Capa do livro Elis: Uma biografia musical, de Arthur de Faria.

Começa a se armar o confronto. Um cartaz colado nos bastidores do Teatro da Record tem a seguinte conclamação: ‘Atenção, pessoal, o Fino não pode cair! De sua sobrevivência depende a sobrevivência da própria música moderna brasileira. Esqueçam quaisquer rusgas pessoais, ponham de lado todas as vaidades e unam-se todos contra o inimigo comum: o iê-iê-iê’.”

FARIA, Arthur de. Elis: Uma biografia musical. Pg. 47.

 A cruzada de Elis Regina contra as guitarras elétricas está narrada no livro Elis: Uma biografia musical, de Arthur de Faria. Esse tema foi citado no artigo A Amiga Genial – amizade transformadora.

Na obra, o autor narra os acontecimentos da época em que a cantora Elis Regina, apresentou o programa Fino da Bossa (1965-1967) ao lado de Jair Rodrigues na TV Record. Ambos eram estrelas dos festivais de música brasileira.

Tudo ia bem, até que a TV Record, procurando incorporar outros talentos musicais em sua programação, criou o Jovem Guarda (agosto de 1965-1968), apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa.

Esse período rendeu muitas trocas de farpas entre Elis e Erasmo, ela desdenhando do iê-iê-iê, sob os argumentos de que influência da música anglófana e seus instrumentos não eram música brasileira de verdade. E ele, em um estilo too cool for school, dava respostas como: “estou morrendo de medo”.

Nesse embate, Erasmo, Roberto e Wanderléia levaram ligeira vantagem. O Fino da Bossa foi cancelado primeiro e o Jovem Guarda prosseguiu por mais um ano.

Passeata contra guitarra elétrica

Elis participou da Passeata contra as guitarras elétricas, junto com Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Ainda bem que tanto Elis quando Gilberto Gil, mudaram de ideia e incorporaram a guitarra elétrica em suas gravações. Assim tivemos os discos: Doces Bárbaros – ao vivo e Falso Brilhante, ambos lançados em 1976.

Capa do primeiro LP de Elis Regina: Viva a Brotolândia.

Curiosamente, o primeiro LP de Elis era quase inteiramente de canções de… iê-iê-iê, que ela alegou ter sido uma

imposição da gravadora. O disco se chama Viva a Brotolândia (1961).

E eis que em tempos mais recentes a questão da mistura de culturas que enfraquecem ou elevam a arte brasileira, dependendo do ponto de vista e do resultado, tornou complicada relação entre ninguém menos que Ariano Suassuna e Chico Science.

Ariano foi fundador do movimento Armorial, na década de 70, dedicado a apresentar a cultura tradições pernambucanos como conteúdo tão bom quanto o considerado erudito.

Nos anos 90, explodiu no Brasil, vindo também de Pernambuco, o Manguebeat, que lançou o Manifesto Carangueijos com Cérebro (1992), escrito pelo músico Fred Zero Quatro da banda Mundo Livre S/A. O representante mais destacado do Manguebeat foi Chico Science, líder da banda Chico Science e Nação Zumbi. A proposta era: ter como base o Maracatu, tradicional ritmo pernambucano, acrescentar instrumentos eletrônicos, misturar com outros estilos musicais, como hip-hop, música eletrônica e rock e usar nas letras folclore e outros elementos da cultura pernambucana mesclados com conteúdos da cultura moderna.

Chico encontrou, em Ariano, seu mais ferrenho crítico. Chico Science sempre declarou ser fã de Ariano Suassuna e que o autor e o movimento Armorial faziam parte de suas inspirações.

Capa do livro Tudo que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman.

Ao pensar nesses dois casos veio à mente um conceito que Marshall Berman apresenta na introdução da obra Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. Segundo o autor, muitas pessoas nos últimos quinhentos anos “experimentaram a modernidade como uma ameaça radical a toda sua história e tradições, a modernidade (…) desenvolveu uma rica história e uma variedade de tradições próprias” (Berman, pg 15). A ideia básica desse pensamento é de que tudo o que existe sofre influência e se modifica ao longo do tempo e então se transforma ou deixa de existir.

Isso pode explicar o que sentiram Elis e Ariano ao serem contra a aculturação, mistura entre a cultura nacional e as influências estrangeiras. Pode ter sido medo de o que eles defendem se acabe ou desvalorize. O fato é que sem os instrumentos eletrônicos e a fusão de nossos ritmos com as novidades vindas de fora, não teríamos muitas das músicas e dos artistas que marcam o nosso repertório. Todos os artistas envolvidos nesse texto são importantíssimos. O nascimento de uma corrente não elimina ou desmerece a outra. Afinal, sushi de salmão com cream cheese e couve frita é delicioso e foi criado por brasileiros. O que não diminui a vontade de comer um niguiri clássico bem feito.

Bônus: Chico Science e Nação Zumbi com participação de Fred Zero Quatro – Computadores fazem arte.

FARIA, Arthur de. Elis: uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago, 2015.

BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.: MOISÉS, Carlos Felipe e IORIATTI, Ana Maria L. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Os videos foram acessados em 27/01/2021