Capa do livro A Garota Dinamarquesa. Versão em inglês.

“– Então o que há de errado com ele? – perguntou ela.

– Em termos de saúde física, absolutamente nada. (…)

– O senhor acha mesmo que ele é um homem perfeitamente saudável, dr. Hexler?

– A saúde dele é normal. Mas ele é um homem normal? Nem um pouco. O seu marido não está bem.

– O que eu posso fazer?

– A senhora tem tranca no armário? Para não deixar que ele pegue as suas roupas?

– É claro que não.

– Pois devia colocar uma imediatamente.

– O que adiantaria isso? Além do mais, ele tem os vestidos dele.

– Livre-se deles imediatamente. A senhora não deve encorajar isso. Se ele achar que a senhora aprova, pode pensar que não há problema em fingir que é Lili. – o dr. Hexler fez uma pausa. – E aí não haverá esperança para ele. A senhora não vem encorajando isso, vem? Espero, pelo bem dele, que a senhora jamais tenha dito que aprova isso.

Era o que Greta mais temia: vir a ser acusada pela existência de Lili. Acusada de ter prejudicado o marido. (…)

– O senhor não está mesmo preocupado com o sangramento? – perguntou Greta ao dr. Hexler. – Nem um pouco?

– Não tanto quanto estou com esse delírio de ser mulher – disse o doutor. – Nem raios X podem curar isso. A senhora gostaria que eu conversasse com Einar? Posso dizer que ele está fazendo mal a si mesmo.

– Mas ele está? – perguntou Greta por fim. – Quer dizer, está mesmo?

– Bom, é claro. Creio que a senhora concorda comigo. Creio que a senhora concorda que, se isso não parar, precisaremos tomar medidas mais drásticas. Que vida um homem como seu marido pode levar? É claro que a Dinamarca é um país muito aberto, mas não se trata de abertura. Trata-se de sanidade, a senhora não concorda? Não concorda que há algo de levemente insano nos desejos de seu marido? Que a senhora e eu, como cidadãos responsáveis, não podemos deixar seu marido perambular livremente por aí como Lili? Nem mesmo em Copenhague. Nem mesmo ocasionalmente. Nem mesmo sob a sua supervisão. Creio que a senhora concorda que devemos fazer tudo o que for preciso para tirar este demônio de dentro dele, porque se trata disso, a senhora não concorda? De um demônio. A senhora não concorda?

E nesse momento Greta, que tinha trinta anos, era californiana e já contabilizava pelo menos três ocasiões em que quase se matara por acidente – a segunda, por exemplo, fora aos dez anos de idade, quando ela plantara bananeira na balaustrada de teca do Frederik VIII, em sua primeira viagem à Dinamarca –, percebeu que o dr. Hexler sabia muito pouco, se é que sabia alguma coisa. Ela se enganara, e ouviu Einar gemendo na cama, atrás do biombo dobrável.”

EBERSHOFF, David. A Garota Dinamarquesa.

 

Lili Elbe

No entreguerras, o pintor dinamarquês Einar Wegener, bastante conhecido em seu país, descobriu que não se identificava com o sexo masculino. Depois de longo tempo de maturação e apoio de amigos e da então esposa, passou por transição se tornando Lili Elbe. Lili é considerada a primeira mulher trans a passar por redesignação cirúrgica de gênero. Estima-se que ela tenha feito quatro ou cinco procedimentos. E essa é uma história real.

A Garota Dinamarquesa foi escrito por David Ebershoff, venceu o prêmio Gay, Lesbian, Bisexual, and Transgendered Book Award em 2001 e foi inspirado em outro livro, esse de não ficção, chamado Man Into Woman, que é o resultado de uma entrevista concedida pela própria Lili Elbe antes da última cirurgia de redesignação de sexo.

Man into Woman

O livro ficcional escrito a partir dos dados reais é lindo, delicado, respeitoso, devia servir de exemplo para muitas pessoas hoje, quase cem anos depois do falecimento de Lili Elbe.

David Ebershoff deu vida aos personagens e preencheu lacunas com sua imaginação.

No livro, o nome da esposa de Lili Elbe, a pintora Gerda Wegener, é grafado diferente: Greta Wegener. O autor explica que isso serve para diferenciar a personagem real da ficcional, pois temos poucos detalhes da vida pessoal de Gerda. O autor explica ao final do livro que Gerda era dinamarquesa, ao passo que Greta era estadunidense, descendente de dinamarqueses. Essa opção permitiu a criação de uma personagem que não era coadjuvante, mas igual em importância literária quando equiparada à Lili.

Passemos ao romance A Garota Dinamarquesa propriamente dito. Estamos falando de um casal que se conheceu na primeira década do século XX, se separou, tiveram vidas bem diferentes até o final da primeira guerra mundial, depois se reencontrou, viveram anos como marido e mulher e mantiveram forte laço de respeito, amor e companheirismo mesmo quando a vida conjugal acabou.

Intercaladas, temos as histórias de Lili Elba (grafia usada no livro) desde a infância até seu falecimento e a de Greta Waud (nome de solteira no livro). Claro que o feito mais extraordinário é a transição de gênero pioneira de Lili, mas o autor foi muito bem sucedido no propósito de dar a Greta a importância que lhe é devida. Simplesmente não consigo decidir qual a personagem mais sensacional. Eu amo a Greta.

Gerda e Einar Wegener

Outros personagens também maravilhosos são: o médico alemão, Dr. Bolk; o irmão de Greta, Carlisle; Anna, a cantora de ópera amiga de Lili e Greta; e Hans, marchand, amigo de Lili e Greta, que se tornou fundamental para a carreira e para a vida pessoal de Greta.

Escrever sobre esse livro não está sendo muito fácil porque fico tentada a ir mostrando o que é real e o que foi construção do autor. Para resolver esse dilema vou citar alguns fatos reais e depois farei uma breve sinopse sem spoilers (isso porque considero que por ser uma história baseada em fatos, o que é fato não é spoiler).

Vamos a alguns fatos: a primeira vez que Einar se sentiu Lili foi quando Gerda o pediu que posasse para ela terminar um quadro, calçando sapatos femininos e segurando um vestido; Anna Larsen chegou à casa deles enquanto Einar usava seus sapatos e vestido e criou o apelido de Lili; Lili e Gerda mudaram de Copenhague para Paris porque um médico estava ameaçando prender Einar por comportamento sexual inadequado; em Paris, Gerda passou a fazer muito sucesso pintando retratos de Lili; depois de várias cirurgias bem-sucedidas Lili faleceu três meses depois da última, que se tratou de um transplante de útero, o corpo de Lili rejeitou o órgão.

Einar era um pintor de paisagens reconhecido e requisitado na Dinamarca. Ele era casado com Greta, que também era pintora, mas ainda lutava para encontrar seu estilo próprio e, profissionalmente, vivia à sombra de Einar ainda que ele tentasse ajudá-la a se sobressair.

Paisagem. Pintada por Einar Wegener.

Um dos principais trabalhos de Greta era pintar cartazes e cenários para a Ópera de Copenhague e, naquele momento, ela estava fazendo um retrato da amiga e cantora de ópera Anna Larsen que interpretaria Carmen. Anna um dia se atrasa para a sessão em que deveria posar para Greta, que temerosa de atrasar a entrega do trabalho, pede a Einar que calce o sapato e segure o vestido para ajudá-la. Dali em diante, ele vai descobrir que se sente mais confortável como mulher. Imagina o dilema de se descobrir uma mulher trans, quando esse termo ainda nem existia, em plena década de 1920? Então vamos acompanhar a saga de Greta para compreender e ajudar Lili a se entender e, posteriormente, a passar pelo processo de transição.

A moça de Copenhague (Edição de A Garota Dinamarquesa que saia pela editora Rocco)

Isso envolveu mudança de cidade, figurino, profissão, cirurgias de redesignação de gênero, mudança de nome e gênero nos documentos, anulação do casamento e todo um processo psicológico.

E aí preciso falar de Greta. Greta é linda demais. Mesmo sem compreender e ainda carregando uma certa “culpa” por ter feito a solicitação que trouxe Lili à luz, ela não mediu esforços para ver aquela pessoa que ela tanto amava feliz. O processo de compreensão dela é a coisa mais delicada e humana do livro.

Greta foi quem se interessou por Einar primeiro, era aluna na escola de artes em que ele lecionava em Copenhague. Ela, nascida na Califórnia/EUA, havia ido para a Dinamarca estudar artes. Era uma moça rica, filha de grandes produtores rurais. Quando estoura a Primeira Guerra Mundial, Greta retorna para os EUA e se casa com outro homem, que acaba falecendo bastante jovem.

Quando viúva, Greta retorna à Dinamarca e aí se casa com Einar.

Ela é uma personagem complexa, com uma vida cheia de percalços construídos de forma que deu sentido à linha de comportamentos e raciocínios que a prepararam para recepcionar Lili de coração aberto. O livro as retrata como duas pessoas feitas para se encontrar e exercer exatamente o papel que desempenharam. É uma relação de profundo respeito e amor incondicional.

Mãe de Sal

Outra obra de estreia sobre personagem cujo gênero com o qual se identifica não corresponde ao que lhe foi designado geneticamente é Mãe de Sal, do escritor Raphael T. A. Santos. E aí meus amigos, o leitor vai passar por uma experiência bem diferente da proposta por David Ebershoff em A Garota Dinamarquesa.

Primeiro vou dizer como descobri esse livro. Sigo no Instagram o perfil Escrita Selvagem, que também tem um site e dá dicas preciosas de escrita criativa. E como acho as postagens realmente interessantes, tendo inclusive comprado livros sobre escrita sugeridos pelo administrador do perfil, quando descobri que ele tinha escrito um livro pensei imediatamente: vou lá ver se esse moço aplica o que prega e se ele realmente escreve bem. E para minha alegria, o livro é bem legal. Não é gentil e delicado como A Garota Dinamarquesa, é o outro lado da receptividade, ou melhor, da falta de receptividade, que pode passar uma pessoa na situação de se descobrir transexual.

Mãe de Sal vai contar a história de Aylla, uma mulher trans que foi criada por uma família disfuncional, violenta, conservadora de goela. Quando chega ao limite de sua resistência Aylla foge de casa para existir.

Au Café. Pintura de Gerda Wegener (1925)

A personagem é uma dessas pessoas que teve um início de vida conturbado e triste, mas por sorte encontrou o auxílio que precisava para mudar seus rumos ao esbarrar com uma mulher e sua filha que impediram que ela ficasse em situação de rua.

A história se passa em dois espaços, na cidade grande e na cidade pequena e turística em que Aylla nasceu. Até a fuga, ela era bem tratada apenas pelo caseiro de sua família, posto que a mãe oferecia a ela um tratamento desprezível, como se ela fosse uma aberração. Isso incluía castigos diversos, todos muito violentos tanto psicológica quanto fisicamente.

Fiquei só pensando em quantas pessoas passam ainda por isso. Quantas crianças ou adolescentes são submetidos a torturas por seus próprios parentes por puro preconceito. Não vou dar detalhes, mas o título do livro tem a ver com água do mar e um desses castigos é bem semelhante a um dos sofridos pela personagem Luíza Mahin/Kehinde no livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Machado. Kehinde era uma mulher vinda da África e escravizada no Brasil imperial do século XIX, falamos desse livro no texto sobre Quarto de Despejo.

Ao contrário de Lili, Aylla é cheia de raiva, mágoa e ressentimentos muito justificados. Ao mesmo tempo ela encontrou gratidão, amor e apoio na família do ex-caseiro, da mãe adotiva e da esposa com quem ela dialoga em algumas passagens do livro. Mãe de Sal se passa depois do falecimento da mãe biológica quando o irmão a convoca para retornar à cidade natal para os trâmites burocráticos da divisão do espólio. Há outros interlocutores, como a esposa já mencionada, a mãe adotiva, o caseiro, mas a maior parte da trama é entre ela e o irmão.

A raiva que Aylla nutre pelo que passou naquela casa com sua família de origem é muito forte, ao mesmo tempo o autor deixa entrever uma certa dúvida da porção de culpa que cabe ao irmão. Por algumas vezes, Aylla vai abrir um pouco a guarda, avaliando a possibilidade de reaproximar-se do irmão, ponderando o quanto ele teria sido afetado pela criação recebida mesma mulher que a fez tão mal.

Esse livro tem uns defeitinhos que podem ser facilmente superados pela força da trama. Trata-se de publicação independente, disponível no Kindle Unlimited ou para venda no formato de e-book.

Mãe de Sal é um contraponto interessante ao que é proposto em A Garota Dinamarquesa. Ambas as obras tratam de mulheres trans e, curiosamente, a que nasceu em fins do século XIX falecendo em 1931 foi muito melhor acolhida que a contemporânea.

A Garota Dinamarquesa virou filme em 2015, sendo indicado a 4 Oscars e levando o de melhor atriz coadjuvante para Alicia Vikander. O filme, apesar de lindíssimo, é bem menos complexo e tem muitas diferenças em relação ao livro.

Nele, os nomes dos personagens coadjuvantes e detalhes sobre eles foram alterados ou suprimidos. Greta voltou a ser dinamarquesa e a se chamar Gerda. O roteiro se ateve mais aos aspectos não ficcionais, o que é muito compreensível, pois são oito horas de leitura condensados em duas horas de filme. A história de Greta que é tão importante e segue paralela à de Lili no livro, é bem reduzida no filme. Não há compartilhamento do protagonismo. A personagem principal do filme é Lili.

Como assuntos delicados sempre envolvem certa polêmica, esse caso não poderia ser diferente. Uma das questões mais debatidas em relação à produção artística de audiovisual no século XXI é representatividade.

A personagem Lili Elbe é vivida pelo ator cis Eddie Redmayne, que é um cara talentosíssimo e interpretou Lili muitíssimo bem. Então qual é a treta? A treta é sobre se uma oportunidade dessas deveria ter sido dada a uma mulher trans. Inclusive Eddie Redmayne se desculpou publicamente e disse que hoje não aceitaria o papel. Legal, a vida é isso mesmo, aprendizado.

E aí fui procurar opiniões de mulheres trans, brasileiras e estrangeiras, sobre esse tópico. Tem quem considera ok ter um ator cis no papel porque a personagem passa grande parte do tempo como Einar e, portanto, não seria preciso a atriz regredir na questão hormonal para fazer essas partes do filme. Entre as adeptas dessa opinião algumas argumentam que o papel de Gerda ou de Anna (no caso do filme Oola Paulson) poderia ter sido dado para uma mulher trans interpretar, como forma de assegurar a representatividade.

Por outro lado, a maior parte das opiniões que ouvi, são contrárias a um ator cis interpretar Lili Elbe, inclusive algumas argumentam que seria uma honra interromper o tratamento hormonal para viver um personagem tão simbólico e importante para a causa da visibilidade trans.

Sobre informação acerca da transexualidade, recomendo o episódio 7 do podcast Rádio Escafandro, do jornalista Tomás Chiaverini. O episódio se chama Revolução Transexual e vai abordar a evolução das mentalidades, dos acompanhamentos psicológicos, das intervenções médicas e outros tantos aspectos que importam à causa. O depoimento da ativista, Maitê Schneider, é das coisas mais tocantes que já ouvi. Também participaram como convidados o psiquiatra Daniel Mori e a Diretora Executiva de Pessoal do grupo Atento, a senhora Majo Martinez Campos. O grupo Atento tem se esforçado para oferecer primeiros empregos de qualidade para pessoas dos mais diversos matizes em áreas nas quais têm formação e nas quais usualmente são preteridos ou, como a Majo disse, muitas vezes nem se candidatam pela certeza da negativa. A determinação da empresa em garantir a diversidade, muitas vezes, passa por busca ativa de candidatos. Vale muito a pena ouvir esse episódio. Na verdade, vale o podcast todo.

 

EBERSHOFF, David. A Garota Dinamarquesa. Tradução: REIS, Paulo reis. Rio de Janeiro: Fabrica 231, 2011.

SANTOS, Raphael T. A. Mãe de Sal. Publicação independente: 2021.

HOOPER, Tom. A Garota Dinamarquesa. EUA, UK, Dinamarca, Alemanha, Japão & Bélgica: Focus Features, 2015.

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro: Record, 2020.