
Deuses Americanos
“SHADOW SÓ QUEBROU o silêncio no fim daquela noite, quando estavam saindo de Illinois. Viu a placa de BEM-VINDO AO WISCONSIN e perguntou a Wednesday:
-Vem cá, quem eram aqueles caras que me sequestraram no estacionamento? O senhor Wood e o senhor Stone. Hein?
Os faróis do carro iluminavam a paisagem invernal. Wednesday anunciara que era melhor não pegarem rodovias, pois não sabia de que lado da guerra elas estavam, então Shadow seguiu por estradas secundárias. Não se importava. Não tinha como ter certeza de que o chefe era mesmo maluco.
Wednesday grunhiu.
– Só uns agentes. Membros da oposição. Vilões.
– Acho que eles acreditam que são os mocinhos – retrucou Shadow.
– É claro que acreditam. Nunca houve uma só guerra que não tenha sido travada entre dois grupos inteiramente convictos de que estão fazendo o que é certo. As pessoas perigosas de verdade são aquelas que acreditam que estão fazendo o que estão fazendo única e exclusivamente porque aquela é, sem a menor sombra de dúvida, a única coisa certa a se fazer. E é por isso que são tão perigosas.
– E você? Por que está fazendo tudo isso?
– Porque eu quero – respondeu Wednesday. E Sorriu – Aí não tem problema.”
Neil Gaiman. Deuses Americanos.
Neil Gaiman é um celebrado autor e roteirista inglês, que já passou por aqui com o livro Coraline. Ele também é o criador de God Omens; Sandman; Como falar com garotas em festas e outros sucessos tanto de vendas dos livros e quadrinhos quanto de audiência para a produção audiovisual.
O que ele tem de diferente dos outros autores é a capacidade de juntar fantasia, realidade e bom humor, trazendo questionamentos filosóficos/existenciais para sua audiência. Não vão ser experiências corriqueiras.
No caso de Deuses Americanos, na minha opinião, essa obra tem altos e baixos. Mais altos do que baixos.
O melhor feito de Deuses Americanos é a inserção de figuras mitológicas de diversas civilizações do planeta em um único evento e em um único espaço geográfico.
As passagens em que o autor insere histórias sobre o surgimento ou a ação de deuses e entidades sem relação direta com a trama principal e as partes em que o protagonista conhece novos deuses são definitivamente sensacionais e valem a leitura desse livro, que não chega a ser um calhamaço, mas também não entra na categoria dos fininhos (574 páginas).
Outra informação é que é um livro que vale a pena ser lido de capa a capa. Os textos extras da edição que eu tenho são ótimos, inclusive com uma passagem que foi retirada do livro e, que em minha opinião, poderia ser reinserida, apesar de conseguir imaginar motivos para a retirada. Polêmica certa.
Nos Estados Unidos, um homem chamado Shadow Moon (sim, é esse o nome dele), está aguardando para ser posto em liberdade depois de cumprir parte de sua sentença de regime fechado por agressão. Sabe aquela condição de ter bom comportamento, emprego e endereço fixo para conseguir a liberdade condicional? Pois é, Shadow seria libertado para retornar ao seu lar, trabalhar na academia de Robbie, seu melhor amigo, e seguir uma vida pacata.

Neil Gaiman
Eis que Shadow foi libertado da prisão cinco dias antes da data determinada, porque sua amada esposa Laura faleceu em um acidente de carro. Depois de libertado ele descobre que, no mesmo veículo, estava Robbie. Ou seja, ele acabava de perder o amor de sua vida, o melhor amigo, o endereço fixo e o emprego.
Sorte ou não (leia e conclua por si), ele arruma um outro emprego. Oferecido por um homem misterioso, com capacidade inigualável de persuasão, que atendia pelo nome de Wednesday (nada a ver com a Wandinha da família Adams).
Ao longo do livro, Shadow vai conhecer pessoas, que podem parecer normais à primeira vista, mas que são figuras mitológicas de variadas origens, entre eles alguns deuses.
O conceito é que os Estados Unidos foram ocupados desde tempos imemoriais por pessoas vindas de diversas partes do globo terrestre. Cada grupo de novos habitantes trazia suas crenças, seus deuses, sua religião e se encontrava em solo estadunidense com as entidades e crenças dos povos originários daquela terra para onde imigravam.
Logo, os Deuses Americanos são todos os deuses já reverenciados por qualquer civilização do mundo, considerando ser uma característica dos países do continente americano a convivência entre pessoas de todas as etnias.

Odin
Os personagens desse livro serão humanos ordinários ou deuses e entidades das mitologias nórdica, eslava, egípcia, africana, indígena, celta, hindu, greco-romana…
Por que essas entidades estão se juntando? Para formar um exército para a guerra.
Que guerra? A dos novos deuses contra os deuses antigos.
Os novos deuses serão representados pelos objetos de adoração humana contemporâneos: tecnologia, redes sociais e coisas do tipo. Esse grupo entende que não há espaço para todo mundo e que os deuses do passado devem desaparecer, independente de ainda terem muitos adoradores ou não. Para existirem deuses têm que ter adoradores, senão caem no ostracismo e desaparecem. Quanto menos seguidores, mais fracos eles ficam.
Wednesday, que na verdade é Odin, é o líder do grupo dos clássicos. Os clássicos estão em sua maioria aplicando golpes para obter recursos financeiros ou favores que os permitam alguma dignidade, mas há também alguns que não têm esse tipo de preocupação, pois são mais lembrados que os outros.
Em uma passagem uma dessas entidades comenta que Jesus vive bem nos Estados Unidos, mas teve dificuldade nos países árabes. Jesus e outras entidades judaico-cristãs não aparecem como personagens no livro.
É uma história muito interessante. Destaque para alguns personagens como Wednesday, Laura (a esposa de Shadow), os moradores do apartamento das entidades eslavas (Czernobog e as Zoryas) e os egípcios (Mr. Ibis, Mr. Jacquel e a gata).
Não posso deixar de comentar o ponto fraco. Tem a ver com a maldição do protagonista, que acomete muitos personagens principais por aí: Shadow foi subaproveitado. Ele é o fio condutor. É pela ação dele que os demais personagens vão aparecendo e é a perspectiva dele que o narrador acompanha, mas ele mesmo é uma pessoa de pouco brilho, digamos assim.
Para ilustrar e aumentar a polêmica, cito outros personagens principais muito conhecidos que sofrem com essa maldição de ser o ponto menos interessante da obra que conduzem: Rose e Jack (Titanic) e Otis Milburn (Sex Education). Gosto muito de Sex Education e tenho alguma simpatia por Otis, mas os amigos dele e a mãe são muito mais interessantes. Sobre Titanic, os efeitos especiais, cenário, sonoplastia, tudo o que compõe a subtrama, que é o desastre histórico em si, é sensacional. Já a trama principal é muito clichezenta. Desculpa aí qualquer coisa, mas nem o talento inquestionável de Leonardo Di Caprio e Kate Winslet foi suficiente para temperar aquele casalzinho.
Para não estragar a experiência de quem pretende ler Deuses Americanos, vou me ater à minha parte preferida do livro: a visita a Czernobog e às Zoryas. Assim vai ser um spoiler mínimo, tão mínimo que não chega a 5% do livro.
Quando Wednesday está em fase de recrutamento dos deuses para guerra, ele visita um apartamento em Chicago, onde vivem Czernobog, deus que representa o mal na mitologia eslava, e três irmãs, Zorya Vechernyaya, Zorya Utrennyaya e Zorya Polunochnaya.

Zorya Vechernyaya e Zorya Utrennyaya
Um parêntese para explicar essa turma: na mitologia eslava, Czernobog (o mal) e seu irmão Belbog (o bem) criaram o mundo com proporções iguais de bem e mal. Nessa teogonia, também existia o deus sol chamado Dažbog que tinha o controle sobre as Zoryas. Elas são deusas responsáveis por cuidar do planeta evitando o fim do mundo. Também é responsabilidade delas abrir as portas para o deus sol passar na aurora e depois fechar as portas ao fim do dia. Aí tem um detalhe: na mitologia eslava, existem apenas duas Zoryas, Zorya Utrennyaya, guardiã da manhã, e Zorya Vechernyaya, guardiã da tarde.
Zorya Polunochnaya é uma invenção de Neil Gaiman e seria a guardiã da noite. Essa personagem pode ter sido inspirada por uma junção das Zoryas e de Polunocnica, que é a demônia da meia noite que assusta crianças.
Pronto. Vamos voltar à cena.
Quando Wednesday chega a esse apartamento, é recebido por Zorya Vechernyaya, que lhe recebe com um certo receio, certa de que Czernobog não apreciará a visita, o que de fato aconteceu.
Em um dado momento desse encontro ela informa que precisa sair para ler a sorte. É com o dinheiro do futuro antevisto nas cartas dela que vem parte do sustento daquela casa. A outra parte vem do trabalho de Czernobog como matador de bois em um abatedouro.
Vechernyaya é a única irmã que consegue ganhar dinheiro com esse trabalho de predição do futuro e a causa disso é que ela mente. Ela consegue dizer aos clientes o que eles querem ouvir, enquanto as outras duas dizem a verdade nua e crua desagradando as pessoas, que consequentemente, não as pagam.
Esse trecho me lembrou duas outras personagens: Tanya, de The White Lotus, e Haia, de Desalma.
The White Lotus é também o nome da fictícia rede de resorts com hotéis espalhados pelo mundo. A série consiste em acompanhar as férias de grupos de turistas muito problemáticos e superinteressantes. São histórias independentes. A primeira temporada fecha completamente uma história no Havaí e a segunda abre outra Na Sicília.
A Tanya (Jennifer Coolidge, ex-mãe do Stifler) é uma personagem tão marcante que foi a única que se repetiu nas duas temporadas.
Na segunda temporada, cismada com o comportamento esquisito do marido (e era mesmo muito esquisito), Tanya pede à concierge do hotel que lhe arrume uma vidente. Então o hotel consegue para ela uma taróloga.
Quando essa mulher chega… de cara a pergunta foi se ela estava sendo traída. A cartomante responde que sim e não para por aí. Com a cara completamente tomada de pavor, ela prossegue fazendo alertas à Tanya sobre perigos que ela poderia estar correndo.
Aí, amigos, a cartomante é escorraçada do apartamento do hotel, sem pagamento, enquanto sua cliente está desesperada gritando “Too negative, too negative”. É uma cena hilária. Talvez a cartomante fosse uma das Zoryas sinceronas que não recebem pagamento por sua honestidade.
The White Lotus (HBOmax) é uma das séries mais sensacionais de 2021 e 2022, estou ansiosa por uma terceira temporada.
Outra cartomante que não é apenas vidente, mas uma bruxa, e que se parece muito mais com as Zoryas, inclusive pela origem de seus encantos eslavos é Haia (Cássia Kis), a feiticeira chefe de Desalma.
Desalma se passa na cidade fictícia de Brígida, no sul do Brasil. Essa pequena cidade é uma colônia ucraniana envolta em mistérios e acontecimentos bizarros.
Brígida foi inspirada na cidade real de Prudentópolis, no Paraná.
Naquela pequena cidade, as crianças e adolescentes aprendem ucraniano na escola, a cidade realiza eventos em datas comemorativas ucranianas, todos têm sobrenomes eslavos.
Há 30 anos numa festa chamada Ivana Kupala (Kupala é o deus da fertilidade), uma jovem desapareceu. Essa adolescente, que se chamava Halyna Lachovicz, era filha de Haia. Esse acontecimento levou a cidade a proibir a realização daquela festa. Até que alguém teve a brilhante ideia de trazer de volta o evento. Claro que vai dar ruim.
É uma série dessas que dá orgulho. A cenografia, fotografia, atuações, roteiro é tudo muito bem feito. A segunda e última temporada disponível na Globoplay termina com um gancho para uma continuação, mas aí teve a covid-19 e depois a surtada da Cássia Kis e agora a série acabou. O que é uma pena lastimosa!
A Ucrânia é um país eslavo que compartilha com Czernobog e as Zoryas a mesma mitologia. Além da sinceridade da amarga bruxa Haia quando abre seu baralho para os brigidenses, a série traz alguns outros personagens daquela teogonia, que é deveras interessante e que descobri por causa de Desalma e agora entnedi um pouco mais por Deuses Americanos.
Em Desalma, aparecem outras entidades e aspectos da cultura ucraniana. As Mavkas, que são espíritos de mulheres que morrem afogadas e buscam vingança para descansar, são constantemente citadas havendo a suspeita de que Halyna tenha se tornado uma delas. Um dos personagens invoca um deus chamado Veles que é a entidades das águas, da terra, do submundo e da trapaça. Veles também pode ser identificado como o diabo em algumas descrições. Como esse deus eslavo é considerado uma besta devoradora de gado, essa faceta tem ligação com o episódio dos porcos. Essa cena de Desalma é chocante. Que fotografia! Não direi mais nada, para que vocês apreciem.
Deuses Americanos foi adaptado em uma série da Prime Vídeo, que tem três temporadas. A série é bem fiel ao livro até a parte que eu vi. Parei de ver, não por não gostar, é muito bem produzida, inclusive Neil Gaiman é um dos produtores executivos e o roteirista. Parei porque não quis mudar o que construí na minha cabeça. Talvez…daqui a um tempo… quando o livro já estiver mais apagado na memória, eu dê outra chance para a série.
GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. Tradução: ALVES, Leonardo. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2016.
WHITE, Mike. The White Lotus. EUA & Itália: HBO, 2021-atual.
MAIA, Ana Paula. Desalma. Brasil: Globoplay, 2020 – 2021.
GAIMAN, Neil & outros. American Gods. EUA: Starz Originals, 2017-2020.
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