
Amar, Verbo intransitivo: Idílio
“O automóvel foi levar as crianças e Marina, a pretinha. Três quartos de hora depois a bandeira partia. Porém até que os verdes vençam as derradeiras audácias do urbanismo, temos tempo farto pra umas considerações. Todos subiram contentes pro automóvel, satisfeitíssimos. Mas vejo um estirão comprido entre a alegria de Fräulein e a desses brasileiros. Fräulein estava alegre porque ia se retemperar ao contacto da terra inculta, gozar um pouco de ar virgem, viver a natureza. Esses brasileiros estavam alegres porque davam um passeio de automóvel e principalmente porque assim ocupavam o dia todo, graças a Deus! Sem automóvel e estradas boas jamais conheceriam a Tijuca. Fräulein iria mesmo marchando e de pé-no-chão. Esses brasileiros iam levar o corpo se gastar. Fräulein ia levar o corpo ganhar. O corpo desses brasileiros é fechado, o corpo de Fräulein é aberto. Ela se igualava às coisas de terra, eles se resguardavam indiferentes. Resultado: Fräulein se confundia com a natureza. Esses brasileiros sofreriam o gosto orgulhoso e infecundo da exceção. Ponhamos Carlos de lado, o caso dele é mais particular. Está contente porque Fräulein está contente. O alegra estar junto da amante, só isso. E amor satisfeito, entenda-se, senão dava em poeta brasileiro. Carlos desconhece a Tijuca. Depois do passeio continuará desconhecendo a Tijuca. Em última análise pra Carlos como pra esses moços brasileiros em geral: A Tijuca só é passeável com mulheres. Se não: pernada besta. Ora pinhões! ver árvores e terras… Se ao menos
fossem minhas… cafezal… Fräulein parecia uma criança. Criança brasileira? Não, criança alemã. Diante da natureza, eu já falei, o alemão também tem as suas admirações. Dava risadas, se virava pra olhar mais uma vez as vistas que ficavam atrás, voltava temendo perder as novas que passavam. Mil olhos tivesse, gozaria por mil olhos mil vezes mais. Aliás mesmo que fosse feia a paisagem, gozaria da mesma forma. Era o contacto da natureza que sensualizava Fräulein, mais que o gozo das belezas naturais.”
ANDRADE, Mário. Amar, Verbo Intransitivo.
Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. É um marco e tanto.
Na Europa produzia-se arte de vanguarda de vento em popa, desde o século XIX. Na década de 20 do século XX, o entreguerras foi uma safra particularmente produtiva e criativa. A vanguarda europeia subvertera a arte clássica criando formas de expressão como impressionismo, surrealismo, futurismo, cubismo e o dadaísmo.
Alguns artistas paulistanos, que eram abastados o suficiente para entrar em contato com as novas formas de produzir arte, se juntaram e decidiram criar arte genuinamente brasileira, fosse pintura, literatura, teatro, o que fosse. Deveria ser inovador, inspirado mas não copiado. Autêntico.
Alguns nomes importantes nessa safra de modernistas foram: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Anita Malfatti.
Eles não foram bem aceitos pelos artistas mais conservadores época. Monteiro Lobato achou tudo de péssimo gosto. Um acinte.
Mas apesar das críticas, a arte modernista transcendeu o tempo e se tornou tão importante quanto a de seus críticos.
A Semana de Arte Moderna ocorreu dos dias 13 a 18 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo e foi um grande sucesso.
Arrisco dizer que nosso autor de hoje, Mário de Andrade, escreveu o romance mais importante em termos de estética, reconhecimento e tiragem entre todos os escritores de prosa daquele grupo: Macunaíma – O Herói sem Nenhum Caráter. Deve ser por isso que Macunaíma está sendo a obra mais comentada por sites e canais de Youtube à fora. Por isso, vamos continuar com Mário de Andrade, mas por outro livro: Amar, Verbo Intransitivo. Esse foi publicado apenas um ano antes de Macunaíma, em 1927.
Quando era estudante de ensino médio, Amar, Verbo Intransitivo fez parte da bibliografia literária de um dos vestibulares que prestei. Lembro de ter detestado a leitura, mas ter adorado as explicações da minha professora de literatura, que aliás era maravilhosa. Alô, Beatriz!.
Gostei da história contada por ela, com a contextualização e todos os detalhes históricos.
Então agora com os cem anos da semana de arte moderna, da qual o autor fez parte, decidi reler e ver que impressões essa obra deixaria nessa leitora mais experiente e adorei. Adorei o livro.
Elza é uma alemã que imigrou para o Brasil fugindo da miséria que seguiu à derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial. Esse período trouxe para terras americanas muitos imigrantes de várias nacionalidades.

Retrato de Mário de Andrade, por Tarsila do Amaral, 1922.
Então, ela é contratada pelo pai de um jovem de 16 anos chamado Carlos para lhe ensinar a amar. Isso incluía a iniciação sexual, mas não era só isso. Tinha um conteúdo programático com tópicos como o ciúme, se preocupar com a outra pessoa, lidar com a separação.
Carlos não sabia que ela era uma “professora”. O adolescente viveu a relação como se uma relação amorosa de fato fosse.
O pai era um homem rico e prático, que não queria que o filho fosse iniciado nas artes amorosas/sexuais por uma prostituta. Queria ter o controle desse aspecto da vida do filho.
Elza já prestava esse tipo serviço. Tinha convicção da nobreza de sua profissão. Não era simplesmente uma vendedora de sexo, considerava-se uma categoria altamente especializada. Ela era prática. Muito mais prática que o pai de Carlos.
Contraditoriamente, Elza alimentava um sonho romântico de voltar à Alemanha e se casar com um belo espécime da raça ariana.
O nazismo ainda não havia ascendido na Alemanha, mas o fim da primeira guerra com a derrota do bloco a que pertenciam os germânicos forjou ideias nacionalistas exacerbadas que estão bem demonstrados nos pensamentos da personagem Elza. Ela inclusive se achava muito superior aos brasileiros. A todos os brasileiros, mesmo os que a contrataram.
A partir de agora, nos referiremos a Elza como Fräulein, que quer dizer senhorita em alemão e é como ela exigia ser chamada.
Como Fräulein entrou na vida daquela família sem despertar suspeitas sobre suas reais funções? Primeiro o pai fez a sacanagem de não cumprir sua parte no acordo e não foi honesto nem com sua esposa. Fräulein chegou como uma preceptora/governanta que organizaria as tarefas da casa e ensinaria piano e alemão aos quatro filhos do casal (três meninas e um menino). Aliás, isso ela fez lindamente.
A escrita é linda. Coloquial e poética em ótima medida. O que faz a leitura mais agradável e tranquila que a de outros clássicos, mas nem por isso de pior qualidade. Achei um livro delicioso de ler.
Além do “romance” o livro traz outras camadas como o tema dos imigrantes e seus sentimentos em relação aos brasileiros; os brasileiros e seus sentimentos em relação aos imigrantes de etnias advindas da Ásia e Europa. Os negros foram pouco ou quase nada representados. Esse não era o foco. Ficou muito claro que o universo que interessava ao autor era o dos imigrantes não pretos e suas relações com a alta sociedade paulistana.
A narrativa dá a entender que contratar mulheres para deflorar jovens de famílias ricas era um costume. Não sei dizer exatamente se o procedimento era esse, mas certamente não era incomum que esses jovens com hormônios em ebulição tivessem sua iniciação sexual com empregadas domésticas. Vejamos um trecho que ilustra isso:
“Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas. É bem desagradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fräulein dele na imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquer familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso. Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos atualmente 51 heroínas pra um só idílio.”

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão
Outra obra, que já foi citada aqui por duas vezes, e que também mostra esse tipo de comportamento, embora se passe no Rio de Janeiro, é A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Das Dores, empregada da casa da personagem título, fala claramente de como vinha “aliviando os anseios” do jovem filho de Eurídice em uma trecho que demonstra que já teria passado por isso em outras residências. É uma parte particularmente incômoda da obra, triste mesmo.
Amar, Verbo Intransitivo é narrado em terceira pessoa, mas o narrador acompanha bem de perto a personagem Fräulein e constrói os pensamentos em uma narração que lê a mente dela. Isso nos permite perceber os preconceitos, a objetividade e como a inflexível e prática governanta se apaixonou por Carlos, mesmo contra seus princípios. Ela se tornou uma mistura do mordomo da propaganda de Tang e Brigite, personagem da animação Trolls, da DreamWorks.

Jaime, o mordomo da peça publicitária de Tang.
O mordomo da mencionada propaganda é um empregado que se considera superior ao jovem patrão e por isso o odeia secretamente. Naquele filme comercial de trinta segundos em que a senhora pede o suco para o pequeno e o mordomo Jaime pensa consigo “Ele não merece…” enquanto entrega a bebida ao rapaz, a publicidade conseguiu transmitir esse sentimento de forma divertida e multicamadas.
Brigite, por sua vez, é a arrumadeira do palácio Bergen que é secretamente apaixonada pelo rei. Os bergens são uma espécie de criatura que só pode ser feliz enquanto come um troll. Eles são inicialmente os vilões da história. Até que a captura de alguns trolls pela chefe de cozinha bergen vai fazer com que a rainha dos trolls, Poppy, saia com o mau humorado Tronco, em uma saga para salvar os amigos. Nessa aventura eles conheceram a bergen Brigite, que é uma camareira, sensível e sofredora porque é apaixonada pelo rei do povo bergen. Então os trolls que são especialistas em felicidade vão ajudá-la a conquistá-lo.
Os trolls são personagens bem diversos e sensacionais. Tem uma pequenina que tem força descomunal, um que defeca cupcakes quando fica nervoso, outro que solta puns de gliter prateado, o namastê, a DJ, as fashionistas… bem variados mesmo!
Fräulein é o mordomo do Tang batido no liquidificador com a Brigite dos trolls: desprezo e amor conjugados em um só personagem.
Nem tudo são flores para os modernistas da semana de 1922. Apenas brancos, em sua maioria homens, todos ricos, todos paulistas e tudo combinado para explodir naquela semana? Será que não havia arte moderna brasileira produzida antes? Será que era tudo no Estado de São Paulo?
O Podcast 451Mz fez um episódio específico para tratar desse tema e convidou para tal dois pesquisadores do modernismo brasileiro para discutir como a turma da semana de arte moderna (ou o modernismo) recepcionava os artistas, que também partiam de preceitos modernos em seus trabalhos, mas eram de outros estados, outras etnias, outras contas bancárias. Um exemplo: Lima Barreto. Foram convidados para essa conversa o historiador Rafael Cardoso e o crítico literário Eduardo Sterzi.
O podcast não desmerece fevereiro de 1922. O objetivo é questionar cadê o resto. Não é possível que num país desse tamanho e com esse tanto de gente apenas algumas dezenas de artistas de um único estado produzissem toda a arte inovadora. Inclusive o próprio Mário de Andrade questionou tanto esse aspecto quanto a real importância do movimento do qual fez parte.
Também há uma conversa interessante sobre a continuidade e outras levas artísticas que beberam da antropofagia como a Tropicália e os poetas do concretismo.
Para encerrar, deixo aqui a indicação de um vídeo do canal do Youtube “Vá ler um livro” que fala sobre Mário de Andrade sob uma perspectiva menos usual, pelo menos fora do ambiente acadêmico. É o Mário de Andrade homossexual, menos branco que seus colegas, que sofreu bulling e rompeu de vez com o ex amigo Oswald de Andrade (que vamos combinar, era meio chatola). Essa imagem de Mário de Andrade foi melhor compreendida pela historiografia literária a partir da divulgação, em 2015, de cartas em que ele se assume como homossexual. Parece fofoca? Talvez. Mas é importante para entender o movimento modernista em toda sua genialidade e limitações.
ANDRADE, Mário. Amar, Verbo Intransitivo: Idílio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
MITCHELL, Mike & DOHRN, Walt. Trolls. EUA: DreamWorks, 2016
BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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