
Capa do livro Flores para Algernon
“7 de abril – Usei a vírgula errado. É uma pontuação. A profa. Kinnian me disse para olhar as palavras compridas no dicionário para aprender a soletralas. Eu perguntei qual é a diferença se você consegue ler de qualquer forma. Ela respondeu é parte da sua educação então de agora em diante vou olhar todas as palavras que não tiver certeza de como escrever. Demora um bom tempo pra escrever dessa forma mas acho que estou me lembrando cada vez mais.
De qualquer forma foi assim que acertei a palavra pontuação. Está assim no dicionário. A Profa. Kinnian diz que um ponto final é pontuação também, e há muitos outros sinais de pontuação a aprender. Eu disse a ela que pensei que todos os pontos finais tinham que ter caudas e se chamar vírgulas. Mas ela disse que não.
Ela disse, Você, tem de. misturar? todos! eles: Ela mi? mostrou” como, misturar! todos; eles, e agora! Eu consigo. misturar (todos os? tipos de pontuação- na, minha escrita! Há” muitas regras; a aprender? Mas. Estou entendendo elas na minha cabeça:”
KEYES, Daniel. Flores para Algernon. p. 37.
Flores para Algernon, de Daniel Keyes, é um livro que começou a ser escrito nos anos 50, sendo publicado como conto em 1956 e como romance em 1966.
Exceto pelo uso do termo “retardado” e suas derivações, para se referir a pessoas com deficiência intelectual em diversos pontos da história, poderia ter sido publicado em 2021, é uma história atemporal. é importante dizer que, na época de lançamento do livro esse não era um termo pejorativo, inclusive a adaptação de Flores para Algernon para o cinema, em 1968, contou com o apoio de várias instituições estadunidenses e uma delas se chamava: “The President’s Commitee for Mental Retardation.” Esse filme, que será comentado mais à frente.
No Epílogo, há uma explicação sobre a concepção do livro em que Daniel Keyes relata que trabalhava como roteirista para Stan Lee quando surgiu a ideia. Ao longo do livro fica bem perceptível a cadência de história de Super-herói.
Charlie foi a primeira cobaia humana de um experimento para aumentar a inteligência. O procedimento era uma operação neurológica, destinada a pessoas com QI por volta de 70. As dúvidas dos cientistas eram: é possível aumentar a inteligência de alguém? Uma vez aumentado o QI, essa mudança chega até quanto? Seria duradouro?

Cena do filme Flores para Algernon.
Algernon, personagem que dá nome à obra, é sensacional e inusitado: um rato de laboratório que fora cobaia da mesma experiência, antes do teste em humanos.
Charlie Gordon trabalhava em uma padaria fazendo serviços simples e estudava em uma escola para pessoas com deficiência intelectual. Ele nascera assim. Apesar de suas dificuldades, era capaz de morar sozinho e executar seus trabalhos na padaria, pelos quais era remunerado. Frequentava uma escola para pessoas com deficiência intelectual, onde trabalhava a professora Alice Kinnian.
A Universidade que conduziu a pesquisa para aumentar a inteligência procurou a professora Alice e a solicitou que indicasse um dos alunos para participar da experiência científica. Na percepção de Alice, Charlie era o aluno que tinha mais vontade de aprender, além de ser gentil, posto que outras pessoas com a mesma capacidade intelectual tendiam a ser mais agressivas e reativas.
O procedimento neurológico a que Charlie fora submetido era sigiloso, ele não poderia contar a ninguém antes de os cientistas revelarem os resultados ao mundo. Por isso, a surpresa geral à medida que Charlie ficava mais e mais esperto.

Cartaz do filme Os Dois Mundos de Charly
Charlie atribuía sua solidão ao fato de não ser inteligente. Para ele todas as pessoas que o abandonaram, o fizeram por ele ser pouco inteligente. Seus únicos amigos eram o pessoal que trabalhava com ele na padaria. Nessa jornada ele entenderá que sua solidão não era exatamente como ele percebia e que o baixo QI não é a única razão para uma pessoa ter ou não amigos. Vai perceber por exemplo, que pessoas em quem confiava não eram boas para ele, se aproveitavam de sua condição, como quem se acha superior humilhando outros.
Daniel Keyes construiu uma história de ficção científica para ser lida com uma caixinha de lenços do lado. À cada vitória e à cada derrota de Charlie o leitor vai se envolvendo no raciocínio do personagem e sentindo com ele as mesmas emoções.
Um aspecto desse livro que é certamente uma das chaves para seu sucesso é a estratégia narrativa. Flores para Algernon é narrado por Charlie, na forma de relatórios de progresso.
Ele escrevia relatórios de progresso diários. Inicialmente, as anotações do personagem eram cheias de erros ortográficos e pontuação e aos poucos foram melhorando e se sofisticando. Charlie não é, portanto, um narrador onisciente, ele vive um dia de cada vez sem fazer ideia do que ocorrerá em seu futuro próximo.
Traumas do passado, começam a desencadear efeitos no presente pós operação. Em um dado momento, Charlie Gordon se apaixona por Alice (professora Kinnian) e é correspondido, entretanto ele tinha fortes acessos de náusea quando tentava ter relações íntimas com ela. Em flashbacks e depois no depoimento de outra personagem importante do livro, Keyes fornece a explicação da origem desse sintoma em alguns fatos sobre a descoberta da sexualidade pelo Charlie adolescente.
As náuseas se assemelham ao que sentia o personagem Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, depois de ser submetido ao tratamento de recuperação de delinquentes, quando ele passa a sentir mal estar incontrolável ao pensar em cometer crimes que antes eram corriqueiros em sua vida. O tratamento Ludovico, imaginado por Antony Burgess, causa nos “pacientes” uma espécie de trauma que desencadeia tamanho asco a ponto de impedir que eles deem sequência a atos de violência.

Capa do livro Laranja Mecânica.
A forma como foi tratada a sexualidade de Charlie o impedia de exercê-la, ficou gravado em seu subconsciente que aquilo era errado.
Uma constante em Flores para Algernon são as humilhações a que Charlie é submetido por pessoas que se aproveitam de sua condição para rirem dele.
Pouco depois da operação cerebral, Charlie começa a recobrar lembranças do passado. Essas lembranças vêm de forma abrupta e fragmentada. Uma das primeiras lembranças da vida dele é sobre uma menina chamada Harriet, por quem todos os garotos da escola, incluindo ele, eram apaixonados. Ele se lembra de que ela nunca ria dele nem o provocava. Então no dia dos namorados, um dos garotos malvados diz a Charlie que iriam dar presentes para Harriet e ele se prontifica a dar um presente também. Charlie escolhe dar a ela um medalhão em formato de coração que era dele, ele narra o cuidado que teve para fazer o embrulho e que no dia seguinte levou o presente e pediu a um menino chamado Hymie Roth que escrevesse o bilhete, visto que ele ainda não sabia escrever. Acontece que Hymie não escreve as palavras que lhe foram ditadas. A consequência é que Charlie perde a amizade de Harriet e ainda apanha dos irmãos dela.

Cartaz do filme O Grinch.
No filme infanto-juvenil O Grinch, baseado na obra de Dr. Seuss, o personagem principal é um “quem” (nome da espécie que habita o mundo do filme) bastante diferente dos demais. Por ser verde e peludo o Grinch sofreu todo tipo de bulling que poderia ter sofrido na escola e é por causa de um desses incidentes que ele decidiu morar longe dos outros quens e odiar o natal.
O Grinch, que assim como Charlie Gordon não tinha dinheiro para ir à loja comprar nada, passa a noite construindo um presente de natal para Martha May, que era a menina mais linda da escola e que o tratava como igual. Ele era apaixonado por Martha May. E não foi só isso, preocupado com sua aparência e influenciado pelos colegas ele tenta se barbear, para ficar menos diferente dos outros quens. A inexperiência do pequeno Grinch com o barbeador, faz com que ele se corte várias vezes. Então no outro dia ele aparece na escola usando saco de papel na cabeça para esconder os machucados.
Quando os alunos se juntam para trocar presentes e chega a vez dele, a professora insiste para que o Grinch retire o saco de papel da cabeça. Então ele entrega o presente para Martha May e tira o saco de papel sendo simultaneamente alvo de chacota pelos machucados e pelo presente que não era um artigo comprado pronto, mas feito em casa. Todos riem dele, até a professora. A única quem que não ri, assumindo uma feição de piedade é Martha May. Depois desse episódio, Grinch se muda solitário para o alto da montanha e passa a odiar o natal e a Vila dos Quem.
Flores para Algernon foi adaptado como longa metragem pelo menos duas vezes. A primeira para o cinema se chama Os Dois Mundos de Charly, é de 1968 e rendeu Oscar de melhor ator a Cliff Robertson e Globo de Ouro de Melhor roteiro para John Pielmeier. Esse roteiro fez várias adaptações na história original, que não deterioraram o sentido do livro, tendo sido um bom filme.
O segundo, tem o mesmo nome da obra de Keyes: Flores para Algernon. É um filme para televisão, que apesar de ser ambientado nos anos 90, é bastante fiel ao livro. Em comparação ao filme de 1968, é notável que o orçamento desta versão era menor. Se for assistira a apenas um, recomendo o mais antigo.
Esse livro inspirou outras dezenas de episódios em séries, incluindo o nono da décima segunda temporada de Os Simpsons. Naquele episódio chamado HOMR, é removido um giz de cera que estava incrustado no cérebro de Homer, que após a cirurgia passa a ser inteligente.

Imagem da série Os Simpsons
Ainda nessa linha, um episódio que pode ter sido inspirado por Flores para Algernon, mas que, assim como os Simpsons, nem de longe tem a seriedade da Obra de Daniel Keyes, é o Esperando Eduardo da série de animação Acampamento de Lazlo, do Cartoon Network.
É muito engraçado, como tudo da série Acampamento de Lazlo. O personagem Bananinha, que é uma lesma assistente do chefe do acampamento, sofre um acidente por causa da estupidez dos personagens Caio e Abel, que são irmãos gêmeos da espécie conhecida vulgarmente no Brasil como besouro-rola-bosta.
Para conter as trapalhadas dos gêmeos, Bananinha encarrega o ornitorrinco Eduardo de tomar conta deles, Eduardo os pendura de ponta-cabeça em uma árvore, para que eles não tenham como sair e consequentemente não façam mais nada desastroso.

Poster da série Acampamento de Lazlo
Eis que o efeito do castigo é que o sangue dos besouros se acumula na cabeça, irrigando seus cérebros e tornando-os superinteligentes. É hilário assistir aos outros membros do acampamento indo até eles para obter informações intelectualmente refinadas. Por algumas horas Caio e Abel, que nunca eram levados a sério, se tornam gurus do acampamento.
KEYES, Daniel. Flores para Algernon. Tradução: GEISLER, Luisa. São Paulo: Aleph, 2018.
BURGESS, Antony. Laranja Mecânica. Tradução: FERNANDES, Fábio. São Paulo: Aleph, 2012.
SHEESLEY, Brian & ERDEL, Stepahnie. Esperando Eduardo – episódio 3, temporada 3. In: Acampamento de Lazlo. EUA: Cartoon Network, 2006.
HOWARD, Ron. O Grinch. EUA: Universal Pictures, 2000.
NELSON, Ralph. Os dois mundos de Charly. EUA: Selmur Pictures, 1968.
ZAIDAN, Craig & MEDAN, Neil. Flores para Algernon. EUA: Alliance Atlantis, 2000.
ANDERSON, Mike B. HOMR – episódio 9 Temporada 12. In: Os Simpsons. EUA: Fox, 2001
https://www.youtube.com/watch?v=1wE32ue-H1A
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