
A Casa dos Espíritos
“— E, se isso não der certo, senador, temos isso — acrescentou o general Hurtado, pondo sua arma do regulamento sobre a tolha.
— Não nos interessa um golpe, general —respondeu o agente da inteligência da embaixada em seu correto castelhano. — Queremos que o marxismo fracasse estrondosamente e caia por si mesmo, para eliminar essa ideia em outros países do continente. Compreende? Vamos conseguir isso com dinheiro. Ainda podemos comprar alguns parlamentares para que não o confirmem como presidente. Está na constituição. Não obteve a maioria absoluta, e o parlamento deve decidir.
—Tire essa ideia da cabeça, mister! —exclamou o senador Trueba. —Aqui não vai conseguir subornar ninguém. O congresso e as forças armadas são incorruptíveis. É melhor destinar esse dinheiro à compra de todos os meios de comunicação. Assim poderemos manipular a opinião pública, que, na realidade, é a única coisa que conta.
— Isso é uma loucura! A primeira coisa que os marxistas vão fazer é acabar com a liberdade de imprensa! —disseram várias vozes em uníssono.
—Acreditem, cavalheiros —respondeu o senador Trueba —, conheço este país. Jamais acabarão com a liberdade de imprensa. além disso, está em seu programa de governo: jurou respeitar as liberdades democráticas. Nós o pegaremos em sua própria armadilha.
O senador Trueba tinha razão. Não conseguiram subornar os parlamentares, e, no prazo estipulado pela lei,a esquerda assumiu tranquilamente o poder. Então, a direita começou a intensificar o seu ódio.”
ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. p.356.
A Casa dos Espíritos é a considerada a obra prima da escritora chilena, Isabel Allende.
Perfeitamente compreensível a razão de tal admiração. É um livro sensacional que conta a constituição, ascensão e queda do núcleo familiar dos Trueba, que era formado pelas linhagens dos Trueba e dos Del Valle. Divide-se em duas partes bem caracterizadas, sendo a primeira durante a vida da matriarca Clara Trueba e a segunda depois do falecimento dela.
Esse núcleo familiar cujo sobrenome é Trueba é composto por Esteban, sua irmã Férula, sua esposa Clara, seus filhos gêmeos Jaime e Nicolas, sua filha Blanca e sua neta Alba.
Clara era a cola que unia os Trueba, mesmo que nunca tenha se esforçado por ocupar esse papel, depois do seu desencarne a família perece. O termo desencarne cabe melhor do que o termo falecimento para se referir a Clara, posto que ela, de forma bastante sutil, prossegue influindo na dinâmica dos Trueba mesmo após a morte.
A segunda parte da trama enfoca as movimentações dos Trueba, cada um a sua maneira, frente ao golpe militar que havia destituído o presidente eleito. O golpe teve apoio das classes civis dominantes, incluindo o próprio senador Esteban Trueba como um articulador importante.
Para falar dessa segunda parte é preciso entender a ascendência de Isabel Allende. Ela é filha do diplomata Tomás Allende, que era muito próximo de seu primo Salvador Allende, que, por sua vez, foi o primeiro presidente de esquerda a vencer eleições no Chile tendo sido deposto em 1973 pelo golpe militar que empossou o General Augusto Pinochet. Isabel nasceu no Peru, enquanto seu pai servia ao Chile naquele país, entretanto sua nacionalidade foi registrada como chilena. Depois do golpe de 1973 a família Allende se mudou para os Estados Unidos e um tempo depois Isabel se naturalizou estadunidense.

Pôster de A Casa dos Espíritos.
A história familiar dos Trueba é toda permeada de política, seja na lida do patrão Esteban Trueba e seus empregados na fazenda Las Tres Marias, pelo fato de que o pai de Clara era um político e a mãe dela ter sido uma sufragista, o próprio Trueba passa grande parte da vida como senador, os filhos e a neta têm relações estritas com militantes de esquerda.
O país onde se desenrola A Casa dos Espíritos não é nomeado, mas obviamente se trata do Chile e da experiência pessoal da autora. Bem como o Presidente e o Poeta, que também não nomeados, seriam Salvador Allende e Pablo Neruda respectivamente.
A principal narradora é Alba, a neta que reconstrói a história da família a partir dos cadernos de anotar a vida da avó Clara e de memórias pessoais. O outro narrador é Esteban Trueba. Isso dá a possibilidade de examinar a trajetória deles por dois pontos de vista antagônicos, posto que Blanca se torna uma revolucionária e ele é um homem conservador, com traços de caráter extremamente violentos.
Os Garcia são outra família de importância no livro. São empregados da fazenda de Esteban, inclusive Esteban Garcia é filho de uma das empregadas com Esteban Trueba, fruto de um estupro.
E como mencionado no início do texto temos também os Del Valle. Esse é o núcleo responsável pelo realismo mágico.
A família de Clara é a coisa mais linda. Tem um casal amoroso e moderno, com a mãe sufragista, o pai admirador de novas tecnologias, o aventureiro tio Marcos, quinze filhos, com destaque para duas meninas, Clara e Rosa.
A cor é bem influente nos nomes dos personagens da família Del Valle. Todas as mulheres com exceção de Rosa, tem nomes sinônimos da cor branca: Nívea, Clara, Blanca e Alba. Já Rosa é uma personagem quase etérea. Lindíssima, dona de uma beleza mítica, com seus maravilhosos cabelos verdes. Esteban se apaixona por ela perdidamente, à primeira vista, e ao ter seu pedido de casamento aceito, parte para o garimpo de ouro com a missão de conseguir dinheiro para dar boa vida a Rosa.
Como Rosa acaba falecendo, por motivos que valem a pena ser lidos no livro, Esteban entra em uma onda de desilusão e parte para as terras abandonadas de sua família onde vai trabalhar até transformar Las Tres Marias em uma das fazendas mais prósperas do país.
Nove anos depois, retorna à cidade para pedir em casamento a enigmática Clara, irmã mais nova de Rosa.
Clara, é a melhor personagem do livro. Ela tem conexões paranormais, pauta sua vida pela sua relação com os espíritos, parece alheia às manias e rabugices de Esteban. Os filhos de Esteban e Clara não herdam os “poderes” da mãe, mas são profundamente influenciados por seus valores e estilo de vida, para desespero do conservador Esteban.

Cem Anos de Solidão, capa.
Realismo Mágico é meu gênero literário favorito, meu escritor preferido, até agora, é Gabriel García Márquez e o melhor livro do Gabo é Cem anos de Solidão (para mim, não para ele que chegou a declarar sua preferência por O Amor nos Tempos do Cólera).
A primeira metade de A casa dos Espíritos tem muito de Cem anos de Solidão.
Algumas correspondências: Pedro Garcia é pai de Pedro Segundo e avô de Pedro Terceiro na história ele corresponderia à primeira Úrsula Buendia; a beleza de Rosa é comparável à de Remédios; Pilar Ternera é equivalente a Trânsito Soto.
Isso para mim não é um problema. Ao contrário. Adoro quando alguém se inspira em histórias ótimas para contar outra história ótima tornando-a única. A influência de Cem anos de Solidão em A Casa dos Espíritos me parece óbvia e bem-vinda.
Mas não é na parte mágica da história que queremos focar aqui, mas sim na parte política. A irreconciliável luta de classes, a mentalidade de Esteban Trueba, representante da porção rica da sociedade, as aspirações de Pedro Terceiro e as falas de Clara que ofereceu aos filhos perspectiva divergente da do marido e permitiu a eles fazerem suas próprias escolhas.

Capa de Olhai os Lírios do Campo.
Quando o candidato de esquerda chega ao poder pelo voto, o país entra em uma convulsão patrocinada por nações estrangeiros para impedir o sucesso daquele governo democraticamente eleito. As elites tinham para si a perspectiva de que os menos favorecidos quando podiam fazer escolhas diferentes das apontadas por eles, escolhiam errado. Esses abastados políticos acreditavam serem eles os donos do capital e do discernimento. As diferenças de visão entre ricos e pobres em A Casa dos Espíritos são muito semelhantes às que observamos em outras duas grandes obras: Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo, e Germinal, de Emile Zola.
Olhai os Lírios do Campo tem texto aqui nesse site e esse tema se apresenta nas conversas entre os familiares da esposa do personagem principal, Eugênio, com destaque para o episódio em que recebem para jantar um pintor chamado Altamira. Então é possível notar a arrogância com que argumentos meritocráticos são apresentados e o desconforto dos anfitriões à medida que o artista visitante expõe seus pontos de vista.

Capa de Germinal
Em Germinal, que é uma obra claramente política, uma vila de pessoas que vivem em condições sub-humanas devido aos baixos soldos pagos pela atividade da mineração de carvão, decidem entrar em greve por melhores condições de trabalho. Esse é o conflito ao redor do qual todo o resto acontece. Em Germinal não há, como há em A Casa dos Espíritos ou Olhai os Lírios do Campo, um momento específico em que expoentes dos oprimidos e dos opressores discutem seus pontos de vista. Essa temática é conduzida por cenas narradas em terceira pessoa, em que Emile Zola constrói o cotidiano da família dos donos da mina e paralelamente retrata as angústias e dificuldades nas conversas e dia a dia dos mineiros.
Emile Zola trabalhou por um período em minas de carvão francesas para retratar aquela realidade o mais fielmente possível. O resultado é aterrador. Magnífico.
Saindo das diferenças sociais e passando ao aspecto governamental da política que também é muito importante em A Casa dos Espíritos, gostaria de indicar o filme Machuca, que também é chileno e tem como pano de fundo o governo de Salvador Allende, o golpe militar e a vida no Chile no início daquela ditadura.
Machuca é a história da amizade de dois meninos pré-adolescentes: Pedro Machuca e Gonzalo Infante.

Pôster de Machuca
Gonzalo estuda em uma escola católica particular, destinada a meninos ricos na cidade de Santiago no Chile. Um dia o padre que administra a escola apresenta seis meninos pobres que ingressariam como bolsistas naquela turma, entre eles Pedro Machuca. Pedro e Gonzalo se tornam amigos inseparáveis e por meio da história dessa amizade podemos acompanhar a escassez de alimentos vivida pelo Chile no governo de Salvador Allende, causada pelo boicote ao governo; manifestações de rua de pessoas pró e contra o governo; a tomada do poder pelos militares; a truculência da ditadura militar. Ainda nesse caldo acompanhamos as discussões entre os pais dos meninos ricos e os pais dos meninos pobres e todo preconceito e egoísmo destilado nesses diálogos. Machuca está disponível no HBO Max.
A Casa dos Espíritos foi adaptado para o cinema em 1993, em um filme muito interessante que conta com Meryl Streep como Clara, Jeremy Irons como Esteban, Winona Rider como Blanca, Antonio Banderas como Pedro Terceiro e Glenn Close como Férula. Esse filme pode ser encontrado na Netflix com alguns cortes ou na íntegra no Youtube.
ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. Tradução: PEREIRA, Carlos Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de Solidão. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. Rio de Janeiro: Record, 2018.
ZOLA, Emile. Germinal. Tradução: Rio de Janeiro: Penguin, 2004.
VERÍSSIMO, Erico. Olhai os Lírios do Campo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
AUGUST, Bille. A casa dos Espíritos. Alemanha, Dinamarca & Portugal: Paris Filmes, 1993.
WOOD, Andrés. Machuca. Chile & Espanha: Wood Producciones, 2004.
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