Capa de Um Cântico para Leibowitz

“…E então, padre, eu quase peguei o pão e o queijo.  – Mas você não pegou?  – Não.

– Então não houve pecado por ação.  – Mas eu quis muito, tanto que até senti o gosto. 

– De propósito? Você deliberadamente apreciou essa fantasia?  – Não.

– Você tentou de livrar dela. – Sim.

– Então também não houve a culpa da gula em pensamento. Por que você está confessando isso?

– Porque perdi o controle e lancei água benta nele.

– Você o que? Por quê?

Padre Cheroki, usando a estola, olhava fixamente para o penitente ajoelhado à sua frente sob a luz inclemente do sol do deserto. O padre não parava de se perguntar como era possível que um jovem daqueles (nem tão inteligente assim, até onde era capaz de perceber) conseguisse achar maneiras ou quase maneiras de pecar mesmo estando completamente isolado num deserto estéril, longe de toda distração ou de qualquer fonte aparente de tentação.”

MILLER JR., Walter M. Um Cântico para Leibowitz. p. 49.

 

Fantástico! Habemus novum dilectum liber: Um Cântico para Leibowitz, publicado pela primeira vez em 1959, escrito por Walter M. Miller Jr. Esse foi o único romance publicado em vida pelo autor e venceu prêmio Hugo de 1961. Depois de seu falecimento, em 1996, foi publicada a continuação chamada “Saint Leibowitz and the Wild Horse Woman”, que ainda não li e não sei se teve tradução para o português. Essa segunda obra foi terminada por um ghost writer.

Vamos dar uma breve passada por fatos da vida do autor, porque isso faz diferença para compreender a obra.

Ao que indicam os relatos de companheiros ele sofria de estresse pós traumático por sua atuação como combatente na Segunda Guerra Mundial, quando estava na casa dos 20 anos. Ele teria participado do bombardeio de um mosteiro beneditino na Itália o que foi um fato marcante entre os horrores da guerra, tendo o autor se convertido ao catolicismo em 1947. As constantes crises de depressão culminaram com o suicídio de Miller Jr. pouco depois do falecimento da esposa.

Um Cântico para Leibowitz se inicia em no século XXVI. É um futuro apocalíptico em que a humanidade precisa se reconstruir depois de ter passado por uma guerra nuclear no século XX. A ordem Albertiana  de Leibowitz se esforça para recuperar e guardar, fazendo disso sua missão, o conhecimento formal do mundo. Isso por meio de monges copistas e memorizadores que dedicam suas vidas a fazer cópias manuais de obras publicadas e manuscritos pré-guerra.

A ciência fora acusada de ser a causadora da destruição do planeta e, portanto, os seres humanos que restaram organizaram um movimento, se autodenominaram Simplórios e baniram todo o conhecimento. Apenas os clérigos sabiam ler e mesmo eles não entendiam completamente o que copiavam.

O livro, que é recheado de expressões em latim, é separado em três partes: Fiat Homo (faça-se o homem),  Fiat lux (faça-se a luz) e Fiat Voluntas Tua (seja feita vossa vontade). Na primeira é como se a humanidade estivesse na idade média, a segunda que se passa no século XXXII é como se fosse a transição da idade média para a moderna, marcada pela redescoberta da eletricidade (Fiat Lux). Na terceira, século XXXVIII, é o fechamento do ciclo em que o planeta Terra se direciona para a segunda catástrofe nuclear.

Os personagens principais de cada capítulo são maravilhosos e tem um coadjuvante que é responsável pelo elo entre as partes e também por algumas partes de alívio na tensão apocalíptica do livro. Esse último é um andarilho, um peregrino, um mendigo. Estupendo esse personagem. De longe meu preferido.

O planeta é repleto de personagens com deformações e doenças causadas pela radiação excessiva, os monges copistas passam anos a fio copiando e ilustrando documentos que eles nem mesmo entendem, a igreja católica na ordem de Leibowitz é a guardiã do conhecimento científico em todas as fases da obra.

Quem é Leibowitz? Bem, ele era um cientista estadunidense que viveu no século XX, sobreviveu ao horror nuclear e se tornou monge. Ele foi o responsável por conduzir a ordem religiosa em que ingressou a se dedicar a preservar o conhecimento em uma época de ultra perseguição a tudo o que remetesse a qualquer educação formal. Em Fiat Homo ele é um beato e a ordem Albertiana de Leibowitz, encontra evidências que podem levar à canonização caso convençam Nova Roma.

O retrocesso do conhecimento era tão grande que no século XXXII, na segunda parte do livro, apenas 8% da população terrestre sabia ler e escrever, ao passo que em Fiat Voluntas Tua (séc. XXXVIII) a capacidade tecnológica supera a que dispomos hoje, inclusive com vários planetas habitados por humanos que vão e voltam para a Terra com relativa facilidade.

Na primeira parte, 600 anos depois da catástrofe nuclear, os monges copistas fazem trabalhos minuciosos para preservar o conhecimento copiando e, por vezes, fazendo iluminuras em suas cópias para manter guardados os originais e ter um backup de tudo o que conseguem reproduzir. O personagem principal desse capítulo é um desses monges, o irmão Francis. Ele descobre documentos originais assinados pelo beato Leibowitz e se dedica a copiar um desses em seu tempo livre. Quando irmão Francis descobre esses documentos fica claro que os monges nem sempre sabiam o que estavam copiando, por exemplo um desses documentos do século XX era aparentemente uma lista de compras, outro era o desenho de um circuito elétrico.

Capa do álbum Paratodos.

Essa constatação de que os monges lhe davam com artefatos e documentos que não faziam ideia do que era, está no mesmo princípio da letra da música Futuros Amantes de Chico Buarque, em que escafandristas exploram a cidade do Rio de Janeiro, então submersa, milênios a frente do nosso tempo e pessoas consideradas sábias tentam, sem sucesso, interpretar os documentos encontrados.

“Não se afobe, não/Que nada é pra já/O amor não tem pressa/Ele pode esperar em silêncio/Num fundo de armário/Na posta-restante/ Milênios, milênios/ No ar/E quem sabe, então/O Rio será/ Alguma cidade submersa/ Os escafandristas virão/Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas/ Sua alma, desvãos / Sábios em vão/ Tentarão decifrar/ O eco de antigas palavras/ Fragmentos de cartas, poemas/ Mentiras, retratos/ Vestígios de estranha civilização (…)”

Mais seiscentos anos depois, em outra fase da existência humana, já existem acadêmicos. Existem pessoas dispostas a fazer contraponto tanto à Igreja quanto aos simplórios. Nesse ponto o personagem principal é Thon Tadeu. Um homem de história familiar complexa, estudioso e cético. Consegue com o Papa autorização para examinar os documentos do então São Leibowitz. O objetivo do acadêmico era desmoralizar o santo e consequentemente desmoralizar a religião católica. Então, ele ruma para o mosteiro onde estão os documentos.

Para surpreender Thon Tadeu, o irmão Kornhoer, que tinha inventado uma lâmpada elétrica, propõe ao abade colocar sua invenção na cabine em que o Thon* usaria. Essa operação tem triplo sucesso, ilumina, impressiona e dá ao irmão Kornhoer uma bolsa de estudos na capital.

Como funcionava esse lindo aparato de iluminação? A eletricidade era gerada por monges que pedalavam para movimentar correias posicionadas atrás da cabine enquanto o Thon estivesse lendo. Exaustivo! Pobres monges.

Pôster da 1a temporada de Black Mirror.

Algo semelhante acontece no episódio Quinze Milhões de Méritos, segundo da primeira temporada da série de historietas distópicas independentes entre si chamada Black Mirror.

Naquele episódio muitas pessoas têm como emprego remunerado a função de pedalar para gerar energia para a humanidade. É um subemprego e praticamente o recurso advindo da atividade é todo usado para comprar programas de televisão de qualidade questionável e entorpecer essa casta subalterna da humanidade. Claro que, como todo episódio dessa série, há um plot twist e dois personagens vão tentar a única oportunidade que teriam para mudar de classe social, que seria participar e vencer um show de talentos, daqueles que humilham os participantes menos talentosos para entretenimento do público.

Essa temporada e a segunda foram transmitidas pela emissora britânica Channel 4, as subsequentes pela Netflix, onde estão disponíveis todas as temporadas.

Provavelmente Charlie Brooker, criador de Black Mirror, conhecia Um Cântico para Leibowitz, pois parece óbvio seu gosto por ficção científica e distopias. Quem sabe não veio daí uma das fontes de inspiração?

No último capítulo do livro: Fiat Voluntas Tua, o nível de radiação no ar é maior que nas duas eras anteriores e a quantidade de pessoas com doenças incuráveis, mutações e deformidades também é maior. Graças a essas  mudanças genéticas originadas pela radiação, alguns temas polêmicos estão em discussão, como eutanásia/suicídio assistido.

Uma personagem coadjuvante que ilustra esse debate é uma vendedora de tomates, que tem duas cabeças. A cabeça extra, que ela chama de Raquel, era inanimada, mas passou a interagir com ela de repente e ela busca na abadia de São Leibowitz batismo para Raquel.

O Abade argumenta que isso tem que ser procurado na paróquia dela, que existe subdivisão por território e que ele não pode tratar desse assunto. Na verdade, ele acha um acinte batizar Raquel, porém não quer se indispor com a senhora Grales.

A cabeça Raquel remete ao hacker da animação Wi-Fi Ralph, que também tinha um rosto no pescoço do qual o personagem Ralph não consegue tirar os olhos, mesmo fazendo todo o esforço para não olhar. Exatamente como o irmão Joshua e o abade quando interagem com a senhora Grales.

Pôster de Wi-Fi Ralph.

Naquela excelente animação, movido por ciúmes, Ralph procura um hacker no submundo da internet para criar um vírus capaz de destruir um jogo e conseguir então convencer sua amiga Vanelope a retornar com ele para o fliperama onde moram e, consequentemente, para o Sugar Rush, jogo original dela.

Fiat Voluntas Tua, último capítulo de Um Cântico para Leibowitz, é marcado pela luta do Abade Zerchi para convencer a organização Estrela verde (uma ONG de atuação similar à Cruz Vermelha) a não incentivar seus pacientes terminais ao dar fim à própria vida. É a argumentação espiritual do abade versus o pragmatismo nada dogmático da medicina no século XXXVIII.

Capa do disco Eva

Por fim, uma música que ouvi muito na infância, porque minha vizinha e um primo adoravam: Eva, da banda Radio Taxi. Que trata de um apocalipse e uma nave que seria uma nova versão da Arca de Noé, em que a tripulação era apenas um casal. Não vou destrinchar a passagem, mas o livro de Miller Jr. tem uma espécie de arca da aliança e guardiões responsáveis por salvar o legado de São Leibowitz que tem tudo a ver com a letra dessa música de 1983.

 

*Thon significa Dom – designação para clérigos e acadêmicos

MILLER JR., Walter M. Um Cântico para Leibowitz. Tradução: NETTO, Maria S. M. São Paulo: Aleph, 2014.

BROOKER, Charlie. Quinze Milhões de Méritos. In: Black Mirror. Reino Unido: Endemol UK, 2011-atual.

JOHNSTON, Phil & MOORE, Rick. Wi-fi Ralph. EUA: Disney, 2019.

https://www.youtube.com/watch?v=fT2JO_uIEcg