A pediatra | Amazon.com.br“Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão. Meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme. Não é diferente de quem cuida de vacas porque de sua janela era o que havia, festejando o fato de que não era mais preciso caçar, apenas manter o gado. Meu pai era endocrinologista pediátrico e a área da diabetes infantil crescia, proprietário de um andar num edifício comercial, eu podia atender numa das salas. Aceitei a facilidade, segui na pediatria com o apoio paterno, mas não me especializaria num caso único, não queria ver sempre a mesma doença, nem mãe de filho com doença crônica. Elas acabam entendendo muito do caso individual e não se submetem ao que orientamos. Lembro de uma que ligava a madrugada inteira para meu pai, confusa com os valores do glicosímetro. Mesmo não sabendo o que fazer com aqueles valores, ela voltava ao consultório dando aula de como controlar a doença. Meu pai sabia lidar com essas mães, a mãe-pâncreas. Elas acordam às três da manhã para aplicar insulina, cumprem a função do órgão insuficiente do filho e nunca mais dormem uma noite inteira depois do diagnóstico. Meu pai conversava calmamente com elas, esclarecia o perigo do coma diabético e encaminhava todas para um psicólogo do terceiro andar. Eu auferia minha glicose na infância com os kits que ele trazia para casa, não se importava que a filha se inteirasse do funcionamento das agulhas e medições. Eu a media preocupada, desde pequena queria estar saudável para que meu pai jamais se dirigisse a mim como paciente.

Adulta, não quis ver mãe-pâncreas na minha frente, preferi atender crianças com quadros autolimitados e corriqueiros. Todos os pediatras que conheço desejam o contrário, não estudaram tanto
para tratar coceira, eles querem doença. Antes de testemunhar um quadro em cronificação ou uma doença imune se apresentar sob minha jurisdição, dispenso a mãe quando a criança chega
perto dos dois anos. Fico distante nas consultas e não retorno as chamadas até que os pais resolvam conhecer outro pediatra. A demanda nunca cessa, tem paciente para todo mundo, prefiro novos a fazer a manutenção dos antigos.”

Andréa del Fuego. A Pediatra.

Que pessoa é essa? Cecília, a pediatra em questão, narra em primeira pessoa uma fase de sua vida. E se tem uma coisa sobre Cecília é que ela é má.

Não temos por aqui conhecimento especializado em psicologia, mas se fosse para arriscar um diagnóstico, diria que Cecília sofre de psicopatia. Ou melhor dizendo, não sofre porque é psicopata.

A mulher não sente nada por ninguém.

Cecília é filha de um renomado endocrinologista pediátrico da cidade de São Paulo. Por influência do pai, se formou também em medicina e virou uma pediatra neonatologista. Ok. Muitas pessoas ao verem o cotidiano dos pais fazem a escolha de seguir seus passos. Totalmente compreensível.

Acontece que no caso de Cecília o raciocínio que a levou a escolher a profissão foi que lhe traria retorno financeiro sem muito trabalho e que como ela não sabia o que queria da vida profissional mesmo, seguir as vontades do pai era um caminho melhor do que a falta de interesse dela por outros caminhos.

Ou seja, ela não sabia o que queria então deixou que escolhessem por ela.

Poderia dar certo? Poderia. Na verdade, essa discussão sobre se Cecília deu certo ou errado, precisa ficar para depois. Há várias formas de avaliar isso.

O que insisto quando penso na carreira dela pela perspectiva de que não deu certo é por um aspecto importantíssimo: ela não se importa com seus pacientes. Ela não gosta de crianças. Simplesmente aplica o protocolo como um robô. Quando o caso é minimamente grave, ela encaminha para um especialista, não por cautela profissional, mas porque não quer ter o trabalho de se dedicar a nada.

Ela é ambiciosa? Não sei dizer. Certamente ela não quer ser a melhor pediatra do Brasil, nem mesmo a melhor pediatra do bairro. Ela quer ser reconhecida o suficiente para se manter com algum luxo, mas sem grandes esforços. A mediocridade lhe serve bem. E nisso ela foi bem sucedida. Aí tem aqueles outros pediatras, especialmente um outro neonatologista que ameaça desestabilizar o esquema de Cecília. Cara… esse homem não sabe com quem está mexendo.

Nossa pediatra tem vida pessoal. No início do livro ela é casada. O marido está passando por um quadro severo de depressão quando esse docinho de coco arruma um amante, também casado e com a esposa grávida. Esse caso extraconjugal vai render agonia atrás de agonia. Você acha que o amante não presta? Eu concordo. Ele não presta. Mas, mais uma vez, ele não faz ideia de com quem está mexendo.

Outra personagem importante para o livro é a empregada doméstica que vai morar dentro do apartamento de Cecília. Essa sim é uma pessoa que está à altura da patroa. Elas desenvolverão uma relação interessantíssima. Depois de vários pré-julgamentos errados, Cecília desenvolve um certo fascínio pela funcionária.

Andréa del Fuego

Foi a primeira vez que li Andréa del Fuego, a autora. Essa mulher tem muitos contos publicados, cinco livros infanto-juvenis e três romances. Seu romance de estreia, Os Malaquias, venceu o prêmio  José Saramago (2011) e foi traduzido em pelo menos oito línguas. Fiquei muito interessada em conhecer melhor a obra dela.

Voltemos a Cecília. Essa personagem se parece com muitos outros personagens e ao mesmo tempo não se parece com ninguém. Vamos pensar nas similitudes e diferenças entre a psicopata da vez e Wandinha, o Narrador de O Cheiro do Ralo e Lydia Tár.

Wandinha, que é uma péssima tradução para o nome original da personagem que é Wednesday (Quarta-Feira), acaba de ganhar mais uma vez o mundo com a série da Netflix lançada em 2022. No momento Wandinha é uma febre. Essa menina, filha mais velha do casal Mortícia e Gomez Addams nem sempre foi a personagem principal das obras produzidas sobre essa peculiar família, mas sempre, sempre foi a personagem mais icônica.

No geral, é uma pré-adolescente, nascida em uma família de monstros, que não gosta de ninguém, usa as pessoas para atingir seus propósitos. Para mim, talvez por nostalgia, a melhor Wandinha será sempre a interpretada por Christina Ricci, embora Jenna Ortega tenha ido muito bem e eu tenha amado a série produzida por Tim Burton.

A Família Addams apareceu pela primeira vez em quadrinhos, pelas mãos do cartunista Charles Addams em 1937. Trata-se de uma sátira aos costumes das famílias tradicionais estadunidenses, seus valores e costumes. O sucesso dos quadrinhos evoluíram para uma série da rede de TV ABC que foi ao ar entre 1964 e 1966, depois disso outras quatro séries sobre a mesma família foram produzidas, tendo Wandinha da Netflix sido a última (2022 – atual).

Foram cinco longas metragem, dois deles de animação. Com destaque para os de 1991 e 1993, os melhores de todos com Christina Ricci, Raul Julia, Anjelica Huston, Christopher Lloyd no elenco.

Ficaremos com a Wandinha adolescente versão 2022 para os efeitos que aqui interessam.

Nem Wandinha nem Cecília amam ninguém, as duas são bem inteligentes, as duas tem propensão à vingança, perseguição (stalkers), usam as pessoas sem remorsos, sabem exatamente o que querem. Diferem nos aspectos violência física, que é um gosto que só se aplica à Wandinha e na mediocridade, que só se aplica à Cecília. Wandinha é simplesmente a melhor em tudo o que se propôs a fazer.

Na última semana, o texto falou de O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli. Não vou dar detalhes aqui, porque basta voltar à postagem anterior. Evocamos novamente essa obra porque o Narrador, também pode competir com Cecília. Inclusive A Pediatra foi lido no final de 2022 e lembrei de conversar sobre ele agora justamente pelas semelhanças entre os personagens principais.

Bora pro embate: amor ao próximo falta aos dois, stalkeiam pessoas, usam as pessoas sem remorsos e são profissionais medíocres, à despeito de proverem para o próprio sustento. Diferentemente de Cecília, o Narrador não é vingativo. Ele é um bosta, mas vingativo não é. Ele sacaneia, humilha, espezinha e passa adiante para a próxima vítima, sem retrovisores. No quesito inteligência, Cecília ganha e na objetividade também, o Narrador é meio aleatório, talvez pela natureza do seu ganha pão em uma loja que compra objetos de terceiros para revender e, portanto, o expõe a coisas muito diferentes entre si o tempo todo.

E por fim, uma das últimas grandes impressões artísticas causadas às minhas retinas: Tár.

Por onde começar a falar de Tár? Cate Blanchet que é simplesmente perfeita, interpreta a personagem principal que se chama Lygia Tár (venceu seis prêmios de melhor atriz entre eles o Bafta, Globo de Ouro e Critics Choice Award).

Lygia Tár conseguiu um feito extraordinário por uma mulher nesse mundinho machista em que vivemos, especialmente na área em que escolheu para se especializar: ela é maestro. Sim, ela faz questão de deixar claro que é maestro e não maestra.

Essa talentosa musicista, conseguiu galgar o degrau mais alto em sua profissão que é reger a Orquestra Filarmônica de Berlim. Para chegar a esse emprego essa mulher ralou. O filme começa com um entrevistador lendo o extensíssimo currículo dela, o que deixa bem claro que ela se preparou muito e espanta qualquer dúvida nesse sentido. Ela está sendo entrevistada porque acaba de lançar uma autobiografia.

Tár é casada com a principal violinista da orquestra e juntas elas têm uma filha.

Tudo muito bom, tudo muito bem até que uma ex-pupila comete suicídio, aí o filme com muito sucesso e zero subestimação da inteligência do espectador começa a mostrar o lado B da senhora Lygia.

A bicha é ruim no osso. Com exceção da filha e de si própria, ela não ama mais ninguém. Usa e abusa de seu poder para manipular pessoas das mais variadas formas.

Cate Blanchet perdeu o Oscar para Michelle Yeoh em Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Antes de comparar Lygia e Cecília, quero dizer algumas palavras sobre isso. Eu não teria maturidade para escolher entre elas. Impossível escolher qual das duas atuações foi melhor. Aí… com tristeza de deixar Cate sem a estatueta dourada, talvez desempatasse essa tarefa pelo critério da diversidade, considerando que as atrizes brancas têm mais estatuetas do que as orientais. Então, acho que a tal da academia tomou a decisão certa, mas o justo mesmo seria um pódio mais largo, em que coubessem duas atrizes. As duas inclusive tem protagonizado cenas de grande afinidade nos red carpets por aí.

Larguem o que estão fazendo e vão assistir Tár.

Lygia Tar versus Dra. Cecília: no quesito amor ao próximo a Tár pelo menos ama a filha; as duas são objetivas e sabem exatamente o que querem, usam as pessoas sem remorso, são mulheres inteligentes, stalkers elas só não são almas gêmeas porque Lygia realmente não entre no critério da mediocridade. É uma pessoa desprezível, entretanto, profissionalmente ela era mesmo a melhor.