Capa de Os Testamentos.

Eu não tinha como saber se esses ruídos eram reais ou se eram apenas gravações, reproduzidas para me dar nos nervos e arrasar minha determinação. O que quer que restasse dela: depois de alguns dias, perdi o fio daquela trama. A trama da minha determinação.

Fiquei esquecida na minha cela crepuscular por sabe-se lá quanto tempo, mas não pode ter sido tanto assim a julgar pelo comprimento das minhas unhas quando me tiraram dela. Mas o tempo passa diferente quando você está trancada no escuro sozinha. Passa mais devagar. Você nem sabe quando está dormindo ou acordada.

Havia insetos? Sim, havia. Eles não me mordiam, então acho que eram baratas. Eu sentia suas patinhas palmilhando meu rosto, afetuosamente, cautelosamente, como se minha pele fosse de gelo fino. Eu não as afugentava. Depois de um tempo você fica grata por qualquer contato físico.”

ATWOOD, Margaret. Os Testamentos. p. 165.

 

Margaret Atwood arrasou novamente! Os Testamentos, livro que se passa 15 anos depois do último acontecimento da obra O Conto da Aia, é um fechamento interessante para aquela história que terminou em aberto. Não se trata de uma continuação, como dito 15 anos separam o fim de uma trama e o início da outra. Pode ser considerado continuação se considerarmos que trata-se da história de Gilead e não das personagens. A narrativa segue mais ou menos o mesmo formato, o que antes eram fitas K7 com o depoimento de uma aia, agora são

diários, escritos por outras pessoas.

Antes de falarmos de Os Testamentos, vamos passar pela série produzida pela Hulu, exibida no Brasil pela Paramount.

Cartaz da série The Handmaid’s Tale

A série The Handmaid’s Tale contém integralmente a obra O Conto da Aia na primeira temporada e ela extrapola o livro. Após a aquisição dos direitos da editora, os roteiristas da série fizeram, com a consultoria de Margaret Atwood, uma história mais completa, incluindo pontos de vista de outros personagens importantes. Atwood é agora uma das produtoras da série junto com Elizabeth Moss, que por sua vez interpreta a aia Offred.

Como o livro O Conto da Aia é narrado em primeira pessoa e é o depoimento de Offred, ele se limita ao que ela percebe, às situações que vivencia.

A série deu um nome pré-Gilead à Offred: June Osbourne. Deu mais detalhes de sua vida quando o território de Gilead ainda compunha os Estados Unidos do que podemos ler no livro. Também quanto à estratificação social a série mostra experiências de outras aias, tias, econo-famílias, mayday (resistência), com maior complexidade. Afinal de contas já se vão quatro temporadas com a perspectiva de mais uma para fechar.

Ainda na primeira temporada, há algumas diferenças entre o livro e a série, como a casa de Jezebel, que no livro é um ambiente velho e decadente e na série é uma casa de prostituição luxuosa. Outra diferença está na aparência e passado de Serena Joy. No livro ela era ex-apresentadora de programa de TV, já estava mais velha e andava com a ajuda de uma bengala, enquanto na série (interpretada pela atriz Yvone Strahovski) Serena é jovem, e era uma escritora estadunidense que ajudou a arquitetar o que viria a ser Gilead.

Por que começar o texto com a série? Porque já falamos do livro O Conto da Aia e porque entre a primeira e a quarta temporadas da série e, provavelmente, a quinta, que ainda está em produção, terão muitos elementos que explicam como aquela trama foi se desenvolvendo até  se tornar o que está em Os Testamentos.

Capa do livro O conto da Aia.

O conteúdo das temporadas 2, 3 e 4 mostram por exemplo como a Tia Lydia conquistou sua influência sobre os comandantes e como as tias competiam entre si por poder. Também há algumas semelhanças entre Os Testamentos e alguns acontecimentos dessas temporadas. Como se esse livro tivesse inspirado algumas cenas.

Pode ser que o final da série não conclua essa ponte entre os livros. E tudo bem. Se isso acontecer teremos dois finais para uma história genial. Mas em minha modesta opinião seria ainda mais interessante se a quinta temporada consolidasse o elo entre O Conto da Aia e Os Testamentos.

Os Testamentos tem três personagens principais que fazem seus diários, seus relatos. Uma delas é a Tia Lydia e ela tem a história mais instigante entre as três. É incrível como Margaret Atwood constrói o período de formação das primeiras tias e demonstra como tantas mulheres foram convencidas a assumir a função de tia, que é basicamente oprimir outras mulheres. É um relato bastante diferente do apresentado na série em um flashback sobre ela. Prefiro o do livro. É bem mais completo, esclarecedor e aterrador.

Apesar de estar explicado, não há como justificar. A Tia Lydia faz escolhas que deixam claro que ela, uma vez a par de sua situação acerca das forças e fragilidades em suas mãos, fez escolhas radicais, que a colocaram numa situação de poder pelo qual ela lutou, se esforçou, sendo ainda mais útil e prestativa que o próprio regime totalitário esperava, consequentemente mais opressora.

Também há castas do universo gileadeano que não haviam aparecido, até então, nem no primeiro livro nem na série, mas que têm sua criação justificada pelo papel desempenhado na manutenção do governo totalitário teocrático à medida que as novas gerações vão se posicionando para suceder aos fundadores. As pessoas que viveram a implantação do Estado de Gilead, começam a preparar novas tias, aias, comandantes, esposas e etc.

A trama mostra como o regime recruta mulheres estrangeiras. Apesar de a ida ser voluntária, uma vez em Gilead, sair de lá pode ser um problema em caso de arrependimento.

Claro, há as mulheres que conseguem fugir. As que escapam de Gilead, o fazem pela Rota Clandestina Feminina, que muda de tempos em tempos sempre que descoberta. Essa Rota foi inspirada na personagem real Harriet Tubman.

Pôster filme Harriet

O filme Harriet (2019), da Focus Features, conta a história de Araminta Ross (1822-1913), que mudou seu nome para Harriet Tubman e foi interpretada pela atriz Cynthia Erivo.

Essa mulher extraordinária foi escravizada em uma fazenda no estado de Maryland, nos Estados Unidos, e conseguiu a proeza de fugir para cidade da Filadélfia sozinha, avançando cerca de 160km, por caminhos perigosos e totalmente desprotegida. Isso já seria um grande feito, mas ela não parou por aí.

Harriet  se juntou a um grupo anti-escravista que, sediado na cidade de Filadélfia, tinha apoio em diversos pontos do país, para libertar outros cativos das fazendas do sul.

As rotas que eles faziam eram chamadas de Ferrovias Subterrâneas e em seus percursos contavam com vários postos de paradas onde pessoas afeitas à causa abolicionistas davam suporte às fugas. Harriet liderou várias expedições de libertação de escravos tornando livres cerca de setenta pessoas entre os anos de 1849 e 1860. Nessa fase ela foi apelidada de Moisés, primeiro porque os escravistas do norte achavam que se tratava de um homem, segundo pela alusão Bíblica ao escolhido que leva pessoas à terra prometida.

O filme venceu o Hollywood Film Awards de melhor atriz e foi indicado a diversos prêmios entre eles duas indicações ao Oscar: Melhor atriz e Melhor Canção Original. É um bom filme, embora a história de Harriet Tubman, a meu ver, tenha potencial para fazer uma trama ainda mais complexa e interessante.

Foto de Harriet Tubman tirada em 1860. Ela viveu de 1820 a 1913.

A história da heroína estadunidense é retratada no filme mais detidamente no recorte da atuação nas Ferrovias Subterrâneas, mas ela foi ainda mais longe pela causa abolicionista.

Tubman serviu ao Exército da União na guerra civil americana, primeiro como espiã, depois liderando tropas e guiando barcos. Nesse período, ela auxiliou na libertação de centenas de pessoas.

Harriet Tubman na vida real e Offred na ficção foram mulheres que lutaram para libertar outras pessoas que sofriam a mesma condição de opressão que um dia elas próprias sofreram. Algumas personagens de Os Testamentos também deram contribuições importantes nesse sentido. Foi muito bom ler outras histórias naquele cenário e condições desoladoras. Vale a leitura. Vale também assistir à série. Ansiosa pela quinta temporada.

 

ATWOOD, Margaret. Os Testamentos. Tradução: CAMPOS, Simone. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Tradução: DEIRÓ, Ana. São Paulo: Rocco, 2017.

ATWOOD, Margaret & MOSS, Elisabeth. The Handmaid`s Tale. EUA: Hulu, 2017-atual.

LEMMONS, Kasi. Harriet. EUA: Focus Features, 2019.