Capa de A Volta do Parafuso

“Ela acreditava em mim, e disso eu tinha total certeza: se ela não me acreditasse, não sei o que teria sido feito de mim, pois aquele fardo era pesado demais para que eu o carregasse sozinha. Mas ela era um legítimo monumento comemorativo à falta de imaginação, e se, nos pequenos, ela não via nada além da beleza e do encanto, da alegria e da esperteza das crianças, tampouco teria comunicação com as fontes do meu problema. Se as crianças estivessem visivelmente abatidas ou definhadas, desabrocharia na sra. Grose um grande pesar solidário; mas, da forma como tudo estava, eu podia sentir que ela dava graças à misericórdia do Senhor enquanto, com seu olhar sereno e de braços cruzados, observava as crianças, pensando que, caso elas estivessem arruinadas, ao menos seus escombros ainda teriam alguma serventia.”

JAMES, Henry. A Volta do Parafuso. p.66.

 

Nesta semana de Halloween, revisitei uma das histórias de terror que me deixaram mais assombrada na adolescência.

Quando tinha por volta de 15 anos, encontrei na biblioteca da minha mãe um pequeno livro, já envelhecido, chamado Os Inocentes, de Henry James. Lá estava escrito que o título original era The Turn of the Screw e depois fiquei sabendo que em algumas traduções o título em português era A volta do Parafuso (tradução literal do título). Mais recentemente a editora Penguin lançou outra tradução cujo título é A Outra Volta do Parafuso. Tratam-se todos da mesma história.

Bem, essa obra redigida e publicada no final do século XIX (1898), fora pensada por um estadunidense que se naturalizou inglês e viveu muito tempo até seus últimos dias na Inglaterra.

A edição de minha primeira leitura, não foi localizada, e tudo bem. A edição usada agora foi a da L&PM que traz ainda o conto/novela Daisy Miller, do mesmo autor.

Em A Volta do Parafuso todos os personagens são ingleses, já em Daisy Miller, os principais são estadunidenses e outros europeus. Aliás, essa segunda história é fantástica e trataremos dela num próximo texto, visto que o tema é muito diferente da vibe de Halloween que queremos aqui.

A Inglaterra é repleta de casarões e palacetes que são ou eram propriedades destinadas à aristocracia. No século XIX, essa classe ainda vivia muito prosperamente às custas de recursos públicos e heranças, em casas repletas de empregados e com as regras de etiqueta mais rígidas. Muito já comentamos sobre o período vitoriano nesse site e, dentre os textos sobre livros que representam esse período, o que tem a caracterização que mais se aproxima da que nos interessa aqui é a de O Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson. Dr. Jekyl tinha o comportamento sisudo, contido, enrustido, que se esperava da sociedade inglesa naquele tempo, principalmente nas altas classes.

Tendo essas pessoas como material de sua observação forasteira e atenta, Henry James construiu uma história em que o dito fica pelo não dito. Os personagens são formatados pelas entrelinhas das conversas e acontecimentos. Nada é claramente expressado.

E é aí que reside a genialidade. Essas entrelinhas e a escolha de contar os fatos pela ótica de uma narradora em primeira pessoa e, portanto, nada confiável dá várias possíveis interpretações para o texto. Temos a versão da  narradora e algumas outras passíveis de dedução pelo leitor, que, por sua vez, pode ou não eleger uma linha como sua “verdade”.

Em poucas palavras, a história é a seguinte: alguém, em um jantar, lê um manuscrito em tom de diário, escrito por uma mulher que teria sido governanta na mansão Bly, na Inglaterra. Essa mulher fora contratada para cuidar da casa e de duas crianças. Essas crianças perderam os pais há pouco tempo, estão sobre a guarda do tio, que contrata a preceptora com a instrução expressa de nunca incomodá-lo com nada: se vira aí com os pequenos!

Essa mulher, vai morar naquela linda e enorme casa no campo, onde residem mais alguns empregados e a menina Flora. O irmão, Miles, está retornando do internato para passar o verão.

Quando Miles chega a Bly, descobrem que ele tinha sido expulso da escola. O que surpreende a todos os que o conheciam e também à preceptora à medida que ela convive com Miles. Ele era um garoto dócil. Aliás, a preceptora, que não tem nome no livro, não se cansa de dizer o quão esplêndidas são as crianças.

O livro não revela o passado da governanta nem o motivo da indiferença do tio (embora esse comportamento não fosse incomum), o motivo da expulsão de Miles e outras tantas coisas.

De repente, a casa passa a ser assombrada pelos fantasmas dos ex-funcionários – o valete do tio (Sr. Quint) e a ex-preceptora das crianças (Srta. Jessel) . E é aí que a coisa fica boa.

Lembro-me de ter morrido de medo do livro na época em que o li, pois adotei como verdade inequívoca a versão da governanta. Agora, mas velha, a releitura mostrou uma trama ainda mais maravilhosa que aquela feita a anos atrás. Percebi que tudo pode ter ocorrido falta de lucidez da governanta, maldade infantil, ingleses vitorianos sendo ingleses vitorianos e não falando expressamente de temas como abuso de crianças e muitas outras possibilidades. Tem hora que a gente pensa: “poxa, que coragem a dessa governanta.” E em outras: “putz! O que  essa mulher está querendo!”

Enfim, não tive a mesma reação de medo, talvez porque já conhecesse a história. Entretanto, agora penso em A Volta do Parafuso como uma criação ainda mais complexa e sensacional de Henry James.

Capa de O Jardim Secreto

Esse comportamento de deixar as crianças aos cuidados da criadagem e não querer ser incomodado nem mesmo ter notícias delas pode ser visto em uma outra obra que também foi comentada aqui: O Jardim Secreto (no texto dedicado a Harry Potter e a pedra filosofal).

Em O Jardim Secreto, a pequena Mary Lennox vai morar com o tio, Lord Craven, em uma casa com características parecidas com as de  Bly, depois de perder seus pais. Essa menina havia morado a vida toda na Índia, então colônia inglesa, e agora estava em solo inglês aos cuidados de uma criada doce, mas pouco instruída, que se reportava à rígida governanta da casa. Aí você pode pensar: “é bem ruim que os tios não queiram ser importunados pelas questões dos sobrinhos órfãos, talvez não  não agissem assim com os próprios filhos.”

Lamento dizer que sim, o tio da Srta. Lennox deixava inteiramente aos cuidados de seus funcionários seu próprio filho, órfão de mãe. Para piorar, o menino tem sérias questões de saúde.

Também nesse romance infanto-juvenil de Frances Hodgson Burnett, dá para perceber o comportamento cheio de dedos dos habitantes da casa e o desconforto de Mary, que é inglesa, mas fora criada na Índia, com aqueles costumes tão frios e cheios de segredos e dissimulações. O Jardim Secreto foi adaptado duas vezes para o cinema, considero a segunda mais bonita em termos visuais, mas a primeira é mais interessante e fiel ao livro.

Uma outra história que demonstra bem o comportamento cheio de fachadas de polidez e perfeição dos ingleses é Downton Abbey. Essa série da ITV Studios se passa na mansão fictícia de Downton Abbey no início do século XX, iniciando pouco antes da primeira guerra mundial.

A locação usada para ambientar a casa daquela família aristocrática é o castelo de Highclere, no distrito de Hampshire na Inglaterra. A série conquistou 22 prêmios entre Emmys e Baftas.

Embora não estivessem mais na era vitoriana, que terminou em 1901 com o falecimento da Rainha Victória, acompanhamos personagens muito marcados pelo que foi aquela tendência comportamental por quase um século: sisudez, sem emoções declaradas, comedimento, pompa e dissimulações. A série trata de uma fase de transição, tanto das regalias daquela parcela privilegiada da sociedade inglesa, quanto comportamental, com pessoas se tornando mais livres para agir conforme seus próprios desígnios.

Uma passagem da série que pode ajudar a entender o comprometimento da aristocracia com as aparências é quando em um parto complicado da filha mais nova da família Crawley, Lady Sybill Crawley, o pai da moça, o Conde de Granthan, apoia o parteiro que também era um membro da aristocracia em detrimento de um médico que também acompanhava o parto à pedido da mãe que era estadunidense. As cenas dão a entender que o pai de Sybill agen desta maneira porque fica preso na cordialidade excessiva. Em outras palavras, para não deixar o conde que fazia as vias de parteiro, constrangido, o pai de Sybill ignora as orientações do médico e ela acaba falecendo de eclampsia.

O parteiro era quem acompanhava os nascimentos dos ilustres habitantes da região, mas ele nunca tinha se deparado com um caso de eclampsia e sua falta de conhecimento científico o levou a errar e a insistir com o Conde de Granthan que não era necessário remover a paciente para o hospital.

Outra das inúmeras comparações possíveis entre Downton Abbey e A Volta do Parafuso é o lacaio ou valete, tanto Sr. Thomas Barrow, quando Mr. Quint. Ambos são os funcionários de companhia dos seus respectivos senhores, gozam de suas confianças e têm desvios de caráter que levam a sérias consequências. Se fosse um campeonato, diria que o Sr. Quint é o pior de todos, porém Mr. Barrow está longe de ser um anjo de candura.

Construa sua casa de bonecas vitoriana. Editora Usborne.

Antes de passarmos para as adaptações de A volta do Parafuso para o audiovisual, gostaria de indicar um brinquedo/livro que considero lindo demais e que faz muito sucesso aqui em casa: Construa sua Casa de Bonecas Vitoriana, da editora Usborne. São peças lindas em EVA que vêm em uma caixa para serem destacadas e montadas formando uma casa vitoriana. Também vem junto o material em EVA para os móveis, personagens (incluindo funcionários e animais de estimação) e um livro. O livro contém o manual de montagem, texto explicando a vida na Inglaterra entre 1819 e 1901 e a função de cada um dos personagens representados ali. É lindíssimo!

Voltando à obra de Henry James, comentaremos então duas adaptações: o filme Os Inocentes (1961) e a mini série A Maldição da Mansão Bly (2018).

 

Cartaz de Os Inocentes, 1961

Os Inocentes, é um filme bem fiel ao livro, em preto e branco, lindamente executado. O filme oferece algumas soluções para entrelinhas do livro, mas isso não estraga a experiência. Cabe destacar que o roteiro foi escrito por William Archibald e ninguém menos que Truman Capote. A personagem principal foi interpretada por Deborah Kerr.

A Maldição da Mansão Bly, já é uma adaptação que tomou para si o esqueleto da trama de Henry James, mas fez escolhas e alterações importantes e que ficaram geniais. Criou-se uma nova história aproveitando a velha.

Os personagens e a casa têm os mesmos nomes, também há dois outros personagens que são importantes: o cozinheiro (Owen) e a jardineira (Jamie).

A trama de Mansão Bly adota como verdade incontestável as experiências fantasmagóricas da governanta (outra mudança foi dar um nome a essa personagem). Seguindo esse fio, a série vai de uma forma autoral e belamente executada, preenchendo todas as lacunas da trama, eliminando aquele ar de suspeição sobre a veracidade da narração do livro.

Foi uma bela homenagem ao clássico de Henry James, recomendo fortemente.

Outra belíssima homenagem, que não adaptou literalmente, mas criou uma trama  apresentando uma possiblidade de desfecho que poderia caber também em A Volta do Parafuso é o filme Os Outros, de 2001.

Cartaz de Os Outros

Amo esse filme. Fiquei apavorada com a trama, os efeitos visuais, maquiagem e tudo mais que diz respeito a essa produção, que tem Nicole Kidman interpretando a personagem principal Grace Stewart.

Quando assisti a esse filme lá no início dos anos 2000, percebi na hora as semelhanças com A Volta do Parafuso, embora nos detalhes quase tudo seja diferente.  Não são os mesmos: os nomes dos personagens, a localização da mansão, a época em que se passa, o fato de a cuidadora das crianças ser a mãe deles e não a governanta.

Esse não é um filme à prova de spoilers. Muito pelo contrário, qualquer informação pode arruinar a experiência. Então pararei por aqui, deixando mais uma forte recomendação para quem gosta de um sustinho.

Os Outros venceu 11 prêmios, sendo destaque no Prêmio Goya de 2002.

Conclusão: deu vontade de rever e reler tudo o que foi mencionado aqui, inclusive A Volta do Parafuso. Darei um tempo e pretendo reler mais uma vez. É bem provável que outras camadas se evidenciem a cada releitura.

 

JAMES, Henry. A Volta do Parafuso. In: A Volta do Parafuso seguido de Daisy Miller. Tradução: BRAGA, Guilherme da Silva. Rio de Janeiro: L&PM, 2008.

FLANAGAN, Mike. A Maldição da Mansão Bly. EUA & UK: Netflix, 2018.

CLAYTON, Jack. Os Inocentes. UK: 20th Century Fox, 1961.

AMENABAR, Alejandro. Os Outros. EUA, Espanha, Itália & França: Dimension Films, 2001.

FELLOWES, Julian. Downton Abbey. UK: ITV Studios, 2010-2015.

BURNETT, Frances Hodgson. O Jardim Secreto. São Paulo: Editora Dracaena, 2012.