O livro dos mortos - Lourenço Mutarelli - Grupo Companhia das Letras“Quero te mostrar uma coisa. Mauro caminha até a estante e apanha um livro. Olha que interessante, eu li outro dia: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles”.

Bonito isso. Melhor do que quando simplesmente dizem que não existem, que não são baseados em fatos ou pessoas reais. Isso tem tudo a ver com o que falamos agora. Que livro é esse?

O livro dos mortos, de Lourenço Mutarelli.

Não conheço.
Isso não faz parte do livro. Não foi o autor quem disse isso. Está na página de créditos. É a editora quem diz. Quando li isso, fiquei imaginando uma coisa interessante. Você já parou pra pensar que embora esteja aqui e agora, ou ao menos acredite nisso, você pode ser só algo que esteja sendo escrito?

Como assim?

Pense nessa hipótese. Imagine que alguém esteja escrevendo uma história, agora, neste instante. E você seja um personagem nesse livro.

Não consigo imaginar algo assim. É absurdo demais.

Mas vamos supor que você fosse um alter ego, outro eu de um escritor. E que ele estivesse escrevendo isso, exatamente esta passagem na qual você está conversando comigo e somos personagens que só existem nesse livro. Conversamos, fumamos e tomamos café, num livro que ainda nem existe porque não foi publicado. Está sendo escrito exatamente agora. E esse agora é um domingo. E são sete e sete da manhã de um domingo. Consegue imaginar?

Não. Para mim é impossível. Tenho o meu corpo. Se você dissesse, sei lá, que estamos num filme, numa peça de teatro ou algo assim, talvez pudesse engolir. Mas um personagem num livro é algo abstrato demais pra mim.”

Lourenço Mutarelli. O Livro dos Mortos. 

“Uma biografia hipnagógica”. Esse é o subtítulo que aparece em uma segunda folha de rosto. Tem a folha de rosto em que está escrito somente “O Livro dos Mortos” e na sequencia uma página preta com letras brancas onde está escrito “O Livro dos Mortos: Uma biografia hipinagógica”. Esse título e, principalmente, o subtítulo resumem perfeitamente o que é essa obra.

Destrinchemos essas referências: O livro dos mortos (o egípcio), é uma compilação de textos originalmente em hieróglifos encontrados em bandagens das múmias, sarcófagos,  papiros ou os, mais recentes, em livros com reproduções desses hieróglifos em túmulos de egípcios ricos ou aristocratas. O conteúdo era um guia sobre como chegar ao reino de Osíris, como morrer e como iniciar a sua nova vida no pós-morte. Com rituais e roteiros para escapar dos possíveis obstáculos que o morto poderia enfrentar no caminho.O Livro dos Mortos do Antigo Egito | Amazon.com.br

Hipnagógica, e aí vamos colar a primeira nota de rodapé desse livro com 193 delas, em que Lourenço Mutarelli reproduz o verbete do Dicionário Houaiss: “1 que provoca o sono; 2 referente ou associado ao entorpecimento que precede o sono.”

Encontrei uma outra definição na revista Superinteressante, que para mim foi útil e então reproduzo com minhas palavras: estado de consciência semi-lúcido, intermediário entre estar acordado e dormindo. Esta seria a fase mais criativa do que em estado completamente desperto com aumento das ondas de relaxamento e sono.

Pronto. Entendido (ou quase) isso? Passemos ao conteúdo.

Segundo falas do próprio Lourenço em entrevista ao podcast Página cinco, um terço desse livro é biográfico. O livro estava quase pronto, aguardando maturação para passar pela última revisão do autor, quando Lourenço foi acometido por um infarte e duas paradas cardíacas que requereram ressuscitação. Essa experiência de quase morte, mudou alguma coisa dentro do homem que escrevia o livro e acréscimos precisavam ser feitos. Logo, aquela última revisão virou uma super-revisão. Inclusive ao final do livro encontramos partes do prontuário médico de Lourenço.

O personagem principal se chama Pompeu Porfírio Junior. Ele trabalha como contador de histórias para dois Mauros. Inicialmente, tive dificuldade em separar os Mauros e isso conto como uma vantagem, gosto desse tipo de desafio nos livros. Para os dois o trabalho era encontrar uma mulher, transeunte, que seria a personagem de narrativas meio voyeristas, para aguçar a imaginação dos Mauros. Um deles estava interessado apenas no cotidiano da mulher misteriosa e o outro começou ouvindo isso e depois se interessou por histórias de vida do próprio Pompeu. Nesse rol de histórias pessoais estavam casos de família, piadas antigas do tio do Pompeu, rememorações da ex-namorada gótica e outros tantos assuntos.

Os dois Mauros são personagens bem mutarellianos. Leia o texto sobre O cheiro do ralo para ter um vislumbre.

Aí nesse mundo de memórias e histórias inventadas, é impossível ao leitor afirmar com certeza o que é real e o que não é. Mas é divertido tentar.

É um livro fácil de ler? Não. Embora seja meu tipo de livro e valha a pena cada vírgula.

Mutarelli alterna as histórias, embaralhando-as, voltando e progredindo no tempo, formando uma prosa bem onírica. Parece um sonho, daqueles que aparecem personagens que a gente realmente conhece, outros com uma aparência meio surreal, outros que o sonhador nunca viu, em situações cotidianas mais palpáveis para nossa imaginação de leitor e outras mais absurdas.

Também tem capítulos escritos como a estrutura de O Cheiro do Ralo, com frases curtas visualmente parecendo poesia e outros de texto corrido como a maioria dos textos narrativos.

E as notas de rodapé… Leia todas as notas. O que dizer das notas… são muitas, como disse acima são 193, tem notas curtas e outras bem longas. Considero as notas presentes nessa obra o ápice da generosidade intelectual (veja o texto do livro Sobre a Escrita). Ali Lourenço Mutarelli indica outras obras, personagens, excertos, que fizeram parte do arcabouço cultural que o ajudou a compor as páginas de O Livro dos Mortos.

Dessas notas tirei uma listinha de coisas para assistir, ler e ouvir.

Entre março e maio deste ano, fiz um curso de escrita criativa online e ao vivo com o Lourenço Mutarelli promovido pela escola Balada Literária. Em uma das aulas ele falou do processo para escrever essa obra e deu pistas do que seria autobiográfico ali. E eu, avisando que estava ainda finalizando a leitura desse livro, tive a petulância de dizer a ele que achei no livro uma pegada Twin Peaks, uma série de TV americana dirigida e produzida por David Lynch e Mark Frost, que foi ao ar nos anos de 1990 e 1991 em duas curtas temporadas tendo tido uma terceira temporada em 2016, produzida pela Netflix.

O Lourenço, que é uma pessoa fofa, disse na hora que David Lynch era um de seus cineastas favoritos e que ele gostava muito de Twin Peaks.

Aí esta leitora que agora os escreve terminou o livro e encontrou no capítulo IX da sétima parte, em uma lista de itens que têm importância para o personagem Pompeu, a seguinte frase: “Assistir a terceira temporada de Twin Peaks vinte e cinco anos depois”(pg. 450).

Ou seja, Twin Peaks é uma referência. O que prova duas coisas: primeiro que eu entendi a vibe do livro; segundo que eu falei o óbvio para o autor, que recebeu a minha observação e respondeu com a doçura que lhe é peculiar, ainda que fosse um comentário nada perspicaz.

Aliás, fiquei querendo fazer mais cursos com ele, até para saber como se comportam as turmas, visto que o professor achou nossa turma muito silenciosa.

Deixo claro que é a vibe onírica do livro que traz um sentimento Twin Peaks, a história não tem nada a ver.

Twin Peaks tem três temporadas. A primeira foi genial, um marco da TV, muito criativa e diferente de tudo o que já havia sido feito até então. O efeito foi angariar uma legião de fãs e outra de pessoas que achavam interessante, mas esquisito e isso fez com que os contratantes da série, no caso a ABC, apressassem os criadores para revelar o mistério da primeira temporada logo. Resultado: queda vertiginosa na audiência da segunda temporada que foi produzida e dirigida por outros profissionais: Gregg Flenberg e Harley Peyton. A segunda temporada é bem diferente da primeira e um tanto inferior.

No último episódio da segunda, Laura Palmer, reaparece e faz a seguinte profecia de que voltaria dali a 25 anos. Aí a Netflix cumpriu e lançou a terceira temporada em 2016.

O efeito Laura Palmer

Laura Palmer encontrada no rio.

Laura Palmer (Sheryl Lee), a rainha do baile, miss perfeitinha, da escola high school da pequeniníssima cidade de Twin Peaks aparece morta, embalada em um plástico transparente boiando no rio. Mesmo quem não viu a série deve se lembrar dessa imagem que é bem icônica.

Aí começa o rebuliço para desvendar o assassinato. O detetive do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan), que é um homem bastante peculiar e tem métodos exóticos de investigação fica responsável pelo caso junto com os policiais locais.

Nessa jornada, coisas altamente surpreendentes e surreais vão ser desveladas, inclusive muitas surpresas sobre a vida da adolescente assassinada. Tudo mergulhado em uma atmosfera nebulosa, que deixa entrever as coisas, mas sempre o espectador fica com uma sensação de “será que eu vi certo?”.

Simplesmente genial. É uma das minhas séries favoritas de todos os tempos. Está disponível no Paramount+ (primeira e segunda temporadas) e no Prime video (terceira temporada).

Outra referência me remeteu ao livro do Lourenço foi o conto A medida do amor, que compõem o livro de contos Pessoas Desaparecidas, Lugares Desabitados, do escritor brasiliense Alexandre Arbex.Pessoas desaparecidas, lugares desabitados - Editora 7Letras

Devia ter indicado esse livro pro Lourenço. Essa obra é uma delícia. Os contos são curtinhos, um deles tem apenas um parágrafo e o maior deve ter umas quatro páginas. Todos eles tem uma pegada surrealista. Todos!

Alguns você começa lendo e pensa que vai desembocar numa história banal e aí… muda tudo de um jeito tão imaginativo e inesperado que não poderia ser previsto. Outros já começam mostrando que se trata de uma história puramente imaginativa, com pitadas de fantasia.

O conto em questão fala de Luisa, uma mulher cujo tamanho varia. Ela tem a estatura mediana das mortais comuns, mas quando se apaixona cresce em centímetros e até metros, voltando a diminuir à cada decepção amorosa. Que delícia esse conto!

Recomendo demais o livro inteiro!

Em O Livros dos Mortos, quando Pompeu está narrando para um Mauro o que viu da mulher que ele stalkeia naquela semana, ele sempre faz referência à altura dela. Ela aparece como uma moça bastante alta, mas o que mais chama atenção é que a altura dela varia, às vezes um metro e oitenta, outras mais de dois metros, depois volta ser um pouco menor.

Por aqui, amamos obras, de quaisquer tipos de arte, que utilizem a lógica ilógica dos sonhos. E você, que outras referências hipinagógicas tem para indicar?

Link para adquirir as obras citadas aqui e afins: https://amzn.to/3MQiznD.

MUTARELLI, Lourenço. O Livro dos Mortos. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

LYNCH, David; FROST, Marc; FLENBERG, Gregg & PEYTON, Harley. Twin Peaks. EUA: ABC, 1990-1991.

LYNCH, David & FROST, Marc. Twin Peaks. EUA: Netflix, 2016.

ARBEX, Alexandre. Pessoas Desaparecidas, Lugares Desabitados. Rio de Janeiro: 7Letras, 2022.