorcia em suas risadas vigorosas, que deixavam à mostra os dentes perfeitos e fortes.”

TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. p. 123.

 

República Muvuca, Ouro Preto/MG.

Em muitas partes do mundo, jovens se juntam para alugar casas e morar juntos. O intuito além de baratear o custo do aluguel dividindo entre os moradores é se fazerem companhia e se tornarem amigos. Os moradores de uma república, como são popularmente conhecidas essas casas, frequentemente se tornam melhores amigos para a vida toda. É uma convivência tão intensa, que tem o potencial de formar famílias. É claro que esse final feliz não é regra, minha própria experiência mostrou que nem todos os colegas que dividiram casa comigo estão entre minhas companhias preferidas hoje em dia. Entretanto, felizmente, posso afirmar que os casos de insucesso são bastante isolados.

Em Anna Kariênina, Tolstói constrói a amizade entre Vrónski e seus amigos do exército a partir desse tipo de fraternidade. Eles não se juntaram por afinidades de personalidade ou interesses comuns, isso ocorreu porque eram jovens oficiais do exército russo.

Vrónski tinha uma condição de vida confortável, possuía um apartamento em São Petersburgo e sua família tinha imóveis em Moscou e no interior da Rússia. Entretanto, ele que não era excessivamente apegado a bens materiais, o que fica bem claro em sua generosidade para com o irmão, por exemplo, encontrou em colegas do ofício pessoas com quem dividir a vida. Menos por falta de dinheiro e mais por companhia. E eles se metem em episódios hilários, desses que rendem bons casos para conversa de bar pelo resto da vida.

Em um desses momentos Petrítski, o melhor amigo de Vrónsky, e Kiédrov, príncipe recém admitido no exército, perseguem uma mulher em uma sege pelas ruas da cidade porque a acharam muito bonita e lhes pareceu que ela sorrira para eles. Coincidentemente a mulher entrou no mesmo prédio em que eles entrariam para um jantar, porém ela subiu para o apartamento de cima. Petríski e Kiédrov fizeram o que sempre faziam em festas: beberam muito. Na saída, ao invés de irem embora, subiram ao andar de cima com uma carta em que declaravam seu amor àquela mulher misteriosa, dizendo que poriam fim às suas próprias vidas se ela os rejeitasse. Eis que surgiu à porta o marido. Sim, ela era casada com um Conselheiro Titular.

Uma possível saída nesses casos era o duelo, que aparece como opção em outros pontos para outros casos do livro. Além do mais, o Conselheiro prestaria queixa ao regimento daqueles oficiais bêbados por importunação e perseguição a sua esposa grávida. Nesse ponto, Vrónski que era superior hierarquicamente, se dirigiu à casa do tal Conselheiro e pôs-se a intervir em favor dos amigos.

Aliás, Vrósnki é das melhores personalidades do livro. Perfeito? Claro que não. Tolstói é um criador de personagens possíveis. Um dos pontos mais instigantes e bem escritos é o que Vrónski divaga sobre sua situação no Exército, suas ambições e seu amor por Anna. É quando ele se dá conta do que deve abrir mão por esse amor, o quão envolvido ele está para voltar atrás e se ele quer voltar atrás.*

Mas retornando aos amigos. É muito interessante o círculo de amigos em que Vrónski se insere. Não só os do exército, mas também os aristocratas. O livro  mostra que a alta sociedade petersburguesa era um grupo limitado. Todos se conheciam pelo menos de vista. Dentro desse grupo existiam outros subgrupos ainda mais exclusivos e de características peculiares. Algumas pessoas tinham bom trânsito entre eles. Anna, por sua personalidade vivaz e boa desenvoltura social, era uma delas. Mas a maioria dos personagens pertencia a um grupelho e não se misturava com os demais. Tolstói evidencia que panelas eram essas e os pré-requisitos para frequentá-las. Seriam basicamente três: uma dos aristocratas tradicionalistas, que viviam à moda antiga com suas regras e ritos, representado pela Condessa Lidia Ivanovna; o segundo o dos funcionários públicos de alto escalão e intelectuais, representado pelo próprio marido de Anna, Aleksei Alekssandróvich Karienin e o terceiro, do qual fazia parte o conde Vrónski, era o dos boêmios e modernos, pessoas ricas que viviam com mais liberdade e pouca responsabilidade. Inclusive há um trecho em que Anna conclui que deveria se aproximar mais do terceiro subgrupo para se aproximar de Vrónski e nesse raciocínio ela pensa que isso lhe custaria caro em termos financeiros, posto que esse grupo, por ser mais esbanjador, requeria roupas mais variadas e exclusivas. Antes de conhecer Aleksei Vrónski ela preferia o grupo dos intelectuais, nele se sentia mais à vontade, apesar de ter grande carinho pela Condessa Lidia Ivanovna.

Assim como os amigos do Conde Aleksei Kirílovich Vrónski, outros personagens da ficção tiveram irmãos de jornada. Os próximos exemplos se inserem no ambiente acadêmico, universitário.

Outro de meus livros preferidos, que é O Som e a Fúria, de William Faulkner, relata a amizade despretensiosa entre amigos. Isso ocorre no capítulo narrado por Quentin, o Compson que estudou em Harvard.

Naquele capítulo, o personagem conta como era o dormitório, a rotina no campus, as peculiaridades de alguns colegas e esses momentos com os outros estudantes tornam aquele dia agoniante na vida de Quentin Compson mais palatável. São como o alívio, o escape de toda aquela desgraça. O que na verdade se assemelha muito à um dos efeitos dos amigos na nossas vidas, aliviar a carga. Nós nos predispomos a segurar o piano junto com eles e eles dividem conosco as alegrias e fardos. Amigos suavizam a existência.

A narrativa de Quentin se dá por fluxo de consciência, tem idas e vindas a fatos do passado e do presente do personagem. Ele é o personagem mais melancólico da família Compson. Sofria de depressão.

O leitor acompanha como foi arrumar para Quentin o processo de arrumar suas coisas para deixar o campus rumo a sua casa no sul dos Estados Unidos no início das férias e depois como foi arrumar novamente as coisas para voltar à universidade. O capítulo se passa no dia do regresso e é repleto de pequenas memórias divertidas ou dolorosas. Um dos principais acontecimentos daquele dia, é o que Quentin tenta ajudar uma menina imigrante a encontrar sua família e acaba preso por isso, acusado de raptá-la. Os amigos estavam o aguardando para retornar à Boston, quando ele passou algemado. Todos o acompanharam e de certa forma tentaram ajudar. Na verdade, não dá para saber se suas intervenções frente ao Juiz de Paz eram ajuda ou troça. Passado o incidente se puseram a fazer piadas sobre aquela situação absurda, fazendo o próprio Quentin se divertir.

Cartaz da série Gilmore Girls

Uma série que já apareceu por aqui e que deve aparecer outras tantas vezes, é Gilmore Girls. Na trama o sonho de uma das personagens principais, Rory Gilmore, é cursar Harvard, até que os acontecimentos da vidam, sobretudo, a pressão do avô a fazem optar por frequentar Yale. Em New Haven, Rory vai morar em um dormitório estudantil, com outras três calouras, entre elas Paris, que havia estudado com ela no ensino médio. Paris e Rory tem uma parceria complexa, mas cheia de cumplicidade, com uma tomando as dores da outra a todo tempo. Apesar de Rory e Pais serem maravilhosas e engraçadas juntas, nessa série o grupo que mais se assemelha ao tipo de amizade do qual estamos tratando é o de Logan Huntzberger: Life and Death Brigade (Brigada de Vida e Morte, em tradução livre).

Cena de Gilmore Girls: In Omnia Paratus.

São rapazes ricos, mimados, com defeitos e arrogâncias, mas isso não é o principal sobre eles. O mais importante é que são amigos que estão sempre fazendo coisas loucas e se ajudando, embora não se saiba ao certo se estavam fazendo piadas ou sendo sérios defensores. Os amigos divertidíssimos de Logan são como Spoad e Shevre para Quentin, ou como Vrónski para Petríski e Kiédrov.

O lema da brigada era a expressão em latim In Omnia Paratus, que quer dizer preparado para tudo.  Trata-se de uma fraternidade secreta de Yale e é um universo de pessoas extremamente ricas, que por exemplo faz uma festa inspirada nos safaris ingleses pela África do século XIX, que culmina com uma preparação de gala para saltarem de uma altura de seis andares, protegidos por cabos de aço e munidos de guarda-chuvas. Esse episódio é bem engraçado e certamente custou caro aos personagens, no sentido financeiro. Dentro da Life and Death Brigade, os principais amigos de Logan são Finn, Colin e Firth. As conversas entre os quatro são muito divertidas, hilariantes. Em uma das cenas da quinta temporada, Dean, então namorado de Rory, termina o relacionamento com ela, e aqueles quatro amigos, improvisam uma festa paralela, muito mais divertida que a festa principal que acontecia na casa dos avós Gilmore, para animá-la.

Pôster da animação Universidade Monstros

Não poderia deixar de incluir nesse texto a cena da animação Universidade Monstros, em que Mike Wazowski encontra seu colega de quarto Randall Boggs no dormitório onde morariam aquele semestre. Universidade Monstros é a excelente animação que deu continuidade à igualmente excelente Monstros S.A., ambos dos estúdios Pixar.

Na mencionada cena, Mike está nervoso para o seu primeiro contato com o colega de quarto. Ele passa pelo corredor lotado de estudantes e para em frente à porta do quarto, respira fundo e diz: “O meu melhor amigo da minha vida, está atrás dessa porta!”. Mal sabe ele como seria o desfecho da amizade com Randall Boggs. Essa cena traduz a expectativa geral de um estudante em seu primeiro dia de república/ dormitório.

Por essa experiência, pelos anos maravilhosos e pelos amigos de uma vida, agradeço às meninas da República Muvuca, de Ouro Preto, aos amigos mais que queridos que moraram comigo em Mariana e em Belo Horizonte. E a outros tantos que nunca dividiram comigo o mesmo CEP, mas foram frequentadores assíduos. E é claro também agradeço aos amigos de Viçosa que chegaram antes da aventura universitária, e aos de Uberlândia e Brasília, que vieram depois. Milhões de casos inesquecíveis e, por vezes inacreditáveis, essas companhias renderam e rendem.

* Eleger uma passagem como mais bem escrita em Anna Kariênina é uma audácia petulante e uma covardia com as outras mais de oitocentas páginas. Que livro bem escrito é esse? Impecável.

Anna Kariênina (Parte 1)

Anna Kariênina (Parte 2)

TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução: FIGUEIREDO, Rubens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

FAULKNER, William. O Som e a Fúria. Tradução: BRITTO, Paulo Henriques. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SHERMAN-PALADINO, Amy & PALADINO, Daniel. Gilmore Girls. EUA: Warner Bros, 2000 a 2007.

SCANLON, Dan. Universidade Monstros. EUA: Pixar, 2013.