Capa do livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.

Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia o barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.”

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In: Feliz Ano Novo.

“Joaquim brigara com Amadeu por causa do filho médico deste. Joaquim também tinha um filho, Manuel, que era vadio, ignorante, não gostava de estudar e nem terminara o ginásio. As relações dos dois foram se envenenando à medida que Carlos fazia os cursos e Manuel passava os dias vagabundeando pelas ruas. No dia em que Carlos se formou, Joaquim, sentindo-se pessoalmente afrontado, deixara de falar com Amadeu”.

FONSECA, Rubem. O Pedido. In: Feliz ano novo.

“E quando a Nau Santo Antônio chegou a Lisboa, Albuquerque Coelho, que se orgulhava de sua fama de cristão, herói e disciplinador, proibiu a todos os marinheiros que falassem do assunto. Do que afinal transpirou, fez-se a versão romântica da Nau Catrineta. Mas a verdade crua e sangrenta, está aqui no diário de Manuel de Matos.

A sala pareceu escurecer e uma lufada de inesperado ar frio entrou pela janela, balançando as cortinas.”

FONSECA, Rubem. Nau Catrineta. In: Feliz Ano Novo.

 

Um soco no estômago. Feliz ano novo, livro de contos escrito por Rubem Fonseca, é recheado de histórias sobre reações ou modos de vida insólitos partindo de personagens de diferentes classes sociais e diferentes formações. Todas as histórias do livro são bastante intrigantes, violentas e nunca felizes.

A crítica social às aparências, hipocrisias, diferenças econômicas gritantes entre as classes, enfim toda a mediocridade, o lado B humano está escancarado nos 15 contos.

A primeira publicação de Feliz ano novo foi no ano de 1975 e foi sucesso imediato. Vendeu 30 mil exemplares em três tiragens. Esse livro tão diferente e incômodo, logo foi censurado pela ditadura militar, sob acusação de ser contra a moral e os bons costumes.

Ao término da ditadura militar, Feliz ano novo foi liberado da censura que lhe fora imposta e relançado no Brasil em 1989. Importante dizer que esse hiato de 14 anos não ocorreu fora do Brasil, pois suas traduções continuaram a circular pelo mundo.

Já falamos dos contos Passeio Noturno I e II no texto sobre O Médico e o Monstro e aqui trataremos de mais três. Isso será apenas uma amostra, para dar o gosto da diversidade das tramas.

O conto que dá início à coletânea também dá nome ao livro: Feliz ano Novo. Nessa história, rapazes de uma comunidade pobre no Rio de Janeiro inicialmente conversam sobre como seria a virada do ano novo deles e sobre a opulência que teriam os festejos das classes mais altas. O narrador, que é um dos rapazes, relata ter visto na televisão que os artigos de luxo teriam sido todos vendidos. Ou seja, as festas nos bairros ricos do Rio de Janeiro seriam pura ostentação.

Em contraste, o plano de alguns daqueles rapazes para o réveillon seria pegar os itens alimentícios das oferendas feitas aos orixás por ocasião da passagem de ano para se alimentarem.

Logo os protagonistas se perdem em elucubrações sobre como seria a festa dos grã-finos e o que fariam naquele 31 de dezembro se fossem ricos, seguem comparando suas vidas com a situação das pessoas da alta sociedade. Eis que o papo evolui para os roubos que eles já cometeram, as armas de fogo que teriam disponíveis, como a polícia os tratava e… surgiu a ideia de invadir uma festa de réveillon em uma casa de bacana. É aí que a história começa a rolar ladeira abaixo.

O tom daquela conversa entre amigos é agressivo, criando no leitor um mal estar ao se deparar com tanto desprezo. As condições de vida dos grupos sociais é tão díspare que um invisibiliza o outro, coisifica. E aí está o maior mérito do conto: mostrar às classes abastadas, que normalmente veem os mais desfavorecidos como bichos, inconvenientes, desprovidos de sentimentos e humanidade, que também eles podem ser percebidos como coisas, sem sentimentos, desprovidas de humanidade.

Poster de Pulp Fiction.

O tom casual do planejamento até a chegada à casa e o anúncio do assalto, lembra o início de um dos melhores filmes já produzidos: Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Esse filme é todo violento e irônico, cheio de diálogos sensacionais e nessa cena inicial um casal discute sobre não mais fazer o que fazem, por ser muito arriscado. Eles estão em um restaurante e à medida que desenrola o diálogo percebemos que são assaltantes de banco. Ele diz que prefere não fazer mais isso de assaltar bancos e ela questiona o que fariam então, aí ele informa a nova ideia: iriam assaltar restaurantes. Segundo o marido, a polícia não fica de prontidão em estabelecimentos como aqueles, além de outras vantagens em relação à segurança e os ganhos.

Então eles se beijam, fazem declarações de amor um para o outro : “– I love you, Pumpkin!   – I love you, Honey Bunny!”.

E em seguida anunciam o assalto: “-Everybody cool this is a robery!  -Any of you fucking pricks move, and I’ll execute every motherfuckin’ last one of you!” 

E aí a música,  irrompe a música Misirlou, de Dick Dale, fazendo um excepcional início de filme. Assim como esse conto fez um excepcional início de livro e já deu o tom de que se se o leitor quer final feliz, veio ao lugar errado.

Aliás um filme que é uma obra de contos nesse estilo é o maravilhoso Relatos Selvagens. Em Relatos Selvagens são seis histórias de pessoas que a partir de acontecimentos traumáticos ou corriqueiros perderam totalmente a compostura e deram andamento inusitado às suas vidas.

Relatos Selvagens é uma produção argentina e espanhola, produzido por Pedro Almodóvar e Axel Kuschevatzky, dirigido por Damián Szifron. Foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e recebeu diversos prêmios de melhor filme, como o Goya e o Bafta.

O conto O pedido, de Feliz ano novo, cria efeito precido com o das histórias de Relatos Selvagens. Nele, dois homens que foram muito amigos no passado se reencontram. Na verdade, um deles, Amadeu, nem se lembra porque eles brigaram e por estar em situação financeira muito complexa, resolve recorrer ao ex-amigo, Joaquim.

Joaquim, se lembra porque eles não conversam mais e de fato não houve uma ofensa, o afastamento foi por inveja, visto que o filho de Amadeu era médico e o de Joaquim era um vagabundo.

À medida que Amadeu narra suas desventuras, sendo a principal delas o falecimento prematuro do filho Carlos, vai amolecendo o coração do invejoso Joaquim, que emocionado caminhou em direção ao cofre para ajudar ao amigo. Até que displicentemente Amadeu pergunta a Joaquim como vai seu filho Manuel. Esse foi o ponto preciso como uma agulha de acupuntura que desligou a amabilidade.

 

O meu conto favorito de Feliz ano novo é Nau Catrineta. Nele, uma família um tanto formal e excêntrica vai oferecer um jantar em comemoração ao 21º aniversário do sobrinho. A linguagem desse conto é ligeiramente rebuscada. Os presentes no jantar são, além do tal sobrinho, as quatro tias, vestidas com figurinos de personagens do século XVI, e a jovem Ermê, a escolhida pelo sobrinho.

Poster do filme Corra

Os cinco membros da família seriam os últimos vivos da linhagem, o sobrinho era órfão e fora criado pelas tias. As tias definem a família como sendo carnívoros e artistas. Durante o jantar, a moça convidada fica atenta às histórias dos ancestrais, histórias de caça e de canibalismo em situações extremas quando vindo de Portugal abordo da Nau Catrineta.

Neste ponto, paro o relato deste conto, apenas digo que se eu fosse Ermê assistiria ao filme Corra antes de aceitar jantar na casa do namorado.

Corra é um filme de suspense, em que uma linda moça e seu namorado estão apaixonados, ele vai se encontrar pela primeira vez com a família dela, que é rica e tem uma maravilhosa e isolada casa de campo. É importante dizer que o namorado tem a pele preta bem escura, e que a família dela passa o tempo todo fazendo comentários racistas dissimulados que deixam o rapaz e a namorada muito desconfortáveis. A mãe é uma terapeuta que trabalha com hipnose.

O ponto chave da trama é um almoço pra lá de esquisito com os outros familiares, tios e primos, que vai ser o início da revelação dos segredos daquela família. Corra é um filme excelente, que deu a Jordan Peele o Oscar de melhor roteiro original, além de ter abocanhado outros 23 prêmios em outras cerimônias. Jordan Peele também é o diretor de Corra.

 

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

TARANTINO, Quentin. Pulp Fiction. EUA: Miramax Films, 1994.

SZIFRON, Damián. Relatos Selvagens. Argentina e Espanha: Warner Bross, 2014.

PEELE, Jordan. Corra. EUA: Universal Pictures, 2017.