
Minha edição é uma mais antiga, também da Record. Essa capa é mais bonita! 🙂
“Mas no dia seguinte, 18 de abril, pela manhã, o médico, ao voltar com a mãe da estação, encontrou Michel com uma expressão ainda mais abatida: do porão ao sótão, uma dezena de ratos jazia nas escadas. Os caixotes do lixo das casas vizinhas estavam cheios deles. A mãe do médico tomou conhecimento da notícia sem se admirar.
– São coisas que acontecem.- Era uma senhora de cabelos prateados, de olhos negros e meigos. – Estou satisfeita por voltar a ver-te, Bernard. Os ratos nada podem contra isso.
Ele aprovava. Era verdade que, com ela, tudo lhe parecia sempre fácil.
Entretanto, Rieux telefonou ao serviço comunal de desratização, cujo diretor conhecia. Já ouvira falar desses ratos que vinham em bandos morrer ao ar livre? Mercier, o diretor, tinha ouvido falar nisso e, no seu próprio serviço, instalado próximo ao cais, tinham sido encontrados uns cinquenta. Perguntava a si próprio se a coisa teria importância. Rieux não podia decidir, mas pensava que se impunha uma intervenção do serviço de Mercier.
– Sim – disse Mercier -, com uma ordem. Se acha que vale realmente a
pena, posso tentar obter essa ordem.
– Vale sempre a pena – respondeu Rieux.
Sua empregada acabava de lhe comunicar que tinham apanhado várias centenas de ratos mortos na fábrica onde o marido trabalhava.
Foi mais ou menos nessa época que nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, a partir do dia 18, as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde o Dr. Rieux passava, por toda parte onde nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas.”
Albert Camus. A Peste.
Querido Camus, queria te contar que li de novo A Peste. Continuo achando um livro sensacional, que propõe muitas reflexões sobre a humanidade. A primeira vez que li A Peste foi lá pelos idos de 2010, ou seja, 13 anos atrás, por recomendação de uma amiga (Valeu, Mariana!).
Naquela época, pensei na alegoria criada para representar os horrores da segunda Guerra Mundial, nas reações possíveis entre os envolvidos e também nas reações institucionais num caso de caos como o que você criou nesse livro. A Peste me perturbou bastante naquela ocasião.
Aí, Camus, (ou posso te chamar de Albert?) li de novo, neste ano, 2023, depois de termos passado por uma louca e horrorosa pandemia de covid-19 que parou o mundo e deixou profundas cicatrizes nas nossas almas.
“Ah, mas o mundo já havia passado por outras pandemias”… Você ou outras pessoas podem objetar. É verdade. Mas nós, as pessoas vivas habitando o mundo em 2020 quando a coisa foi parar no ventilador, só sabíamos de ouvir falar e dos livros de História. Apenas alguns poucos humanos já centenários, poderiam ter vagas lembranças da gripe espanhola.

Albert Camus
Assim, estimado Albert, li dessa vez um livro novo, mesmo que tenha sido a exata mesma edição que usei no ano de 2010.
Talvez agora eu esteja ainda mais chocada com sua obra prima.
Uma cidade argelina pacata e monótona chamada Oran é subitamente invadida por ratos. Esses animais estão morrendo às pencas nas ruas e nas casas, onde quer que apareçam.
Aí novamente do nada, os ratos somem (sumiram também os gatos) e começam a aparecer sintomas de uma doença horrorosa nos habitantes de Oran: pústulas, febre, tosse, dor.
No início o governo de Oran tenta encobrir, eufemizar a realidade, até que as coisas ficam tão sérias e desesperadoras que se torna impossível esconder a epidemia de peste. As pessoas morrem aos montes.
Providência mais urgente a ser tomada: isolar Oran do resto da Argélia para impedir a transmissão e agravamento da epidemia.
Esse livro é genial e foi escrito lá na década de 1940, então vou perdoar Albert de Camus pela ausência de mulheres entre os personagens relevantes.
Os personagens principais são o médico Rieux, o prefeito Grand, o jornalista Rambert, Tarrou o historiador, Paneloux o padre católico e Cottard o capitalista selvagem.
Temos aqui nesse blog uma conversa sobre outro aclamado livro de Camus: O Estrangeiro. Que foi escrito antes de A Peste e uma coisa que amei durante a releitura de A Peste foi encontrar referências (easter eggs) de O Estrangeiro. O argumento filosófico de O Estrangeiro que gira em torno do absurdo, volta com outra roupagem em A Peste. À medida que a doença avança, Oran vai sofrendo as consequências da quarentena, a vida vai perdendo o sentido e as pessoas vão tocando a vida sem grandes objetivos. Algumas profissões chegam a perder completamente o sentido.
Diante da desolação, a religião não mais consola ou oferece explicação aceitável, as pessoas não recorrem mais à justiça elas passam a deixar suas contendas em segundo plano, posto que diante da ameaça da perda da vida, tudo é ressignificado.
Dentre os personagens o único que ficou mais feliz durante a epidemia de peste do que antes foi Cottard. Ele já era uma pessoa que não era lá muito sociável. Não dava importância às vidas, nem mesmo à dele. Depois da explosão da doença, esse senhor vai se tornar o principal comerciante de artigos contrabandeados para dentro da Orã sitiada.
Em um dado momento, alguém pergunta a ele porque não aproveita suas conexões para fugir de Oran e ele responde alguma coisa como agora estava vivendo o melhor momento de sua vida na cidade, a peste teria lhe feito bem do ponto de vista individual. Cottard ganhou muito dinheiro com seus novos negócios às custas da desgraça alheia.
A Peste, que foi publicada pela primeira vez em 1947, era uma crítica ao fascismo e à guerra. E cada um dos personagens principais representava um aspecto institucional ou um grupo de comportamento classificável, como o dos capitalistas que viram a chance de bons negócios ou aqueles que fizeram da ajuda humanitária uma causa, que foi o caso de Tarrou.
Aqui, por essa perspectiva temos o Camus criador de uma alegoria para fazer pensar sobre o que momentos de exceção e desesperança podem causar na humanidade e remodelar sua organização.
Mas quando penso na pandemia da qual acabamos de sair, vem uma tendência a ver a obra com lentes proféticas.
Afinal de contas Oran e Wuhan têm quase a mesma pronúncia. Coincidência?
Antes que eu seja responsável por criar uma nova teoria da conspiração, respondo minha própria pergunta: não tem nada de profético em A Peste. É apenas a ficcionalização do comportamento humano observado em outras crises sanitárias homéricas pelas quais o planeta Terra, ou partes dele, já passou. Assim como as guerras as epidemias ou pandemias causam mudança de comportamento, pensamento e deixam marcas indeléveis depois de sua passagem. Traumas coletivos.
Entre a ficção e a realidade podemos fazer algumas comparações:
No Brasil e no mundo tivemos a questão dos dados científicos sendo escamoteados por governos, até que aqui por essas bandas o tal consórcio da imprensa se tornou mais fiel à realidade que os dados oficiais. O mesmo ocorreu em Oran.
No auge da epidemia Oran teve dificuldade nos crematórios e cemitérios para dar digna destinação a seus mortos. Isso foi observado em várias partes do planeta durante a crise da covid-19.
Por outro lado, na imaginária cidade argelina, houve escassez de alimentos e outros itens graças ao isolamento imposto à cidade pelo governo francês para tentar limitar o espalhamento da peste. Lembrando que de 1830 a 1962 Argélia foi colônia da França.
Não tivemos escassez no fornecimento de produtos agrícolas ou industrializados até pelo caráter mundial da pandemia. Por outro lado, tivemos como medidas profiláticas o isolamento em casa, uso de máscaras e outros apetrechos de proteção individual. Ao contrário dos cidadãos de Oran que podiam circular livremente pelas ruas da cidade.
Mesmo que não tenhamos vivido a escassez da oferta de produtos, uma grande onda de desemprego causou o aumento da fome e das pessoas em situação de rua, que é uma tragédia ainda por sanar.
Esse livro me lembrou muito três livros de José Saramago: Ensaio Sobre a Lucidez, Ensaio Sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte. Eles tem temáticas parecidas embora cada um analise o

Ensaio sobre a Cegueira
comportamento humano em uma determinada situação.
São três livros e três tragédias com efeitos similares e outros diferentes. Se tiver que escolher um o melhor é Ensaio Sobre a Cegueira. Aqui o fato transformador é uma epidemia de cegueira branca, que acomete toda a população de um país, levando á barbárie e ao caos. Além da doença, que também é um elemento de A Peste, Ensaio Sobre a Cegueira também tem a questão da carestia, da falta de notícias sobre pessoas queridas, do isolamento da comunidade doente, na mudança do comportamento social. Mas vai além na questão da barbárie, as pessoas se tornam muito mais instintivas que racionais é uma obra bem mais brutal que A Peste.
O day after de Ensaio sobre a Cegueira é Ensaio Sobre a Lucidez. Aqui, ninguém está doente, mas quando a população traumatizada pelo surto de cegueira coletiva mesmo que sem combinar nada resolve votar maciçamente em branco nas eleições, o governo simplesmente decreta estado de sítio e corre para as montanhas. Isso mesmo, todo o governo daquela cidade bate em retirada deixando a população á própria sorte.
Aí vamos ver como aquelas pessoas sitiadas vão se comportar, a importância que aquela organização governamental tem de fato para aquela comunidade. Os prós e os contras da autogestão e a reação dos membros do governo como expectadores que torciam para que tudo desse errado.
Por fim, e não menos importante: As Intermitências da Morte. A premissa é que em um certo país a morte simplesmente não existe mais. Ninguém mais morre. Pessoas muito idosas, recém nascidos com problemas graves, pessoas muito doentes em situação que chamaríamos de leito de morte.
E esse é o mais interessante visto à luz da comparação com A Peste. Vai ter o pânico do governo, o pânico das religiões que perdem a razão de existir uma vez que não existe mais morte e consequentemente o paraíso ou inferno e seus similares, os capitalistas representados pelos planos de saúde que rapidamente se adaptam e passam a ganhar ainda mais dinheiro.
Observe que tanto na ficção onde as mortes se avolumam quanto na que elas inexistem, as instituições e grupos sociais têm mais ou menos a mesma reação. Grand e o governador vão tentar minimizar os feitos do problema enquanto puderem para evitar pânico e perdas políticas. Paneloux e a igreja em As Intermitências da Morte vão perder fiéis, em um caso pelo fato de que ninguém está mais sendo mandado para o além e no outro por todo mundo estar sendo mandado para lá independente de ser inocente ou não. E Cottard assim como os planos de saúde podem até mesmo lucrar mais em tempos de exceção e desolamento apenas ajustando suas velas.
Quatro obras magistrais: três Saramagos e um Camus. As mesmas misérias de alma incitadas por hipóteses diferentes, mas que causam o caos e fazem sobrevir o que os indivíduos têm de melhor e de pior, sem máscaras, sem convenções sociais.
Tem um filme de 1993, também chamado A Peste, que foi baseado nesse livro. Não assisti, deixo trailer para quem tiver curiosidade e informo que é possível encontrá-lo na íntegra no Youtube.
CAMUS, Albert. A Peste. Rio de Janeiro: Record, 2009.
SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
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