Capa do livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.

“Guida sabia que a sua incompetência estava ligada à falta de amor na vida de d. Amira, e por isso não ligava. Sabia que o trabalho estava ligado ao bem-estar que daria ao filho, e por isso aceitava. Essa Guida também sabia o principal: era melhor ter uma mulher como chefe do que um homem, mesmo que essa mulher fosse capaz de transformar um armarinho no purgatório, porque era melhor estar no purgatório que nos fundos de uma sala qualquer, embaixo de um patrão.”

BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão.

Em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, as personagens Eurídice, Guida e Das Dores abrem a discussão para os diversos modos de atrapalhar vida profissional das mulheres. Essa obra não trata de ambientes de trabalho saudáveis e nem das melhores condições para o afloramento e desenvolvimento de talentos femininos.

O livro se passa nos anos 50, 60 e 70. As personagens principais são as irmãs Eurídice e Guida. Filhas de um casal de portugueses, moram na Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. As duas eram muito ligadas até o dia em que Guida conheceu Marcos Godoy.  Filho de rica família carioca, estudante de medicina, ele também amava Guida. Marcos foi muito bem recebido pela família classe média de Guida, já ela não era boa para os padrões da família de Marcos. Então eles fugiram para se casar.

Quando a irmã foge, Eurídice passa a ser a tábua de salvação da honra e redenção social de seus pais.

Mas quem é Eurídice nesse contexto? É uma mulher de talento extraordinário e extrema inteligência. Tudo o que ela se propõe a fazer, domina com espetacular maestria. Quando pequena aprendeu a ler antes dos colegas de turma e sabia muito bem as matérias, por isso despertou a inveja e desdém da professora e acabou desistindo de demonstrar seu brilhantismo; depois quis tocar flauta e era tão boa que foi convidada para aprender com ninguém menos que Heitor Villa-Lobos, o pai a proibiu dizendo que não precisava ser concertista, apenas tocar para entreter os convidados. Depois foi excelente costureira, cozinheira, escritora… nada disso prosperou, porque foi ridicularizada ou tolhida por seu marido Antenor.

A saga de Guida foi também frustrante, mas bem diferente do marasmo entediante da vida da irmã Eurídice.

Acontece que Marcos não era assim tão bom partido quanto se esperava. Era de fato apaixonado por Guida, mas também era um médico charlatão, pois foi um péssimo estudante, que pagou o colega pobre para fazer trabalhos e provas da faculdade. Marcos que também era um fugitivo da família dele, perdeu os recursos financeiros advindos do pai. As dívidas se abateram sobre o casal. Guida estava grávida quando foi abandonada e teve que se virar para sustentar a ela e ao filho Chico.

Guida se mudou para o Estácio, conseguiu um emprego como caixa de um mercadinho e conheceu Filomena, uma prostituta aposentada que cuidava das crianças do bairro em uma creche que mantém em casa. O dono do mercadinho sempre tratou Guida com respeito e cordialidade, inclusive ajudando-a quando ela contou que estava grávida. Com o tempo, Guida organizou os negócios de Filomena, elas passaram a morar juntas e se tornaram sócias. Esse foi um período bom na vida adulta de Guida.

Após o falecimento da amiga Filomena, Guida, novamente sem dinheiro e com o filho doente, passou a trabalhar no armarinho da senhora Amira. Foi humilhada pela patroa diariamente. Sua condição financeira a obrigava a descer goela abaixo o ambiente de trabalho ruim.

Guida também sofreu com o farmacêutico do bairro que exigia favores sexuais como pagamento pelos medicamentos caros necessários à sobrevivência de seu filho. Esse senhor nunca foi seu patrão, mas não deixa de ser degradação imposta por falta de recursos financeiros. E é graças a dona Amira e ao dono da farmácia que Guida desenvolveu o pensamento expresso na epígrafe deste artigo.

A obra mostra que mulheres sem dinheiro ou marido se sujeitavam a muitas humilhações para sobreviver. Quadro que se repete  com a história das italianas Lenu e Lila da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

Capas dos livros que compõem a Tetralogia Napolitana.

A história se passa em um bairro pobre de Nápoles, mais ou menos na mesma época em que A vida invisível de Eurídice Gusmão é narrado. No segundo volume intitulado História do Novo Sobrenome, Lenu precisa trabalhar para ajudar em casa.

No Bairro, as filhas se casavam novas e passavam a ser sustentadas pelos maridos. Se fizessem um casamento com marido abastado, as famílias também se beneficiariam.

Lenu foi estudar, contrariando a sina das mulheres do bairro. Seus estudos a tornaram apta a ocupar um emprego em livraria. O dono da livraria a vigiava com rédeas curtas exigindo sempre mais trabalho. Em uma passagem, ela relata saber que o dono sempre pedia que ela pegasse livros nas prateleiras mais altas, apenas para olhar embaixo de sua saia.

Em História do Novo Sobrenome, Lila, a melhor amiga de Lenu, estava casada com Steffano Carracci. Posteriormente, no terceiro romance da trama, chamado História de Quem Foge e de Quem Fica, Lila separada de Steffano e desesperada para sustentar o filho pequeno, Rino, se torna funcionária da fábrica de embutidos Socavo.

Todos os operários da fábrica trabalhavam em condições de insalubridade, carga de trabalho excessiva e outras questões trabalhistas graves. Entretanto, se a funcionária fosse mulher, a vida poderia ser ainda mais árdua. Bruno Socavo, presidente da fábrica, se revelou um predador sexual. O porteiro da fábrica, que também era incumbido de fazer revistas para garantir que ninguém levasse para casa algum produto escondido, escolhia, diariamente, as mulheres que revistaria com o objetivo de tocá-las em suas partes íntimas. Não há questionamentos nem reclamações. A condição social delas não permitia abrir mão do salário e, portanto, se sujeitavam.

A obra de Batalha também fala de uma mulher chamada Das Dores que, propositalmente, é ainda mais invisível que Eurídice. Das Dores é a empregada doméstica dos Gusmão Campelo. Na casa em que ela trabalha moram Antenor Campelo, Eurídice, a filha Cecília e o filho Afonso. Durante a infância das crianças, Das Dores se encarregava de dar-lhes atenção, carinho e de cuidar da casa em tudo o que fosse necessário, podia inclusive pegar dinheiro direto na bolsa da patroa para pagar as entregas que chegavam à porta. Isso não mudou à medida em que as crianças foram crescendo.

Pelo que se infere da trama, Das Dores havia trabalhado em outras casas antes de atender à família Gusmão Campelo. Ela era tratada com dignidade por eles, à despeito de algumas exigências de Eurídice e de não ter uma relação muito próxima com os patrões. Era muito afeiçoada às crianças. Quando as crianças se tornaram adolescentes, Guida e Chico foram residir na casa de Eurídice. Chico tinha a mesma idade do primo Afonso. Nessa fase, o comportamento de Afonso e as relativamente boas condições de trabalho de Das Dores mudaram. Essa situação é melhor compreendida pela leitura de um trecho de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão:

“Depois de Cecília, foi a vez de Afonso e Chico descobrirem seus hormônios e, no caso deles, aquela coisa por vezes dolorosa que lhes crescia entre as pernas. O inchaço inoportuno precisava de alívios imediatos, que Chico aprendeu a fazer no banheiro, e Afonso aprendeu a fazer em Das Dores. ‘Olhe que seu pai vai descobrir’ Das Dores dizia enquanto Afonso levantava as calças. ‘Vai nada. E se descobrir você perde o emprego.’ Das Dores ouvia, e Das Dores se calava. Pois seus três meninos ainda precisavam dela(…).”

Das Dores tinha passado por esse tipo de violação tantas vezes na vida que mesmo não gostando nem um pouco, entendia ser natural, como se fosse inerente a sua condição de mulher pobre.

Capa do livro Memórias de Minhas Putas tristes de Gabriel Garcia Marquez.

Exemplo quase idêntico ao de Das Dores e que também não é o tema central do enredo, está na obra, de Gabriel Garcia Marquez, Memória de Minhas Putas Tristes, que trata das lembranças lacivas de um homem de 90 anos. Essa história se concentra mais na derradeira experiencia, que foi um auto presente de aniversário, e culminou com a descoberta do que ele acredita ser amor, quando encomendou de um bordel uma adolescente virgem. Entre as vivencias com as mulheres, está um breve relato de como tratava Damiana, a diarista que limpava sua casa uma vez por semana.

Ele demonstra ter vergonha da humilhação à qual submetia Damiana e a solução encontrada para aplacar a dor de consciência foi pagar lhe, além do salário devido pelos trabalhos domésticos, uma quantia extra, que segundo o velho lhe dava “direito” a uma “montada por mês”.

Voltando a A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, a terceira personagem modelo, é a própria Eurídice. Ela entra na categoria das mulheres de boa condição financeira, cujo destino natural era se casar e se tornar dona de casa. O livro cita algumas mulheres que aparentam estar satisfeitas com a vida essencialmente doméstica. Isso só era uma questão quando elas tinham outras aspirações.

Eurídice era uma mulher de múltiplos talentos e inteligência acima da média. Além de ser casada, gostaria de ter também uma profissão remunerada para se sentir plena e desenvolver suas capacidades.

Eurídice sempre foi podada de lapidar seus talentos, fosse pela professora, os pais ou o marido. Depois de se casar,  o papel de convencer Eurídice a não investir em seus projetos coube a Antenor. Simplesmente porque ele não podia viver com uma esposa que não fosse completamente devotada ao lar e aos filhos. Ele, funcionário do Banco do Brasil, era um bom provedor que se sacrificava para que Eurídice e os filhos pudessem ter a vida sossegada.

Vê-se que o objetivo não era exatamente minar as aspirações de Eurídice, nem por parte de Antenor nem do Pai dela. A necessidade era de manter as regras, ainda que implícitas, aparentando ser família ajustada para os padrões da época e assim evitar manchas na reputação deles como chefes de família.

Isso fica bem claro nos comentários da vizinha fofoqueira Zélia, que sempre deduzia que Antenor Campelo estava beirando a falência quando via Eurídice empenhada em uma nova função que trouxesse dinheiro para casa.

Como mencionado, a Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante, acompanha, até uma certa parte, a cronologia de A vida Invísível de Eurídice Gusmão. Lila e Lenu se parecem em muitos pontos com Guida e Eurídice, visto que a mentalidade machista é a mesma, tanto na Itália quanto no Brasil. Por outro lado, os contextos e o modo como conduzem suas vidas são bem diferentes. Um dos grande méritos da tetralogia é o relato da vida pública e privada da Itália do pós segunda guerra mundial até os anos 2000. A Vida Invisível tem como pano de fundo a vida brasileira nas décadas de 50 a 70, com outra abordagem menos detalhada, mas igualmente interessante.

Lila era brilhante como Eurídice, pessoa capaz de aprender executar de forma criativa e brilhante qualquer tarefa a que se propusesse.  Aos 8 anos escreveu um livro tão bom, que despertou a inveja da professora que a fez acreditar que a historia era ruim. Da mesma forma, a professora de Eurídice ajudou a criar a “outra Eurídice”, que nada mais era que uma menina formidável fingindo ser medíocre para não ser castigada.

Posteriormente, quando o pai de Lila a proíbe de frequentar o Liceu, porque na mentalidade dele ler e escrever eram conhecimento suficiente para ajudar a mãe nas tarefas diárias ou para ajudá-lo na sapataria, ela continuou exercendo sua esplendida capacidade por conta própria. A cada vez que sobressaia era diminuída pelo pai, depois pelo irmão, depois pelo marido. Até que encontrou respaldo em alguns personagens masculinos mais poderosos que o pai e o irmão e pode experimentar melhor suas habilidades criando sapatos, depois trabalhando na charcutaria da família do esposo, fundando uma empresa de tecnologia da informação e tudo sempre com sucesso. Essa situação de Lila fica bem patente nos primeiros livros da tetralogia: A amiga Genial e História do novo Sobrenome.

Cartaz da quinta temporada da série Gilmore Girls.

E como estamos falando de mulheres com habilidades promissoras, que tiveram problemas por questões machistas e antiquadas, uma de minhas séries favoritas da vida, tem como ponto de partida uma insurgência contra imposições sociais da alta sociedade estadunidense: Gilmore Girls.

A série que é uma comédia romântica muito inteligente e cheia de referencias pop e literárias, conta a trajetória de Lorelai Gilmore e Rory Gilmore, mãe e filha, com 32 e 16 anos respectivamente. Elas vão  crescendo e amadurecendo ao longo de 7 temporadas e um revival de quatro episódios, chamado  Gilmore Girls: A year in the life. 

Lorelai é filha de Richard e Emily Gilmore, membros de uma família tradicionalíssima, que se esforça para manter as condições ideais de comportamento social.

Quando a filha engravida aos 16 anos, os pais começam a organizar o casamento dela com o namorado da mesma idade. Então, logo a pós o parto, Lorelai foge com sua bebê e vai bater na porta de uma pousada, na cidade imaginária de Stars Hollow, onde é abrigada e contratada como camareira. O afastamento de Lorelai e sua família dura 16 anos. Até que ela, mulher independente, tem sua genial filha admitida em uma das melhores escolas de ensino médio do país, porém a bolsa de estudos lhe é negada por ser neta de avós ricos. Como o sonho tanto da mãe quanto da filha é que Rory vá estudar em Harvard, Lorelai se convence a recorrer aos pais e pedir um empréstimo.

Vamos nos ater agora aos acontecimentos envolvendo a garota prodígio Rory e a família Huntzberger, na quinta temporada da série. Rory, já na universidade, estudando jornalismo, começa a namorar o colega Logan Huntzberger, filho de um magnata da comunicação e uma das pessoas mais ricas da série. No primeiro encontro dela com a família do namorado, o avô de Logan deixa muito clara sua desaprovação quanto àquele romance.

Mas como, se Rory é estudante de Yale, pertence à família Gilmore e foi agradabilíssima desde que pôs os pés na mansão Huntzberger? O motivo é que Rory estava fazendo universidade para se tornar de fato uma jornalista e isso era inadmissível para alguém que poderia se casar com o herdeiro daquele império.

Ao perceber que Logan se recusa a terminar o seu relacionamento com Rory, o pai dele, Mitchum Huntzberger ofereceu a Rory um estágio no seu principal jornal. No último dia do estágio ele deu a ela sua avaliação sobre o trabalho desenvolvido naquelas semanas.  Do alto de sua arrogância e talvez pretendendo que ela desistisse de seguir carreira e assim se tornasse qualificada para ser uma esposa Huntzberger, Mitchum disse que os anos naquele ofício lhe deram afiada intuição sobre quem seria e quem não seria ser um bom jornalista e que ela não tinha o que era preciso. Devastada, Rory trancou a universidade.

Cartaz do filme A Vida Invisível de Karim Aïnouz.

A Vida Invisível de Euridice Gusmão  rapidamente se tornou uma das minhas histórias favoritas, é um livro relativamente curto, belíssimo, inteligente, necessário e de personagens excelentes. Não só as mulheres são excepcionais, mas também alguns dos homens. São muitos personagens, que com explicações em flashback apresentam passados cheios de nuances que permitem  compreender o porquê de suas ações no tempo em que se passa a história. Em alguns casos as almas masculinas não se salvam, como Marcos Godoy marido de Guida. Já Antenor Campelo, marido de Eurídice, que é o exato clichê do marido classe média da década de 60, tem traumas que reforçam e explicam seu comportamento, para além das convenções sociais.

Martha Batalha é uma excelente escritora e A vida Invisível de Eurídice Gusmão, foi traduzido para outras línguas e inspirou o filme A Vida Invisível, dirigido por Karim Aïnouz, que foi escolhido pelo Brasil para ser o nosso representante na seleção do Oscar em 2019.

Sobre o filme, recomendo ou assistir antes de ler o livro ou que se assista sem procurar o livro nele, como se fosse uma história independente. Isso porque o filme é muito bom, mas não é a mesma história. Muito pouco do livro foi preservado, aliás, igual mesmo só o nome dos personagens e uns acontecimentos salpicados. Enfim, são duas histórias ótimas e distintas. Se for usufruir de apenas um, recomendo fortemente o livro.

BATALHA, Martha. A vida Invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FERRANTE, Elena. A Amiga Genial. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.

FERRANTE, Elena. História do Novo Sobrenome. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.

FERRANTE, Elena. História de quem foge e de quem fica. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

MARQUEZ. Gabriel Garcia. Memórias de Minhas Putas Tristes. Tradução: NEPOMUCENO, Eric. São Paulo: Record, 2005.

SHERMAN-PALADINO, Amy & PALADINO, Daniel. Gilmore Girls. EUA: Warner Bros, 2000 a 2007.

SHERMAN-PALADINO, Amy & PALADINO, Daniel. Gilmore Girls: A year in the life. EUA: Warner Bros e Netflix, 2016.