
A Filha Perdida
“Coitada da mamãe. O que, no fim das contas, ela havia transmitido de tão ruim às meninas? Nada, um pouco de dialeto. Graças a ela, Bianca e Marta hoje sabem imitar bem a cadência napolitana e algumas expressões. Quando estão de bom humor, riem de mim. Exageram meu sotaque, até mesmo pelo telefone, do Canadá. Zombam de forma cruel do timbre dialetal que emerge da minha maneira de falar os idiomas, ou de certas expressões napolitanas que uso, italianizando-as. Uma perda de tempo de merda. Sorrio para Rosaria, procuro algo para dizer, finjo boas maneiras, embora ela não tenha nenhuma. Sim, minhas filhas me humilham, sobretudo com o inglês, envergonham-se de como falo, percebi nas vezes em que fomos ao exterior juntas. É o idioma do meu ofício, imaginei que o usava irrepreensivelmente. Elas, porém, insistem que não levo jeito, e têm razão. Na verdade, apesar de ter fugido, não fui muito longe. Se eu quiser, em um instante posso voltar a ser como essa mulher, Rosaria. Seria um pouco difícil, é claro. Minha mãe sabia se alternar sem dificuldades entre a ficção da bela senhora pequeno-burguesa ao surto atormentado sobre a sua infelicidade. Eu demoraria um pouco mais, mas conseguiria. As duas garotas, por sua vez, elas sim, realmente tinham se distanciado. Pertencem a outro tempo. Eu as perdi para o futuro.”
FERRANTE, Elena. A Filha Perdida. p.86.
E ela está de volta a esse site: Elena Ferrante. A misteriosa autora italiana, lançou A Filha Perdida em 2006 e ele é publicado aqui no Brasil pela editora Intrínseca.
Na verdade um jornalista “stalker” descobriu a identidade por trás do pseudônimo Elena Ferrante, mas como achei isso bem intrusivo, continuarei tratando a escritora apenas pelo nome que ela escolheu.
Esse livro voltou à moda por causa de sua recente adaptação para o cinema produzida pela Netflix. Falaremos sobre isso daqui a pouco.
Merece o burburinho? Merece. Fenomenal. Como essa autora consegue esviscerar as emoções humanas desse jeito é um de seus grandes méritos. Aqui no site mencionei várias vezes a tetralogia Napolitana, frequentemente chamada pelo nome do primeiro livro da série A Amiga Genial, que foi o maior sucesso de vendas de Elena Ferrante. Tanto A Amiga Genial, quanto o último livro da série, A História da Menina Perdida, tiveram textos próprios.

História da Menina Perdida
O efeito que teve sobre mim a leitura da Tetralogia Napolitana em termos de identificação de situações, raciocínios e sentimentos que por vezes nem eu mesma tinha me dado conta de já ter sentido, se repetiu durante a leitura de A Filha Perdida.
No último volume da tetralogia, que se chama História da Menina Perdida, Elena conta sobre uma garotinha que desapareceu e nunca mais foi encontrada. Apesar do título semelhante, A Filha Perdida é quase um thriller, e é uma trama totalmente diferente.
Uma professora universitária de literatura inglesa, quarenta e oito anos, chamada Leda, nascida em Nápoles e residente em Florença, vai tirar férias em uma praia italiana. Aluga um apartamento, leva seus livros e pretende, no sossego do litoral, preparar as aulas do próximo semestre.
Eis que uma numerosa família napolitana aluga uma casa enorme bem perto da praia e eles são barulhentos e encrenqueiros. Entre esse grupo ruidoso, Leda percebe a presença de uma mulher jovem e muito bonita que cuida com delicadeza, demonstrando bastante conexão de sua filha de três anos. Leda repara como aquela mulher, está tranquila e integrada com a filha e como elas não se envolvem nos excessos e na barulheira do resto da família. Ela inclusive anota os nomes da mãe, Nina, da filha, Elena, e da boneca da menina, Nane.
Um dia a menina se afasta do grupo e se perde em outro ponto da praia. Leda que vinha prestando bastante atenção, pois estava fascinada pelo comportamento daquela jovem mãe, sabe que a menina estava com o enorme chapéu da mãe e segue essa pista para ajudar a procurá-la, encontrando-a.
Mesmo nos braços da mãe menina continua chorando inconsolável. Então quando a família vem agradecer a Leda por ter auxiliado nas buscas, ela questiona por que a menina ainda chora e a tia e a mãe da garotinha explicam que ela perdeu a boneca que tanto ama.
Um segredo (que não é spoiler): a boneca foi afanada por Leda.
Pronto! Está formado o conflito. O desaparecimento da boneca vai desencadear várias outras situações e mexer profundamente com todos os personagens do livro, especialmente Leda e Nina.
Um dos assuntos mais pungentes no livro é a alteração que a maternidade causa no cotidiano das mães e o quanto isso afeta os planos de carreira de várias mulheres, sendo bem menos exigente em relação aos maridos. E aqui ela está falando de mulheres casadas e em relacionamentos heterossexuais. As mães solo tem um buraco ainda maior para escalar.
Também estamos falando dos conflitos que as mulheres podem enfrentar diante da realidade trabalhosa, o sacrifício para arrumar tempo para se dedicar às atividades profissionais, a culpa por às vezes perder a paciência com os filhos nesse processo e, muitas vezes, a incompreensão ou até egoísmo masculino.
Elena Ferrante vai no ponto, lá naquele fundinho da alma. Nada de personagens rasos. Se é para perturbar, vamos perturbar sem dó.
Nesse tema, a deliciosa escrita de Elena compartilha e desenvolve profundamente, na ficção, o argumento central de uma obra maravilhosa, ensaística, de Virgínia Woolf: Um Teto Todo Seu.

Um Teto Todo Seu
Virgínia, que já era uma escritora consagrada, fora convidada a palestrar sobre o tema mulheres e a ficção. E depois de pensar muito sobre como conduzir a palestra decidiu falar sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para conseguir produzir ficção. Resumindo muito, segundo Virgínia Woolf, elas precisam de dinheiro, não para serem ricas, mas para conseguir se manter enquanto se dedicam à escrita e precisam de um teto só seu, um lugar calmo, com o mínimo de interrupções, confortável, exatamente nos moldes dos recantos de que os homens, que a convidaram para palestrar, dispunham.
Isso no início do século XX, mas será que mudou muito a realidade? Esse é um assunto complexo e Um Teto só Seu é tão profundo, lindo, bem escrito e foi um rebuliço importante quando esses discursos vieram a público (são duas partes, proferidas em versões resumidas em ocasiões diferentes). Voltaremos a conversar sobre essa obra em um texto específico, porque merece.
Gostaria de ressaltar a importância da boneca para o enredo de A Filha Perdida. Inclusive porque esse tema da sobrecarga feminina só vem à tona no livro por causa da boneca. Como? Leia e descubra.
Foi impossível não juntar com uma leitura recente, compartilhada aqui que foi Torto Arado, de Itamar Vieira Junior.

Torto Arado
Em Torto Arado, a personagem Donana rouba uma faca linda em sua juventude. O plano inicial era vender e comprar coisas boas para seus filhos, mas ela fica tão impressionada pela beleza do objeto e ele suscita nela tantos sentimentos que ela não consegue se desfazer dele. A faca de Donana causará muitas dores, será usada para defesa, para vingança e ficará com suas descendentes, causando sobre elas o mesmo fascínio. É um objeto imprescindível para a trama. Belissimamente incorporado.
Por falar em objeto imprescindível, não podemos deixar de mencionar o anel da obra O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien.
O livro está ali, ao alcance da minha vista, na fila da leitura e qualquer hora dessas vai. Porém, por hora, trataremos do que eu sei sobre a obra e que vem dos filmes e da leitura de O Hobbit, cuja história antecede a contada em O Senhor dos Anéis.
Nem preciso dizer da beleza e da qualidade dos filmes da trilogia, certo? Um punhado de Oscars e outros prêmios é tipo autoexplicativo.
Vamos ao que interessa: o anel.
Dezenove anéis de poder foram fabricados, cada um com sua atribuição. Dezoito foram destruídos e, para o bem da Terra Média, o último também precisa sê-lo.
O que pouca gente sabia é que desde muito tempo esse objeto está sob posse de Bilbo Bolseiro, um hobbit, que faz, bem no início do filme, uma saída apoteótica, deixando o anel para o sobrinho Frodo Bolseiro. Ao saber que o anel está em posse de Frodo, Gandalf, o mago, dá a ele a responsabilidade de levar o anel em uma aventura casca grossa para jogá-lo nas lavas da Montanha da Perdição.
Frodo Bolseiro vai ter ajuda de representantes dos povos da Terra Média: anãos (não está escrito errado, a grafia é explicada na primeira página de O Hobbit), homens, elfos, seu amigo Sam, que também é um hobbit. E no time contra temos orcs, gobbelins, warfs, trols, magos do mau e todos comandados por Sauron, que é a parte mais interessada.

O Hobbit
É uma história que abusa da mitologia nórdica e, cujo estilo, influenciou muitos outros escritores, incluindo J.K. Rowling e George R.R. Martin.
Qual é o babado com o anel? Ele causa sobre seus possuidores uma obsessão que os torna capazes das maiores atrocidades para não se separar do anel. Pensando na cronologia da história, o objeto aparece em O Hobbit, sendo encontrado por Bilbo Bolseiro que se apossa dele, mesmo sabendo que ele era do personagem Gollum. O efeito do anel sobre as personalidades de seus detentores não é trabalhado no livro O Hobbit da mesma maneira que em O Senhor dos Anéis. Em O Hobbit o anel não é nem um personagem central, embora tenha tido muita importância na trama.
É isso, tanto a boneca roubada por Leda, quanto o anel roubado por Bilbo e a faca roubada por Donana, são objetos que nas obras de que fazem parte determinaram destinos de seus respectivos larápios e de quem os cercava.
Sobre o filme A Filha Perdida (de dezembro de 2021), a direção e o roteiro são assinados por Maggie Gyllenhaal e ela acertou em cheio. Ouvi dizer que está sendo cotado para dar a Olívia Colman seu segundo Oscar de melhor atriz. Ela está brilhante.
Além de Olivia Colman, também estão no filme Dakota Johnson, Jessie Buckley, Oliver Jackson-Cohen. O roteiro consegue captar o essencial. Toda a tensão, a obsessão da professora pela jovem mãe na praia, as confusões internas dos personagens.
Algumas alterações foram feitas. No livro todos os personagens são italianos, a praia não está claro qual é, mas seguindo a linha de outras obras de Elena Ferrante e o contexto, dá para chutar que é por ali na Costa Amalfitana.
No filme, os personagens italianos são apenas a família barulhenta, a professora Leda Carusso é estadunidense e leciona tradução do Inglês para o Italiano, a praia é na Grécia, o atendente do bar da praia é irlandês. Isso não é um problema para o âmago da obra, que trata de emoções universais, podendo ser ambientada em qualquer outro lugar.
Como de costume, o filme também melhorou a aparência do marido de Nina, que no livro é baixinho, atarracado, barrigudo e tem uma cicatriz forte e grande no baixo ventre. O Toni do filme é Oliver Jackson-Cohen, portanto…
A trilha sonora é muito legal também, até o Bon Jovi que o filme toca coube bem direitinho. Embora no livro fosse uma valsa, achei que ficou ótimo ser música mais agitada e pop, ainda que eu, particularmente, não goste de Bon Jovi.
Fora esses detalhes, a história é bem fiel à do livro. É um tremendo filme. Ponto para a Netflix e para Maggie Gyllenhaal! Recomendo demais.
FERRANTE, Elena. A Filha Perdida. Tradução: LINO, Marcello. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
FERRANTE, Elena. A Amiga Genial. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
FERRANTE, Elena. História do Novo Sobrenome. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
FERRANTE, Elena. História de Quem Foge e de Quem Fica. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
FERRANTE, Elena. História da Menina Perdida. Tradução: DIAS, Maurício Santana. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
WOOLF, Virgínia. Um Teto Todo Seu. Tradução: RIBEIRO, Vera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
JACKSON, Peter. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel/As Duas Torres/ O Retorno do Rei. Nova Zelândia & EUA: New Line Cinema, 2001-2003.
TOLKIEN, J. R. R.O Hobbit: Ou Lá de Volta Outra Vez. Tradução: LOPES, Reinaldo José. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021
VIEIRA JR., Itamar. Torto Arado. Rio de Janeiro: Todavia, 2019.
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