Fun home: Uma tragicomédia em família | Amazon.com.brFun Home' é feliz união entre literatura e HQ - 26/12/2018 - Ilustrada - Folha

Alison Bechdel. Fun Home: Uma Tragicomédia em Família.

 

Um título fofo, né? Só com o título, sem saber de nada sobre o conteúdo até dá para imaginar que se trata de uma família maluquinha, divertida, que supera as dificuldades, onde o amor permeia tudo blablabla.

Só que não. Fun na verdade é uma abreviação de “Funerary”, porque o negócio da família é uma funerária. Os pais são pessoas artísticas e intelectualizadas, que amam design de interiores e paisagismo (o pai), teatro (a mãe), literatura, cultura e estudos mais afinados com as artes e as ciências humanas.

Este casalzinho com interesses em comum e complementares nasceu em uma cidade muito pequena nos Estados Unidos. Uma cidade bem tradicionalista, em que grande parte da população era parente de pelo menos um deles. E aquelas almas que se interessavam por coisas belas e refinadas foram morar na Europa, continente que inventou o que hoje conhecemos como arte clássica, por exemplo. Estavam casados e bastante felizes morando lá e aguardavam o nascimento da primeira filha, quando vem a notícia do falecimento do pai do marido, deixando o negócio de família para o filho e obrigando-os a retornar àquela provinciana cidadezinha dos EUA. (“Six Feet Under” feelings!)

Essa é a história real da família de Alison Bechdel, a autora e ilustradora desta maravilhosa HQ. Virou uma das minhas HQs favoritas.

O retorno à vida na cidade de nascimento limitou do pais de Alison causando enorme frustração em ambos e estas desilusões se refletiram nas relações daquele núcleo familiar. Alison tem mais dois irmãos.

O subtítulo da obra é “Uma Tragicomédia em Família” e a autora é talentosa o suficiente para dar alguma leveza à esta história que é bem mais trágica do que cômica. Fiquei com muita pena dos pais e da própria Alison porque na verdade eles tiveram que se encolher para caber naquele modo de vida que os exigiu enorme repressão dos sentimentos e vontades.

The Big Draw: Cartoonist Alison Bechdel Talks 'Fun Home' Ahead Of Houston Premiere – OutSmart Magazine

Alison Bechdel

Como é perceptível pelo excerto que abre esse texto, a repressão à sexualidade do pai o enveredou por caminhos inclusive criminosos. O fato é que ele teve muitos problemas e criou outros tantos espalhando traumas bem sérios em alguns desses rapazes e em sua própria família por causa daquele comportamento.

No ambiente familiar ele era um decorador/arquiteto em tempo integral, obcecado com a estética da casa e até mesmo dos filhos em termos de roupas e cortes de cabelo, extremamente mal exigente, dado a explosões de mau humor. Além da decoração, esse homem era o dono da funerária, onde trabalhavam todos os membros. Entretanto, em uma cidade daquele tamanho não é todo dia que tem demanda para aquele tipo de serviço. Assim, tanto o pai quanto a mãe também eram professores do ensino médio.

O pai de Alison o discente da da cadeira de literatura. Coisa mais linda, que esse viés da vida dele fosse talvez o principal ponto de aproximação não conflituosa entre pai e filha.

Outras pérolas encontradas em “Fun Home” são as referências literárias. Por exemplo, o capítulo em que Alison se descobre lésbica se chama “À Sombra das Raparigas em Flor”, que é o nome do segundo volume do mega clássico “Em Busca do Tempo Perdido” do autor Marcel Proust. Proust por sua vez, conta no livro “À Sombra das Raparigas em Flor” (ou “À Sombra das Moças em Flor” a depender da edição) , a descoberta do interesse amoroso/sexual do adolescente Marcel pelas lindas garotas de Balbec. (Faltam poucas páginas p eu terminar esse livro. Logo logo falaremos dele).

À Sombra Das Moças Em Flor À Procura Do Tempo Perdido, Vol.

A mãe acabou por se tornar uma mulher um tanto depressiva. Era uma mãe eficiente, que dava conta das necessidades materiais dos filhos, porém não conseguia ser carinhosa. Um caso grave de desilusão.

Nesse caldo, é que a pequena Alison vai crescer, se tornar adulta, sair de casa para estudar e se descobrir lésbica. Aí vocês têm que ler para saber como foi a reação dos pais ao receberem essa notícia da filha. Também terão que ler para saber como o pai faleceu, as circunstâncias e consequências desta morte. Tudo bastante peculiar e lindamente escrito e ilustrado pela autora.

Para quem já assistiu, deu para entender porque mencionei “Six Feet Under” lá em cima, né?

É uma das minhas séries favoritas da vida. Talvez o melhor episódio final de todos os tempos!

Qualé que é a de “Six feet Under“? É uma série da HBO (o que já é um bom prenúncio), que foi ao ar de 2001 a 2005. No Brasil, a série ficou com o título de “A Sete Palmos” e também é uma tragicomédia em família.

A funerária de “Six Feet Under” também é um negócio de família. Depois da morte do pai, o filho mais velho, Nate Fischer (Peter Krause) vai ser  obrigado a deixar a vida que tinha para voltar à cidade onde nasceu e trabalhar com a mãe e o irmão. Cada episódio trata de um funeral realizado por eles, sendo o primeiro o do pai, e à medida que a série avança vamos descobrindo os segredos, recalques e traumas dos membros da família. Minha preferida é a Claire (Lauren Ambrose), a filha mais nova, adolescente no início da série, que vai se tornando adulta e é maravilhosa!

Outra recomendação, que veio das minhas associações enquanto lia “Fun Home”, foi com o personagem Cal Jacobs da série “Euphoria”, também da HBO. “Euphoria” é tipo o “Kids” em versão alto orçamento. (Quem é dos anos 90 vai lembrar do filme polemicão que “Kids” foi).

“Euphoria” é a história de adolescentes caminhando para a vida adulta, explodindo em hormônios e curiosidade, tendo que lidar com drogas, álcool, sexualidade e o escambau. Uns mais equilibrados e outros pelamordedeus. lembrando que é a era das drogas sintéticas, dos opioides, dos celulares com câmeras potentes e por assim vai.

Os pais dessas lindas crianças são também pessoas com seus próprios problemas. Um deles é Cal Jacobs, vivido por Eric Dane. É um caso parecido com o do pai de Alison Bechdel. Rola vida dupla, coisa que a família nem suspeita e que vai marcar o crescimento do filho de Cal, Nate Jacobs (Jacob Elordi), de uma forma bastante complexa. Essa série não está terminada, e talvez nem o seja, considerando que seus atores viraram big fucking stars (Zendaya, Sydney Sweeney, Jacob Elordi…).

BECHDEL, Alison. Fun Home: Uma Tragicomédia em Família. Rio de Janeiro: Todavia, 2018.

BALL, Allan. A Sete Palmos. EUA: HBO, 2001-2005.

LEVINSTON, Sam. Euphoria. EUA: HBO, 2019-2022.