“Sentada na cadeira de rodas, ela olhava toda aquela gente ao seu redor. Não estava acostumada a ser o centro das atenções. Tambores, pandeiros, cantos, danças, farta comida, cheiro de rosas no ar… Suas pernas já não aguentavam o peso do corpo, seus braços não tinham mais a famosa firmeza e o coração ah, o coração! este acelerava ante a visão de tanta brancura. Seus olhos também já não eram os mesmos, mas registravam muito bem o brilho das roupas imaculadas que a circundavam naquele dia de festa. Aqueles moços e moças que ali estavam, certamente, nunca tinham visto uma barrela aquela água com cinzas de madeira que se colocava na rouparia para branqueá-la. Agora é tudo na máquina, batido com sabão em pó e ponto final.”
Eliana Alves Cruz. Água de Barrela.
Em 2015, a jornalista Eliana Alves Cruz venceu o prêmio Oliveira Silveira de literatura promovido pela Fundação Cultural Palmares com a obra: Água de Barrela.
Nem sei por onde começar. É uma história de décadas, de mais de um século, que eu li sem saber do que se tratava. Os critérios para escolher a próxima leitura variam muito. Nesse caso, ganhar um prêmio é um indício de que a obra tem o que oferecer, outra pista para chegar a Água de Barrela foi que o livro também figura naquela famosa lista da Folha de São Paulo dos duzentos livros para entender o Brasil. Tem uma postagem aqui sobre isso.
Caramba, que tempo de leitura bem gasto. Temos aqui um excelente exemplar da literatura nacional.
É uma trama fundada em fatos reais, preenchida com a imaginação da autora que fez um trabalho de pesquisa muito esmiuçado.
Eliana escreveu sobre a própria família, desde 1849, quando foram trazidos da África seus primeiros ascendentes a pisar em solo brasileiro. E tem fotos!!!
Isso por si só já é um luxo, pois uma das mágoas da população negra brasileira é a dificuldade de rastrear suas raízes. Eliana teve a sorte de poder refazer esse percurso. Isso porque seus antepassados: Akin e Ewa, foram sequestrados e trazidos para serem escravizados no Brasil já na segunda metade do século XIX. Inclusive a vinda dos dois foi ilegal, pois já estava vigente a lei Eusébio de Queiroz, que proibia a “importação” de pessoas nascidas na África. Como é de conhecimento geral, essa lei até dificultou um pouco, porém não impediu traficantes de continuarem trazendo pessoas livres para serem escravizadas por aqui.
A maior parte das informações vieram de uma tia que tinha diagnóstico de esquizofrenia paranóide e que beirava os cem anos de idade quando Eliana percebeu que ela poderia contar muito do passado, com riqueza de detalhes. A autora estudou sobre a condição de esquizofrênica da tia, sobre como abordar pessoas com esse diagnóstico. Dessa forma, ela conseguiu acessar as memórias da tia Anolina, Nunu, que sempre esteve ali, estigmatizada por uma condição mental, e que sabia de tudo. Em seguida, Eliana foi atrás de documentos históricos que confirmassem os dados revelados pela tia e achou aos montes.
No ano de 1849 foram sequestrados do continente africano um grupo de pessoas para trabalhar como escravos em terras brasileiras. Entre os que sobreviveram à terrível travessia do oceano Atlântico estavam Akin e Ewa, que foram rebatizados no Brasil como Firmino e Helena. Essa mulher seria ascendente biológica de Eliana a primeira da linhagem a habitar o Brasil.
Acabaram sendo adquiridos pela família Tosta, que era rica e de grande influência política, produtores de açúcar no interior da Bahia, senhores de engenho.
A única filha de Helena foi fruto de um estupro e se chamou Anolina, que foi a mãe de Marta, que foi a mãe de Damiana, que foi a mãe de Celina, que foi a mãe de Eloá que foi o pai de Eliana. Ufa! E nesse meio tem as tias, primas, maridos, agregados.
O livro aborda muito bem a influência da religião, das lutas, política, amigos, aliados, toda uma carga cultural, preconceitos, maldades, soluções e é a coisa mais linda o trançado do livro.
O leitor vai adentrar a história particular da família da autora, que pode facilmente ser transposta para tantas famílias brasileiras descendentes de africanos. Ao contá-la, Eliana contextualizou acontecimentos de época e citou pessoas muito conhecidas da história nacional, por exemplo Rui Barbosa, Virgulino Lampião, Dom Pedro II e Antônio Carlos Magalhães já em tempos mais modernos.
Os personagens de Água de Barrela vão viver acontecimentos importantes e marcantes da história como a Guerra do Paraguai, assinatura da Lei Áurea, Proclamação da República, o advento e o fim do cangaço, o governo Vargas. A história da Bahia como unidade federativa está particularmente bem contextualizada na medida que a trama daquelas pessoas pede.
Mais uma vez nesse site, um livro que desbrava a Bahia, especialmente Salvador. Para mim, sempre um bônus. Adoro livros que passeiam por cidades, ainda mais quando são cidades queridas.
O título é muito simbólico. Água de barrela é um preparado de água e cinzas de madeira usado como alvejante para clarear roupas brancas. Olha só… um alvejante, usado por pretas para tornar mais brancas as roupas das pessoas brancas. Preparar a água de barrela era trabalhoso e era apenas uma parte do longo e laborioso processo empreendido pelas lavadeiras para deixar roupas brancas.
As personagens femininas vão usar esse alvejante caseiro em diversas passagens, primeiro como mulheres escravizadas, depois como empregadas domésticas ou como lavadeiras profissionais e por fim na festa de cem anos de Damiana para usarem, elas próprias, roupas bem branquinhas. Achei perfeito o nome do livro.
É um livro sobre luta. Sobre adaptação, resignação, revolta, castigos, trabalho, exploração, organização, sobrevivência. Todos os personagens negros lutam por sua sobrevivência e por melhores condições de vida, cada um com as suas estratégias.
E é nesse ponto que vamos falar mais de três personagens: Firmino, Adônis e Amélia Tosta (Lili).
Sim, Lili é branca, rica e membro da família Tosta, que importou pessoas para escravizar lá pelos meados do século XIX. Vamos começar por ela, porque quero terminar com os outros dois.
Então por que incluir Lili Tosta nessa conversa sobre lutas dos afrodescendentes? Porque a luta dela influencia a vida das personagens mulheres dessa obra, fossem elas brancas ou pretas, porque ao narrar a causa e a paixão de Lili, Eliana aborda as diferenças dos interesses e condições de vida entre as mulheres brancas e negras daquela época. E por fim, porque Lili é uma personagem muito interessante. Ela destoa de todas as mulheres de sua classe social que participam como personagens ativas em Água de Barrela.
Lili é uma moça rica. Ela foi estudar em Londres. Assim como iam muitos de seus contemporâneos ricos. A época em que esteve na Inglaterra a pôs em contato com um modo de pensar feminista, sufragista, moderno, que batia de frente com tudo que ela conhecia na Bahia.

Damiana e João Paulo
Essa jovem volta com roupas diferentes, fumando, querendo mudar o mundo. Damiana e Dodo, que são irmãs e prestam serviço na casa da família de Lili vão servir de inspiração para a moça questionadora, quando comparadas às suas parentes mulheres.
Dodo, Maria da Glória, era empregada na casa dos Tosta. Ela não estudou, não se casou, não teve filhos e mora com a família no famoso quartinho de empregada. Damiana frequentou a escola religiosa dos brancos, numa condição não muito favorável nem respeitosa. Mais como uma escrava a quem nas horas vagas é concedido permissão de assistir aulas. De qualquer forma, essa experiência foi decisiva para ela, porque criou uma concepção da importância do estudo formal. A escola também a tornou católica, o que afastou Damiana da religião de suas ascencentes, o Camdomblé. Leia o livro e entenda o papel da escola católica e da religiosidade na vida daquelas mulheres. É muito muito bem escrito e interessante.
Lili Tosta e seus comentários vão desagradar as outras mulheres de sua família, sobretudo a mãe que entende como uma negação das tradições e do papel da mulher na família. Elas têm um diálogo bastante duro em que Lili elogia as empregadas dizendo que se elas, que tem pouco ou nenhum estudo formal e vem de lares com poucos recursos, dão conta de serem economicamente ativas e donas de seus próprios narizes, imagine o que as mulheres de sua classe social poderiam fazer. A mãe então se ofende, porque entende que a filha a considera inferior às empregadas. Ao que Lili, depois do bate-boca reflete e entende que sim, ela considera que a mãe e as suas iguais realizam menos que as mulheres que as servem, que tem uma vida muito mais dura e ainda assim têm coragem e peito para serem independentes.
Ao mesmo tempo, Damiana reflete sobre a falta de opção. Sobre como Lili tem dificuldade em perceber que a dureza da vida naquele lar e as soluções encontradas não se devem a opções bem aproveitadas, é uma absoluta necessidade de sobreviver.
Esse diálogo é presente na série brasileira chamada Coisa Mais Linda. Em uma das melhores cenas as personagens Malu e Adélia discutem. A personagem Malu é uma branca de família rica que depois de tomar um calote do próprio marido, revolta-se contra as tradições familiares, muda de São Paulo para o Rio de Janeiro e contra todos abre um bar. Adélia, deixa de ser empregada doméstica e se torna sócia de Malu. Num dado momento Malu, que por ter se tornado dona de bar, se vê privada pela família de conviver com o próprio filho, reclama para Adélia que está separada do filho contra sua vontade porque está lutando pelo direito de trabalhar. Aí essa pessoa toma uma esfregada na cara de que a vida de Adélia a obriga a passar todos os dias da vida longe da filha porque para ela não é opcional trabalhar. Se ela não sai de casa para trabalhar, a própria sobrevivência é comprometida.
Voltando a Lili, ela me lembra muito a personagem Lady Sybil Crawley de Downton Abbey. Que é uma menina rica, da aristocracia inglesa no início do século XX. Sybil é feminista, sufragista e vai se envolver em lutas trabalhistas, quando conhecerá melhor seu motorista e futuro marido, Branson.
Sybil tem uma cena em que ela aparece usando uma calça, que era um traje muito avançado para mulheres da época. Esse momento se assemelha muito à primeira vez que Lili Tosta aparece de saia acima dos joelhos e fumando. Eliana Cruz vai falar do choque que aqueles hábitos, vestuário e ideais adquiridos em sua temporada londrina, causou nas parentes baianas tradicionais.
Chegamos aos rapazes: Firmino (Akin) e Adônis.
Uma vez assinada a Lei Áurea, milhares e milhares de pessoas que até então eram escravizadas foram lançadas à própria sorte sem dinheiro, terras ou qualquer auxílio por parte do governo. Como se não bastasse, ainda recaia sobre eles a raiva de seus antigos proprietários que esperavam compensação financeira por aquilo que julgavam um prejuízo inestimável de perda de bens.
Claro que estarem livres no papel foi comemorado pelos ex-escravizados, mas o dia seguinte não foi nada fácil. Além da miséria inassistida, tinha o óbvio preconceito racial e as sabotagens. Sim, os ex-donos por muitas vezes sabotavam as parcas chances de ganho dos recém libertos.
Diante disso Adônis e Firmino traçaram suas formas de resistência. Adônis era filho de Dasdô, uma escrava antiga da casa dos Tosta e Firmino, como já foi comentado acima, era africano de nascença e veio parar em terras brasileiras por meio do tráfico de pessoas.
Suas origens fizeram diferença no modo como encaravam a vida e suas relações com os brancos donos de terras. Enquanto Adônis tinha uma abordagem pacífica e tentava sobreviver sem chamar a atenção na terrinha que conseguiram para várias famílias cultivarem, Firmino defendia o uso da força para causar aos donos de terras tanto ou mais prejuízo que os que lhes vinham causando. Uma dessas estratégias eram os incêndios em canaviais.
Ambos queriam o mesmo fim: vida digna para si e para os seus. Cada um escolheu suas armas. Os métodos de um influíram na luta do outro, por mais que tentassem não misturar os grupos.
O fim dessa disputa entre os libertos é de cortar o coração. Uma cena belissimamente narrada para fazer a revolta crescer no leitor.

Martin Luther King Jr.
Extrapolando os personagens de Água de Barrela, talvez caiba uma comparação com outros personagens também reais que foram fundamentais para a luta contra o preconceito racial nos Estados Unidos e que acabaram sendo personagens simbólicos para o mundo: Malcom X e Martin Luther King Jr.
Coisas em comum entre eles: estadunidenses, negros, filhos de pastores, foram assassinados aos 39 anos de idade (1965 e 1968), fizeram da luta contra a discriminação racial sua causa de vida.
Tinham tudo para lutar juntos, certo? Mais ou menos. Certamente nunca foram inimigos embora Malcom X tenha criticado publicamente Luther King Jr. algumas vezes. Também é certo que mobilizaram multidões. O que os diferia era essencialmente o método. Enquanto Luther King se inspirou em Gandhi para liderar um processo firme, porém pacifista, Malcom X era favorável de que os negros estadunidenses usassem quaisquer opções que tivessem às mãos, incluindo armas e atos violentos.
Malcom X, que havia se convertido ao islamismo, após entender que o islã era a religião negra por excelência, sofreu uma desilusão enorme ao constatar que o líder do grupo Nação do Islã, do qual fazia parte, era um homem de moral questionável. Então abandonou o islamismo e passou a denunciar as hipocrisias de Elijah Muhammad, por seus vários casos extraconjugais.

Malcom X
Apesar de sua extensa luta antidiscriminação racial, Malcom X foi morto por suas falas críticas ao líder Elijah Muhammad.
Sobre o assassinato de Luther King, existe uma especulação de que teria sido assassinado pelo governo dos Estados Unidos, por sua influência não só nas questões antiracistas, mas também sobre seus atos contrários à Guerra do Vietnã.
Esses dois grandes homens só se encontraram uma vez, sem combinar antes, por apenas alguns minutos em 1964.
Martin Luther King Jr. foi laureado com o prêmio Nobel da Paz em 1964. E foi assassinado na cidade de Memphis, no estado do Tennessee em 1968.
Para entender melhor esses dois homens fantásticos recomendamos dois filmes. O cineasta Spike Lee, dirigiu, escreveu, produziu e atuou no filme Malcom X (1992), que trouxe Delzel Washington no papel principal. É um filme muito bom. Spike Lee, né?
Malcom X foi indicado a dois Oscars (melhor ator e figurino), venceu o Urso de Prata de melhor ator e foi indicado também por melhor ator ao Globo de Ouro.
Sobre Martin Luther King Jr. e seus métodos, recomendo Selma: Uma luta pela igualdade.
Selma não é um personagem, é uma cidade no Alabama, EUA. Fazia pouco tempo que Martin Luther King havia sido laureado com o Nobel e ele se engajou em uma luta pelos direitos eleitorais dos negros que culminaram nas Marchas de Selma a Montgomery. Foram no total três marchas, que atraíram milhares de pessoas e enorme cobertura da imprensa. A primeira delas foi reprimida com muita violência, o que gerou efeito contrário ao esperado pelas forças de repressão contribuindo para a visibilidade e ampliação das marchas.
O filme Selma foi dirigido por Ava DuVernay e teve Oprah Winfrei no elenco e na produção. Ganhou o Oscar de melhor canção original e foi indicado a melhor filme em 2015.
Selma recebeu ainda outras 48 indicações em outras 13 premiações de cinema, destes venceu 13, entre eles o Globo de Ouro de melhor canção original.
CRUZ, Eliana Alves. Água de Barrela. São Paulo: Malê, 2015.
FELLOWES, Julian. Downton Abbey. UK: ITV Studios, 2010-2015.
LEE, Spike. Malcom X. EUA: Warner Bros. Pictures, 1992.
DUVERNAY, Ava. Selma: uma luta pela igualdade. EUA: Plan B Entertainment, 2014.
27/06/2023 at 11:36
ACABO DE LER AGUA DE BARRELA. AINDA ESTOU SOB O IMPACTO DESSA NARRATIVA FORTE E CORAJOSA DE ELIANA ALVES CRUZ, UMA AUTORA MADURA E PRONTA PAR OCUPAR LUGAR DE DESTAQUE NA HISTORIA DA LITERATURA BRASILEIRA. SOB VARIOS ASPECTOS O LIVRO INOVA.É UMA SAGA DE PERSONAGENS NEGROS MAJORITARIAMENTE FEMININOS A CONTAR A SUA VERSÃO DO PROCESSO ESCRAVOCRATA BRAILEIRO.SEM IDEALISMOS,CRU,REAL,VIOLENTO COMO REALMENTE DE DEU.ATENÇÃO PARA AS CENAS DE ESTUPROS DAS MULHERES NEGRAS ESCRAVIZADAS,SÃO MUITOS. DEMONSTRAM TODA A MISERIA QUE FOI A ESCRAVIDAO.A PARTIR DE AGORA É LEITURA OBRIGATORIA.
27/06/2023 at 14:48
Maravilhoso, né? Fiquei tão impactada com esse livro que dei exemplares de presente para minha mãe e minha sogra no natal passado. Eliana Alves Cruz é uma baita escritora!
09/07/2023 at 09:35
Amei seu texto!!!! Amo essa obra de paixão. Só uma pequena correção, Anolina não é filha do estupro, apesar de Helena ser estuprada na travessia ela já estava grávida do irmão de Firmino que morreu a caminho do Brasil.
17/07/2023 at 07:01
Obrigada, pelo elogio e pelo toque! Vou voltar lá p ver. Também amo esse livro!! Eliana é uma escritora muito talentosa!!